janeiro 30, 2009

01 COMEÇANDO

Do nascimento – Antecedentes – Nos Açores

28/01/1939, Signo de Aquário , Carlos Graça, Carlinhos para meus Pais, Avó e duas Tias, todas por parte de meu Pai. Filho único.

Minha Mãe ( 1909 ) tinha sua família no Concelho de Santa Comba Dão , Freguesia de Treixedo , ao Norte de Portugal, terras frias da Beira Alta distribuídas em pequenas propriedades agrícolas de escarpas acidentadas à beira do Rio Dão, com casas construídas junto a rochas , poucas centenas de habitantes , de resignada pobreza e costumes austeros , assentamento final do Povo Lusitano e local de lutas com os Romanos na formação do País. Terra de nascimento de Oliveira Salazar, 1° Ministro ditatorial dos anos 30 – 60 , autor e liderança principal do Salazarismo.
Com essa carga tanto genética como imposta de sofrimento , humildade e forte sentimento de individualidade, veio minha Mãe para Lisboa , em busca de trabalho e de futuro , talvez por vontade própria , mais certamente a mando e benefício dos pais como era então costume nas regiões do interior de Portugal e que só na meia metade do século poude ser coibido policialmente.

Minha Mãe , sem instrução escolar, sozinha durante anos na cidade grande , empregada doméstica , veio a conhecer meu Pai ( 1907 ), este vindo com pais e duas irmãs do outro lado do País, ao sul ,de uma região mineira antiqüíssima , fortemente explorada durante a ocupação romana até quase exaustão , depois ocupada pelos Árabes e que se constitui numa das mais antigas povoações portuguesas : Aljustrel, Distrito de Beja , no Baixo Alentejo , clima quente e seco , região de vastas planícies divididas em grandes propriedades agrícolas , latifúndios geradores de graves distorções econômicas , que viriam a ser o centro modelo de implantação de práticas socialistas (comunistas ) com a Revolução dos Cravos , em 74, que terminou com o Salazarismo.

Meu Avô, ferrador de cavalos , desloca-se para Lisboa com mulher e três filhos, procurando serviço que já então escasseava, até à sua repulsão pela família em consequência de alcoolismo que o levaria anos mais tarde à morte , desacompanhado - meu Pai, sem instrução escolar, adolescente , procura no boxe amador algum dinheiro, até à incorporação no Exército , que se lhe depara como profissão e meio de desenvolvimento escolar ; minhas Tias, acompanhando minha Avó, procuram sobrevivência na costura , uma se casa confortavelmente e outra , pela beleza e elegância, progride numa loja de modas e num relacionamento não convencional.

Portugal dos anos 1920/30 , no qual meus Pais procuram sair da adolescência e se posicionar como adultos , vive o caos político da Primeira República e a degradação sócio – econômica que conduzirá à implantação do Salazarismo . Lisboa é cenário de constantes revoluções ,trocas de governo, greves, desordens e violência civil . O Mundo conhece a 1 ª Grande Guerra , o Comunismo , o desastre da Bolsa Americana, a Guerra de Espanha. Se aproxima o Nazismo e a explosão da 2ª Grande Guerra no ano de meu nascimento.

Meu Pai e minha Mãe sobreviveram !

No Exército , meu Pai descobre a importância de estudar , progredindo em alguns anos de simples soldado a sargento , ao mesmo tempo que desenvolve sentimentos de revolta por não poder alcançar maiores degraus sociais e de inveja para com tudo que lhe demonstrasse o que a vida lhe não proporcionou . Integro, honesto, encara dificuldades no convívio militar com subordinados e superiores ao não se integrar nas práticas generalizadas de corrupção . Jovem e ambicioso , casa com alguém que lhe era socialmente superior e se divorcia pouco tempo depois para finalizar essa relação que se revelou desastrosa.

Conhecendo meu Pai então já divorciado , engravidando e daí casando por imposição de minha Avó a meu Pai , minha Mãe se dedica à casa e ao filho ,vencendo a cada dia a animosidade e impetuosidade de meu Pai. Com algum apoio de minha Avó e complacência de minhas Tias, minha Mãe procura pela humildade e resignação conviver com a desigualdade cultural que mais a afasta de meu Pai, criando neste , progressivamente , revolta e desamor demonstrados em atitudes de injúria e humilhação , que se de inicio são esporádicos vêm com o decorrer dos anos de casamento – e no passar de minha infância – a se tornar permanentemente presentes.

Aquela minha Tia bonita e elegante , audaciosa e plena de vontade de desfrutar de uma vida de bem estar e alegrias festivas, mas também impetuosa e muitas vezes explosiva, segue seu relacionamento não convencional com um rico fazendeiro , proprietário de cavalos e de touros de corrida , Carlos, de quem recebe um apartamento em Lisboa , centro, e uma pequena fazenda próxima das terra que detinha na Golegã /Distrito de Santarém. E nascendo eu,filho do irmão pobre , ganho um Padrinho e um nome em pretensa homenagem!

Meus Pais vão morar num apartamento de 1° andar ,meio casarão, antes alugado pela minha Tia bonita e elegante , próximo ao apartamento num 3° andar por ela ganho , e aí eu inicio minha infância, meus Pais complementando o parco salário de militar com o aluguel de quartos daquele casarão.

Do Padrinho rico pouco restou ,vagas lembranças de estar a seu colo , de ouvir estórias de noitadas em cassino de jogo , de meu Pai algumas vezes acompanhando a irmã na sua ânsia de vida , a contragosto de minha Mãe , até ao seu rompimento desse relacionamento , deixando para trás visível amargura em minha Tia , que , cada vez menos bonita e elegante , percorreu alguns anos de desesperança , aumentada por um novo e infeliz relacionamento , agora legalizado em união civil , que acarreta a perda da amizade e absoluto afastamento de meu Pai , e pelo falecimento da Mãe , vitima de pneumonia , terminados na sua morte após longa luta com um câncer , menos de 40 anos de vida e eu com mal completados 10 anos.

Até onde chegam minhas recordações de infância ? Algumas imagens parecem ter ficado impressas , às vezes difusas, imprecisas no tempo . Lá atrás, recordo os tempos da Guerra que se havia iniciado ( setembro) poucos meses depois do meu nascimento e que , então , alguns anos decorridos , assustava o País ,trazendo a falta de alimentos , o racionamento , as filas para conseguir algo de que eu participava acompanhando minha Mãe, as cortinas fechadas e a meia luz obrigatória.
Nessa penumbra das noites, minha Mãe e minha Avó arrumando a cozinha, eu ouvia suas conversas sobre casos da vida de cada uma , mulheres de conhecimentos feitos pela própria experiência e mais pela imaginação e pelo ouvir de terceiros , mulheres que não haviam tido a oportunidade de passarem pela escola . Aí ,chegavam até mim informações – certas,claro! – de angustiantes casos de espíritos visitantes dos humanos naquelas terras da Beira e do Alentejo , de sessões aterrorizantes de bruxas e seus coadjuvantes , que passavam a povoar os meus sonhos de menino assustado, lençol puxado cobrindo a cabeça !

Por essa comunhão de experiências e trajetos de vida igualmente difíceis, minha Avó se constituiu em apoio para minha Mãe , embora muitas vezes autoritária e arrogante , quase sempre pouco afetuosa nas relações comigo, me fazendo vê-la distante e até ameaçadora.

Sargento do Exército, meu Pai seguia com aguçado interesse o avanço das tropas alemãs , demonstrado pela ultrapassagem de fronteiras e ocupação de paises demarcadas em grande mapa europeu estendido sobre a mesa , que preenchia lendo as notícias dos jornais e a que eu assistia tentando compreender as suas explicações . Portugal , no auge do Salazarismo , era dado como neutral nesse conflito , muito embora demonstrações do Governo mais ao menos explícitas de apoio à Alemanha , que eram claras na organização das forças militares do País ; por outro lado, internamente, vinham – se processando mudanças estruturais que mudavam os hábitos dos portugueses , muito pela presença progressivamente maior de uma polícia política feroz ,temida e odiada , de uma censura que se estendia a todas as atividades e do apoio inconteste da Igreja Católica , à qual Salazar beneficiava com o continuado aumento de influência e benefícios.

Filho único , num apartamento em que se moviam pessoas outras de meu Pai e minha Mãe , com um mundo exterior de limitações, dificuldades e medos que aparentavam estar ali todo o sempre, protegido pela minha Mãe , muitas vezes angustiado pelo comportamento do meu Pai , que não compreendia , e pela frieza da minha Avó , assim fui desenvolvendo a minha infância , como menino tímido e assustado , exigido a se comportar pelos padrões dos adultos e a ter uma rapidez de desenvolvimento intelectual que acompanhasse a vontade do meu Pai em ver no filho aquilo que não alcançara.

Contrastando com a melancolia dessas situações , que embora não fossem ainda por mim compreendidas já começavam a delinear a personalidade do futuro jovem e adulto, surgem lembranças de alguns tantos dias passados naquela pequena fazenda de minha Tia , para lá de Santarém , alcançada a partir desta por uma corrida delirante em charrete puxada a cavalos , por estrada de terra e areia sêcas e quase soltas , ladeada aqui e ali por conjuntos de altos pinheiros dos quais se exalava um perfume inebriante que se misturava com o cheiro da poeira no ar e que marcavam terras nas quais – eu ouvia contar ! – corriam soltos touros bravos guiados por cavaleiros de trajes coloridos, os campinos , que nas praças de touradas tinham por costume mostrar a sua habilidade no domínio de cavalos e touros.
Embora pequena , minha Tia colocou nela suas economias e esforços . A casa era rústica , térrea , de pesadas portas de madeira , sem luz elétrica . As arvores de fruto distribuíam-se por toda a fazenda , as videiras fazendo um longo túnel de que caíam os cachos de uvas , as figueiras de grande porte derreadas de figos que os pássaros atacavam e o calor do sol fazia derreter em mel ! Até hoje saboreio o momento daquelas tardes de sol em que o padeiro passava de carroça , na frente do portão da fazenda, deixando o pão fresco que ia acompanhar os figos que tinham sido apanhados das figueiras e depois lavados com a água fresca do poço.
E tinha a caminhada nas matas, acompanhando meu Pai na caça às rolas ( e aos coelhos que nunca apareciam!) , enchendo os sentidos do prazer das cores e dos aromas da terra trabalhada que se estendia em fazendas intermináveis.
E a descoberta dos caracóis ! Apanhados nas tardes ensolaradas nas sebes entrelaçadas de morangos silvestres , vinham para a cozinha ocupar todas as panelas disponíveis, espalhadas pelas mesas e pelo chão com as águas de lavagem carregadas de sal , até ao tempero , cozimento e final degustação em ritual de alfinetes e palitos ! Dessa experiência encantada, ficou comigo o sempre renovado prazer de comer caracóis onde possível encontrá-los , às vezes chamados de escargots nas viagens pela França mas sempre renovadores das sensações experimentadas pela criança daqueles dias.
Mas nem tudo eram encantamentos nessa descoberta da vida no campo ! Sem luz elétrica , as noites de sombras viravam pesadelos, portas e janelas trancadas com grossas traves de madeira , espingarda de caça deixada à mão , todos os quartos revistados antes de dormir – sem esquecer de olhar debaixo das camas , porque vândalos aí se escondiam durante o dia para assaltar noite caída , como eram as estórias lúgubres acontecidas em fazendas vizinhas e contadas à mesa após o jantar , candeeiro a petróleo mal iluminando o ambiente ! Lençol puxado escondendo a cabeça!
Fechando as minhas experiências de um menino da cidade , por folclore da região e pretexto para o encontro de minha Tia com meu Padrinho , assisto lá pela Golegâ a uma tourada com aqueles cavaleiros coloridos se divertindo com um touro ferido e ofegante , que pela sensação de tanto amargor traduzida por essa covardia nunca mais me levou a uma praça de touros.

Enfim, na vida real a Guerra ia tendo seus desdobramentos trágicos , os Estados Unidos também participando e Portugal a ser obrigado a assumir posição clara contra a Alemanha .

E inesperadamente para mim a Guerra entra dentro da minha vida , 5 para 6 anos , eu mal entendendo as razões das preocupações de minha Mãe na despedida de meu Pai partindo para os Açores em defesa do País ! Abraçado a meu Pai ,farda de combate, a fivela do grosso cinto de suas calças na minha cara, lágrimas escorrendo vendo o desespero de minha Mãe e ouvindo meu Pai prometer que nós iríamos ter com ele passado algum tempo!

O Arquipélago dos Açores , conjunto de 9 ilhas vulcânicas no Mar Atlântico em frente e oeste da costa de Portugal , 3 dias de viagem nos navios da época , 1500 Km , eram posição militar estratégica na rota Estados Unidos – Europa , atacada com frequência pelos submarinos alemães . O envio de tropas portuguesas expedicionárias procurava defendê-las, quando já se aproximava o final da Guerra .

Meu Pai ,1° Sargento , foi enviado para a Ilha dos Açores, a mais importante e sede do Arquipélago , produtora de açúcar de beterraba e de tabaco, de belas estradinhas ladeadas de hortências e que subiam a serra desembocando em lagoas de águas quentes e sulfurosas , enfeitadas aqui e ali por jatos de água que saíam do interior da terra ,tudo escondido por nuvens baixas de vapor de água que davam um ar surrealista àquela Natureza enfeitiçada. Ilha de pessoas calmas, quase sonolentas, que falavam um português arrastado ,de palavras cortadas e meio cantaroladas.
Aqui eu chego , pouco antes de completar os 6 anos, no cumprimento da promessa de meu Pai , passada uma viagem de pesadelo num barco que baloiçava sobre as ondas me deixando incapaz de levantar de um beliche em classe pobre , dividido com minha Mãe não muito mais heróica do que eu!

Morando num quarto alugado de um primeiro andar de uma pequena casa ,com o luxo de uma varanda debruçada sobre a rua estreita de paralelepípedos, eu assistia à passagem matinal de carros de bois carregados de beterraba , que se dirigiam às fábricas de açúcar pouco distantes dali , e via meninos das casas vizinhas brincando soltos na rua, aos quais aos poucos me fui juntando e fazendo meus amigos , mais com a cumplicidade de minha Mãe que por autorização de meu Pai. E entrava nas casas desses amigos , aqui uma carpintaria , lá uma casa com grande pátio e forno de fazer pão , gente simples que me adotava com o respeito e a inveja de eu ser filho daquele importante militar que tinha vindo de Lisboa .
Meu Pai começava a me exigir dedicação aos estudos, a leitura ,a tabuada, as contas de matemática, com toda a compulsão que tinha pelas dificuldades pelas quais ele próprio passara e vontade que eu as ultrapassasse com a ajuda que achava precisava me dar . Não raras vezes essas sessões terminavam no meu choro e a intervenção complacente de minha Mãe , que acabava por ver a obsessão de meu Pai se transferir para ela - infeliz roteiro que eu veria se repetir quase que diáriamente por longos anos de minha educação escolar .

Então , completados meus 6 anos eis – me apresentado à Escola, antigo prédio ao lado da Igreja Matriz , no Largo principal da Cidade. O Professor, bondoso, velhice chegando, me ajudou nessa nova experiência ,também surpreso pelo desenvolvimento que eu já apresentava, modelo para os seus outros alunos aos quais ele aproveitava para apresentar como incentivo !
Assim cativado pela simplicidade de todos e pela alegria em ensinar demonstrada pelo meu amigo Professor, estão esses meses na minha memória – retornaria a Lisboa pouco antes dos 8 anos – como os mais prazerosos da minha formação escolar , ali terminados com uma marcante festa de despedida em sala de aula .
Tarde agora,tantos anos passados, ainda agradeço a esse Professor a motivação que me conseguiu passar para o restante de minha vida.
Mas , e não fosse o bastante, essa Ilha me transmitiu outras inesquecíveis recordações , fatos ocorrendo perante os olhos fantasiosos de uma criança crescendo entre os 6 e 7 anos :
Carnaval de festa de rua, de lutas de saquinhos de papel cheios de água , de sacos de farinha atirados das varandas das casas sobre os incautos passantes , que se estendia pelos dias e noites , com a cumplicidade das pessoas simples que apenas procuravam se divertir ;
Ruas de calçamento de pedra por inteiro cobertas de flores , fazendo desenhos que se entrelaçavam e misturavam em cores magníficas, servindo para a passagem de uma extensa procissão religiosa , em homenagem ao Santo Cristo , que se estendia em festejos no Largo da minha Escola, fachada da Igreja Matriz totalmente decorada por luzinhas elétricas, coreto central com a orquestra local tocando para os passantes que davam voltas em seu torno , se aproveitando da claridade das noites ;
Também , o primeiro filme no cinema da Cidade , estória de cavalos correndo todo o tempo , que me angustiava pelo evidente cansaço dos animais e que eu não entendia como cabiam no espaço tão pequeno daquele palco!

Terminada a Guerra , sem felizmente atingir o Arquipélago , meu Pai passa a ansiar pelo regresso a Lisboa , em passeios pelo Cais vendo o mar se debater contra as muralhas e os navios em sucessivas chegadas e partidas , às vezes pescando e esperando dos comandos militares a decisão de sua própria saída .
Para mim, terminava um período de intenso prazer, retornando para aquele apartamento quase casarão em Lisboa, deixando para trás uma Terra magnífica e bons amigos que não voltaria a encontrar .

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