janeiro 30, 2009

02 DESCOBRINDO VALORES

Da Escola à Universidade

Dois anos mais velho após a primeira viagem de navio, mais forte fisicamente e certamente menos angustiado, pude resistir melhor ao regresso a Lisboa, me permitindo apreciar a um dia de viagem dos Açores , 1000Km de Portugal, a passagem pela Ilha da Madeira , cidade do Funchal, primeira descoberta dos navegadores portugueses no caminho para África ao final do século XV.
O navio tinha aí uma parada , ancorado no mar em frente, os passageiros se deslocando em pequenos botes para ,depois em terra firme , se aperceberem dessa maravilha da Natureza , beneficiada pela passagem das águas quentes do Golfo do México, ar de férias permanentes de verão, principal riqueza no cultivo de bananas , plena de escarpas rochosas debruçadas sobre o mar que nelas chegava se abrindo aqui e ali em pequenas praias de lindos contornos. A cidade aparecia como plantada no meio de um canteiro de flores, tráfego de carros de bois sem rodados , carga assente em pranchas de madeira que deslizavam no chão empedrado das ruas.
Em torno do navio, enquanto ali ancorado, embaixo bailando no mar de águas translúcidas, dezenas de pequenos botes traziam garotos de corpos bronzeados que gritavam para que lhes fossem atiradas moedas , que eles iam apanhar dentro do mar descendo para o fundo em sucessivos mergulhos.

Em Lisboa , todos esse locais de encantamento agora só na memória, regresso à Escola, primeiro pública , traumática, e depois particular de duas pacientes professoras que , embora não sendo o meu bondoso professor dos Açores, me vão transmitir apoio e incentivo por dois anos anteriores ao Liceu.

Completo meus 8 anos num País em que a rigidez cultural se impõe cada vez mais pelo efeito da censura , limitando informações e comportamentos , não impedindo apesar dela que noticias das atrocidades cometidas pelos alemães e das barbaridades das bombas atômicas sobre o Japão viessem publicadas nos jornais que eram a leitura diária de meu Pai, que eu o ouvia comentar entre assustado e fascinado, me abrindo a vontade de mais ler e descobrir.

Meu Pai , cada vez mais tempestuoso com minha Mãe e rígido nas liberdades que me permitia, se afastava de minha Tia , aquela bonita e elegante, porque ela , na ânsia de viver e talvez pressentido os poucos anos restantes ,decidia casar com um jovem empregado em loja de roupas , simples , até bonacheirão, mas que meu Pai achava apenas interessado nos bens materiais.

Aquela fazenda próxima de Santarém , que tinha sido campo de minha fascinação, estava assim longe, nunca mais a veria.

Amargurada ,final de uma vida de contínuas dificuldades , sempre morando com essa minha Tia, poucas vezes eu a vendo , minha Avó vem a falecer vitima de pneumonia , na companhia da minha Mãe nesses últimos instantes e a quem pede , seu último desejo, que meu Pai se reconcilie com a irmã ! Teimoso, ausente de sentimentos de compaixão, meu Pai repele o desejo transmitido pela minha Mãe e implorado pela irmã e se afasta , escada abaixo , deixando para trás a mãe falecida, a irmã e a minha Mãe em choros convulsivos e eu que , hora do almoço , chegando da Escola, havia sido levado ainda na rua pelo meu Pai a casa de minha Tia, assistindo atônito , sem a verdadeira compreensão daquela tragédia .

No aprendizado da minha juventude , comecei assim a entender as razões do Fado cantado pelos portugueses , homens e mulheres de preto, vozes arrastadas acompanhadas por guitarras , estórias de tragédias quase sempre mal acabadas, e que eu ouvia no aparelho de rádio acabado de comprar por meu Pai. Amália Rodrigues , pela qualidade de sua voz , canções quase sempre belíssimas e origem humilde dos mercados de Lisboa , começava a aparecer como expoente máximo desses intérpretes :


« O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.


Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava »

No mesmo rádio, cabeceira do quarto de meus Pais, ouvidos atentos e coração explodindo , País parado, iniciavam - se nesse tempo as transmissões dos jogos de hóquei em patins , desporto no qual Portugal se começava a impor aos habituais campeões ingleses , conseguindo o primeiro titulo mundial ( 1947 ) para orgulho geral e causa da minha atração a esse desporto , depois acompanhando jogos ao vivo e fazendo meu Pai montar uns patins em grosseiras botas de couro , com os quais passava horas rodando no apertado quintal acimentado da casa .

Mas os ingleses teriam na mesma época a sua vingança ! Inauguração do Estádio do Jamor , Serra de Monsanto , meu Pai me levando por carro elétrico lotado, caminhada a pé até a entrada deslumbrante no Estádio, multidão vibrante cantando o Hino Nacional , Presidente da Républica e autoridades no palanque acima de nós, os ingleses passando a bola uns para os outros e os portugueses indo buscá -la dentro das redes e a multidão gritando « agora é que não falham os 10 a 0 » .Foi! O dez a fio do século , como ficou conhecido!

Num País em que a Igreja Católica se impunha, resguardada pelo Governo , não podiam as escolas , e aí a minha , deixar de impor a Religião como matéria obrigatória logo nos primeiros anos de formação escolar, impelindo os alunos à presença na Igreja, palestras dos padres , assistência às novenas, terminando na Primeira Comunhão , tudo por mim convictamente realizado , com o incentivo de minha Mãe e o desconhecimento de meu Pai , explicitamente contrário a tudo que « não comprovado pela Ciência » .
Festa realizada na Escola ,minhas melhores roupas, ganho de presente de minhas professoras diversos santinhos , que minha Mãe guardaria em seus objetos pessoais e só viriam a reaparecer na minha vida muitos anos mais tarde, descobertos escondidos na minha carteira de bolso já na viagem para Moçambique , oficial do Exército obrigado a servir o País , 22 anos de vida . E nunca mais deixaram de estar comigo , por onde quer que eu tenha passado , sempre cuidadosamente transferidos para a carteira que me acompanhe , obediência a esse ato de fé de minha Mãe na única forma de proteção que então sabia me poderia dar.

Lisboa dos meus 8 – 10 anos era uma cidade imensamente colorida ,um pouco senhorial mas de um povo humilde e amável, baixa instrução, de ofícios pitorescos que se desenvolviam debaixo das janelas de meu casarão numa feira diária de vendedoras de peixe , as varinas , de vendedoras de hortaliças,frutas e flores, expondo seus produtos nas calçadas e os anunciando em gritos de mal construído português, quase sempre descalças, tamancos nas mãos porque incomodavam e só a policia os exigia , e que minha Mãe percorria no seu afazer de dona de casa , muitas vezes me levando como atônito ajudante.
Ao longo do dia ,vendedores passavam oferecendo de água de Caneças a leite, queijos e mexilhões , jornais diários - os pregões de Lisboa , acompanhados nas esquinas das ruas por tocadores de acordeão ,às vezes alguém cantando - numa festa para os sentidos que me ajudava na prática dos deveres escolares de todas as tardes , à mesa de escritório que era do meu Pai e que pelo continuado uso se incluíu no meu mundo , postada na sala ao lado da janela para aquela rua que me distraía e fortalecia.
Carros elétricos coloridos e desengonçados desembocavam na frente de minha rua e por ela seguiam, barulho de rodados e de freios , campainha de aviso alertando os pedestres, para um destino desconhecido que me atraía , primeiro observados do alto da minha janela e depois mais próximos nas vindas para as ruas de meu bairro , na procura de meninos de rua que começavam a fazer parte de minhas brincadeiras quando minha Mãe me autorizava a muito rogo , depois dos deveres escolares cumpridos e só até que meu Pai chegasse principio da noite.

Assim , 10 anos de idade , cada vez mais marcado pela rudeza de meu Pai e lágrimas sofredoras de minha Mãe , descobrindo novas brincadeiras e espaços com minhas escapadas de rua, sempre rodando no quintal com meus patins de botas grosseiras e começando a encontrar dificuldades de fala que me atrapalhavam nas leituras e exposições orais, chego ao primeiro grande desafio de minha vida – o exame da 4 ª Classe , desenrolado naquela escola publica que me havia sido tão traumática na chegada dos Açores, prova escrita e prova oral , que naqueles tempos difíceis de chegar e permanecer na escola era o sonhado último degrau de aprendizado da grande maioria dos portugueses.
Bem sem perceber o porquê de tanta admiração, saio do exame oral rodeado cá fora no átrio da escola por pais de colegas e professores que , assistindo à desenvoltura do meu exame , me abraçavam, cumprimentavam e me anteviam um futuro brilhante! Grandes sorrisos nas caras de meu Pai e minhas professoras , esse dia ganhei dispensa da escola diária , que depois teria que continuar a frequentar por mais uns dias até ao exame de admissão ao Liceu , porta de entrada na Juventude e saída final de minha Infância.

Liceu Camões , não muito distante de meu casarão , aqueles carros elétricos que via da janela me deixariam próximo, caminhada de mais 7 anos de estudos que seriam vigiados quase ferozmente pelo meu Pai , bolsa de estudos conquistada ano após ano , até às portas da Universidade , que , meus 10 anos ainda , já eram o sonhado objetivo , embora num total desconhecimento de oportunidades e aptidões .

Novos professores e amigos , mudada a minha rotina diária , não mudou a vida cá fora , sem esperança de ver minha Mãe sem seu desespero , meus problemas de voz se agravando talvez conseqüência de minha impotência, o País se fechando pelo medo à Guerra Fria que assustava o Mundo, a propaganda das ideias comunistas endurecendo o regime da ditadura salazarista , como eu ouvia de meu Pai obstinadamente interessado no que achava as suas necessidades de desenvolvimento cultural, e portanto também minhas. Mas eu ganho as primeiras calças compridas e as fotografias lambe – lambe feito meio galã de cinema daqueles filmes que eu começava a assistir ,deslumbrado por aventuras que me faziam esquecer um pouco os medos da noite, lençóis sempre sobre a cabeça !

Meu Pai , afastado da irmã casada com o « bonacheirão », se aproxima agora um pouco da outra irmã , morando também por ali perto : costureira de chapéus , fala fina , modos estudados, minha madrinha de batismo , havia casado com um contabilista baixinho e emproado , apartamento bom, empregada doméstica , uma filha quase dois anos mais nova do que eu , minha única prima por mim conhecida, . Sem visitas de casa a casa entre as famílias , os encontros se dão nos finais de tardes ensolaradas , em passeios ao longo da grande avenida de frondosas árvores que atravessa a cidade pombalina , em um quilómetro retilineo da grande estátua do Marquês de Pombal até à Praça dos Restauradores , faixas de asfalto em que passavam reluzentes automóveis , ruas laterais empedradas ocupadas por carros elétricos sempre lotados e casas palacianas se alinhando imponentes dos dois lados , aqui e ali substituídas por luxuosos hotéis, cinemas e restaurantes.
Quase sempre esses encontros terminavam em parada repousante nos bancos de madeira dispostos debaixo das árvores , leitura do jornal diário com suas novidades em tinta que se apegava nas mãos , primeiro pelos adultos e depois por mim , finalmente cansado das brincadeira de agarra – agarra com a minha prima e os meninos e meninas que se achegavam.
Muitas vezes estendidos pela noite luarenta e morna , esses passeios tinham um ar saboroso de jogo de adultos, talvez primórdios de uma sexualidade despontando e certamente de uma liberdade preguiçosa entre os afazeres escolares.
Noticias chegando atrasadas , da Copa do Mundo de futebol no Brasil ( que horror ! ) , da explosão de mais uma guerra , agora na Coréia, explicada por meu Pai no mapa mundo em torno do paralelo 39 , as palavras cruzadas que começavam a me entusiasmar , os problemas de xadrez que não entendia , o jornal ia-se tornando dia após dia em um vicio gostoso.

Em Lisboa de tantas praias estendidas pela Costa do Sol até lá para norte « onde a Terra encontra o Mar » , impossível escapar das viagens dominicais na 3ª classe de um trem mais que lotado de banhistas , saindo do Cais de Sodré para uma parada praia após praia , até Cascais , praia acolhedora do final da linha , meu local idealizado de areia e mar até muitos anos depois .

Cascais, praia de pescadores em Vila aristocrática ,tinha o sortilégio de uma pequena baía , com rochas aflorando num mar de águas claras e frias que vinham se abrir nas areias finas, cheiro forte de maresia no ar, barracas e toldos de lona colorida se espalhando em toda a extensão ; cá atrás ,elevado e defendendo o acesso à praia , um calçadão que permitia um olhar embevecido sobre todo o conjunto e que fechava numa das extremidades da praia em uma bela casa formato de castelo , paredes cobertas de plantas , dependurado sobre as águas ondulantes do mar.
Aí , domingos de verão ,meus Pais me levavam ,lanche guardado em sacolas ,não raro alguma discussão , ao encontro algumas vezes daqueles meus tios , minha prima e algumas amigas,viajantes da 2ª classe de trem, melhor acomodados na praia e mais assíduos clientes dos vendedores ambulantes que passavam.
Pese embora a pressão da Igreja daqueles tempos na imposição do que achava bons costumes , obrigando mesmo a meninos de 10 -11 anos , que já considerava adultos , o uso continuado de camiseta, ali mesmo na praia , com vigilância cuidadosa da policia e o olhar reprovador das mulheres de idade quando por audácia se tentava um melhor bronzeado , aqueles dias decorriam fascinantes nas brincadeiras de bola , mergulhos de mar e algumas insinuações menos convencionais , às escondidas da família e ingenuamente praticadas.

Muitas lágrimas de minha Mãe , muitas voltas no meu quintal gastando os patins , já algumas discórdias com meu Pai , vejo chegar o exame do 2° Ano do Liceu , 12 anos , provas escrita e oral de todas as matérias que haviam constado do aprendizado daqueles dois primeiros anos .
Passo pelas provas escritas e ganho minhas férias mais cedo, dispensado em todas as matérias de prestar provas orais, alivio também para os meus problemas de comunicação .

Férias passadas naquela sala de vista para o mundo , minhas brincadeiras de rua mais espaçadas pela diferença que me ia separando daqueles meninos pobres , descubro um amigo em um dos proprietários do prédio , mais de 30 anos , saúde frágil , morando no 2 ° andar , varanda interior dando para o meu quintal , nosso meio de comunicação , primeiro ele interessado nas minhas voltas de patins e depois me fazendo apaixonadamente interessar pelo que era sua dedicação , a solução de problemas de jogo de damas , jogam as brancas e ganham !

Nas minhas escapadas para a rua, muitas vezes apenas parado no portão da casa frente para a calçada , confusão do transito passando, talvez absorvido em minhas preocupações com os problemas familiares , assisto uma tarde uma cena quase biblica que me faria começar a confrontar os valores religiosos em que aquelas boas professoras da escola primária me tinham feito acreditar, impelindo à participação nos atos da Igreja , embora já por esses tempos deles me tivesse em todo afastado , mais por preguiça do que por discernimento : um padre, velhinho, compleição bastante forte que o mal deixava caminhar agarrado a um bastão ,vestes longas e pretas de uso surrado, quase surgindo ali na minha frente vindo do nada , se curvando doloridamente para pegar uma moeda de tostão escondida nos buracos das pedras , que alcança e me aponta a segurando entre os dedos : « isto é para os meus pobrezinhos » !
Tempos mais tarde , hora de espera do jantar , ouvindo o aparelho de rádio que tinha saído da cabeceira do quarto dos meus Pais agora para a sala de jantar, em cima de pequena mesinha, me dou ouvindo um sermão de padre em alguma daquelas missas que diáriamente o Governo achava que os portugueses precisavam escutar, e o padre falava histrionicamente de como as fogueiras do Inferno iriam fazer eternamente padecer aqueles coitados incumpridores da perfeita Religião, entendida por completa prática dos Mandamentos, missas, novenas, bulas e doações à Igreja !
Num sentimento de repulsa , intuindo que essa não podia ser a verdadeira religião perante a Maravilha da construção do Universo , e que o exemplo daquele velhinho , padre também , que me fascinara , não condizia com o discurso que teimava a ser jogado no ar, desliguei com raiva o aparelhinho de rádio .

Sem que esperasse , o acompanhamento de minha prima nos passeios pela Avenida e nas brincadeiras de praia estavam terminando! Minha Tia, nossa Tia comum, se debatia longos anos com um câncer , já operada , e chegava ao final de sua viagem, desassistida por meu Pai mas com algum acompanhamento caridoso e meio escondido por minha Mãe .
Ultima visita, minha Mãe me força a acompanhá-la, eu ouvindo minha Tia recordar sua vida de boemia e nos contando ,deitada e mal escondendo as dores ,a estória do último filme a que ela tinha podido assistir pouco tempo atrás ,...E tudo o vento levou ..., acaso como saído da mente de um escritor dramático, ela se assemelhando à Scarllet do filme na cena das perdas « eu nunca mais passarei fome ! » , cena , que dizia , a tinha comovido fortemente e , talvez , se justificando aí da sua vida de alegres prazeres mundanos e alguma riqueza , ao lembrar , nas suas últimas horas , as dificuldades sofridas pela imposição de um pai alcoólatra.
Não sei se meu Pai chegou a falar com ela, nos últimos instantes .O marido bonacheirão , causa da ira de meu Pai , esse permaneceu humilde e sofredor ao lado de minha Tia, todo o tempo da doença, certamente pelo amor que o meu Pai contestava!

Minha Tia teve sua vingança – em testamento , deixou aquela fazenda para a minha prima , o apartamento para o marido e alguns móveis para o meu Pai , acho que para não mais a esquecesse ! Esses móveis constituíram a sala de jantar de meus Pais até suas mortes.
Meu Pai culpou a outra irmã e seu marido pelo fato de eu ter sido deserdado, por manobras apenas interesseiras que não de verdadeira amizade ,rompendo agora e por isso com o último laço familiar que lhe restava ,que nunca mais veio a procurar refazer !

Assim eu perdi para sempre a possibilidade de férias na gostosa fazenda , pior ainda tive a perda da companhia de minha prima no , decorrer da adolescência – separação imposta por meu Pai e que depois o destino de cada um afastou – mas acima de tudo me foi dado assistir com desprazer e rejeição a uma disputa familiar por bens materiais .

O 2º Ciclo do Liceu , 3º ao 5º anos, era nesse tempo uma maratona de estudos , a terminar com um exame final de todas as matérias , provas escritas e orais.Também um desafio de estoicismo disciplinar , por conta e prazer de um novo Reitor chegado ao Liceu , militarista obsecado pela disciplina, impertinente e desagradável no trato. Meu contato com essa figura da Inquisição se deu bem depressa , observado por ele , demoniacamente escondido por uma porta envidraçada, correndo numa varanda para entrar apressado na sala de aula ,comportamento que havia sido proibido por ele logo na assunção do cargo e que me valeu 3 dias de suspensão de aulas! O anacrônico da situação fez até que meu Pai a relevasse ,sem agravo suplementar !
A partir daí nosso relacionamento sempre seria difícil , com óbvia e clara vantagem para ele ao longo dos 3 anos daquele Ciclo e mais 2 do 3º – até que tive minha vingança orgulhosa !

Ganhos três dias de pausa , dedico-os em grande parte ao prazer da leitura , que começava a me absorver, entretenimento de adolescente ,filho único, poucas opções outras de o fazer .
Muito embora a animosidade crescente das aulas de Português de um professor desagradável que via alguma satisfação nas minhas dificuldades de voz, mais agravadas com a continuidade dolorosa dessa deselegância – 3 anos de sofrido convívio ! – não tinha como não me apaixonar pela descoberta dos sonetos de Camões

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

ou de Bocage

Meu ser evaporei na luta insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quasi imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos

Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

E acompanhando a aridez magnífica dos Lusíadas e a difícil compreensão de Gil Vicente , exigências escolares , eu procurava na Biblioteca do Liceu e nos empréstimos dos colegas mais privilegeados as leituras de Júlio Verne a Emílio Salgari , Júlio Diniz, Eça de Queirós ,Almeida Garrett .

Na sala de aula , afora a atração pelas matérias de Matemática e Física, me descobria entusiasmado com as narrativas da História , que procurava alongar pela leitura de livros escolares mais antigos e muito mais completos que tinham servido ao aprendizado de meu Pai , vasculhando as vidas dos Povos que nos deram origem nos costumes e no pensamento .

Tempo assim passando, alguns filmes inesquecíveis ( Todos morreram calçados , com Errol Flynn nas aventuras excêntricas do General Custer – O arco e a flecha , O Trapézio ,com o acrobático Tony Curtis - O Capitão de Castela , maravilhoso , de Tyrone Power - Ivanhoe , novela de Walter Scott com Robert Taylor e minha primeira visão embevecida de Elisabeth Taylor ! - o indispensável As aventuras de Robin Hood ) e outros que se foram apagando da memória , meus esforçados patins tentando sem êxito que eu iniciasse carreira desportiva levado por meu Pai a uma peneira em clube popular, também muitas pancadas desajeitadas numa bola de futebol, às vezes trapos numa meia velha, em terrenos baldios , e não tanto , próximos do meu casarão, se aproxima o temido exame do 5º ano , 15 anos feitos.

Aí, tanta coisa para rever e muita para estudar por já esquecida - e era o Português, Francês, Inglês, Geografia , História , Ciências Naturais, Matemática, Física e até Desenho - programação feita dessa maratona me leva a madrugar , manhãs ainda frias de Primavera , escuras, de candeeiro na minha cara , sentado à tal mesa de escritório durante algumas horas diárias antes de ter de cumprir a ida para o Liceu , aulas continuando , complementadas quase sempre em algumas horas da tarde e depois , proximidade dos exames , também pela noite , sono chegando.

Tinha que valer a pena ! E valeu , com dispensa por distinção das provas orais nas matérias de Exatas e nas matérias de Letras obrigado a fazê-las, mais uns dias de esforço a ser recompensado ao final. Eis – me no 6º ano do Liceu , cadernos de todas aquelas matérias detestáveis parando no lixo de casa , definitivamente esquecidas .


Desse esforço ficou a experiência vencedora da metódica organização frente a um desafio intelectual ao princípio até ameaçador o que , depois , por toda a minha vida profissional , me seria de enorme auxílio .Também, o enorme prazer das descobertas do estudo , idéias agora já mais difíceis de compreensão do que as dos exames anteriores, e ainda o inefável encantamento daquelas manhãs , cigarro sendo ensaiado , janelas fechadas me enganando do romper do dia e me isolando dos problemas familiares, cada vêz mais dolorosos .
Ficou também a estória do meu encontro com os óculos ,tornados a partir daí indispensáveis ! A prova escrita de Desenho se constituía de duas partes, uma de desenho geométrico , que eu fazia mais que razoavelmente , e outra de desenho à vista , para a qual carecia de habilidade , nota final média dessas duas . Então, exame de Desenho começado , o tal de à vista , me esforço o melhor possível para pôr no papel aquele conjunto de sólidos que se aglomeravam em torno de um cilindro , no meio e mais alto do que eles, ali colocados em cima da mesa de frente para as carteiras dos alunos, eu a meio da sala. Prova terminada , meio que rapidamente porque me faltava a arte, olho para os lados , provas dos meus colegas que começavam a ser entregues – e vejo , abismado e assustado, que aquele cilindro que estava no meu desenho em nada se parecia com o cone que estava em todos os desenhos dos meus colegas e, óbviamente também ,em cima daquela mesa ! Nota lá embaixo , poucos dias depois eu tinha os meus inseparáveis óculos !

Aí estou então , 6º ano do Liceu , finalmente livre de matérias que me importunavam , mais um esforço para chegar na Universidade.
Vou continuando minhas leituras , agora procuradas em acêrvo de um Desenhista de profissão que alugava um quarto do casarão , bom artista , meio desligado das coisas materiais – o coitado tudo deixou para trás ,fugindo do pagamento de alguns meses de aluguel atrasado ! – e também num alfarrábio que alugava livros surrados por pouco dinheiro chorado à minha Mãe.
É então vêz de obras de Alexandre Dumas , Voltaire e Emilio Zola , Erico Veríssimo e Jorge Amado , cada uma delas me retornando em prazer o tempo dispendido .

Com Zola , fundador do Naturalismo , entrei na saga de uma família do 2º Império na França , por 5 gerações de sua estória social , 20 volumes de que apenas alguns caíram no meu alcance – « Germinal » ambientado nas minas de carvão do norte da França , « Nana » estória de uma mundana ; de Zola também « Terra » e « Fecundidade » , este último me deixando marcas profundas no acompanhamento de um pai que , contra todas as dificuldades e por absoluta convicção religiosa da esposa , tem inúmeros filhos , depois, já tarde da vida , se deparando com alguma recompensa para tantas privações ao vêr o filho mais velho , por sua morte em banal acidente , ser substituído na gestão dos negócios pelo irmão mais novo ! Tal qual premonição ou mão protetora que determina nosso destino , talvez apenas o fato de ser filho único mais impressionável com essa cena familiar , a impressão dessa passagem naquele livro de Zola havia de vir muitas vezes na minha lembrança , sem que a soubesse prenunciadora de um fatal destino !

Mas tinha também aqueles autores brasileiros que me transportavam para um País de intenso colorido de paisagens e presença humana , que se completando com as informações apanhadas aqui e ali , revistas e jornais , que a censura deixava passar, me faziam ter sonhos picantes de adolescente !

Também , pela arte de um jovem professor de Filosofia ,me deparo deslumbrado lendo a história da Filosofia Grega em livros procurados na Biblioteca , que vinham completar a minha avidez de conhecimento sobre a formação do Homem .
Sócrates, Platão, Aristóteles , passam a ser meus heróis na magnífica Atenas, que acompanho nas reflexões sobre a Vida e o Universo , suas tentativas de explicação cientifica pela lógica dedutiva .

Meu Pai havia saído do Exército , se aposentou, trabalhando agora na Previdência Social , o que lhe permitia melhor condição financeira ,mas não menos animosidade . A Guerra da Coréia tinha terminado , a pressão do Comunismo sobre os movimentos sociais europeus aumentava . Eu , já não tão jovem , iniciava escapadas para mais longe do meu casarão , primeiro de encontro ao conhecimento de Lisboa , aquela avenida grande levando até ao Tejo, colinas de Lisboa debruçadas sobre ele , depois , timidamente , até ao café próximo do Liceu , onde iniciava os mistérios do bilhar, cigarro disfarçando a pouca idade , pressa em ser adulto.
Descobria as maravilhas que se escondiam em Lisboa, nos mirantes dependurados nas colinas ,mas também me aproximava da pobreza , das condições em que se morava na minha Lisboa, das pessoas lá escondidas naqueles bairros pobres , situações que não conhecia . O colorido daquela feira diária debaixo da minha varanda me parecia agora menos bonito!

Talvez isso acentuasse a dificuldade crescente da relação com meu Pai, cada vez mais traduzida em discussões banais na mesa do almoço , que não do jantar porque só tarde da noite regressava ,minha Mãe esperando .

Férias escolares do 6º para o 7º anos , um colega mais próximo , companheiro da mesa de bilhar, me convida para uma semana na fazenda dos pais , perto de Lisboa.
Que problema ! Meu Pai só autoriza ,muito rogo depois, na presença de carta escrita pelo pai do meu colega, formalizando o convite ! Assim vou , envergonhado , para essa nova experiência . Aprendo a andar de bicicleta , caio dentro de um lago em que vacas pachorrentas se banhavam, ao ensaiar passeio ciclístico pela fazenda, emagreço alguns quilos pela timidez de comportamento à mesa de refeições , também não encontrando aquela comida de minha Mãe feita para agrado da minha seletividade alimentar e , esperançoso , saio uma das últimas noites para a « caça aos gambuzinos ».
Entusiasmado pelas descrições dos familiares de meu colega ,inclusive da sua avó , senhora nobre de idade avançada , sou levado quase meia – noite para dentro da mata ,ensinado a ali ficar acocorado , ouvidos e olhos atentos naquela escuridão , pronto para pegar e jogar para dentro de um saco uns animais ,os gambuzinos, que tinham por costume fazer carreira no local ! Meus amigos iriam fazer armadilha local mais acima e ali fico , sôfrego e medroso , para depois me dar conta da minha ingenuidade .

Frequentador iniciante das sessões de dois filmes em pequenos cinemas de bairro , entradas baratas que minha Mãe pagava escondida do conhecimento de meu Pai, me dou conta da satisfação sentida em horas de estudo nas mesas dos cafés , despesa de uma « bica » - café expresso – alugando a mesa tarde inteira , com a complacência habituada do garçom, ou nos bancos do parque enorme acima daquela avenida , não muito distante de minha casa .

Envolvido em decifrar complexos problemas de Matemática e procurando entender como identificar folhas e flores , formas minerais e seus componentes , obrigado a dissecar rãs e outros, também levado por colegas a melhorar minha preparação física em clube onde treinavam atletas profissionais – comparação que ràpidamente me fez abandonar veleidades de por aí seguir carreira ! também já abandonados os patins – me interrogo tentando descobrir o que fazer na Universidade , carreira de medicina sonho de menino também abandonada , habilidades artísticas por completo ausentes.

Terrível decisão , ampliada nas discussões com meu Pai que se mostrava cada vez mais convicto da minha obrigação de ascensão social , para ele unicamente possível através do titulo de doutor , que ele não tinha alcançado e se sentindo com capacidade muito mais merecedora que todos os outros contatos que aqui e ali tinha , sempre terminados em motivos de desdém e animosidade , por incontida inveja de alguns benefícios alheios que a ele não se proporcionavam !

Não convencido, já então, que a minha afirmação e felicidade , ou a de alguém, precisassem do titulo de doutor , vou deparando nos anúncios dos jornais diários com uma frequência cada vez maior de pedidos de engenheiros químicos , para liderança nas atividades de novas fábricas sendo instaladas em tímido surto de expansão industrial permitida pelo Salazarismo – tempo em que a Coca Cola teve a sua primeira licença proibida , já anúncios espalhados pela cidade , porque o governo descobriu que continha coca !

Serei então Engenheiro Químico ! no desconhecimento do que essa profissão me exigisse , mas certamente possibilitadora de bons ganhos materiais face à demanda que se demonstrava !

Exame do 7º ano chegando ,me preparo com a mesma disciplina e afinco que havia aprendido para o exame anterior do 5 º ano , mais manhãs escondido até que as janelas abertas me anunciavam o almoço e longas tardes de primavera em bancos de jardim nos quais a leitura dos calhamaços de estudo me parecia mais alegre.
Provas escritas feitas , me restam as provas orais de Filosofia e de Ciências Naturais , esta meu terror, já dispensado nas restantes. Filosofia , que adorava , o professor do júri era aquele meu jovem professor que tivera nas aulas . Mas Ciências Naturais tinha um professor de júri desconhecido , de outro Liceu e as matérias eram vastíssimas , Mineralogia e Geologia , Botânica e Zoologia, mais ou menos fáceis de ultrapassar em prova escrita mas complexas para um exame oral , para mais atrapalhado pelas minhas dificuldades de voz, que só conseguia esconder quando ciente da minha boa preparação. Desafio assim posto, parto para em poucos dias aprender o que não tivera êxito em dois anos ! Folga nessa tarefa obsecada , e não conhecendo a figura do professor , me decido pelo menos assistir a exames dos meus colegas , véspera da tarde do meu. E sorte ! me apercebo em 3 exames consecutivos que o bom do professor fazia uma sequência de perguntas dentro de roteiro construído nas mesmas matérias ! Correndo para casa , passo essa noite e manhã do dia seguinte no estudo exclusivo do roteiro do professor !
Resultado – sinto o encantamento dos presentes na sala , professor me elogiando , ato anormal em exame, exemplo para todos os alunos ! E então só mais uma pergunta , para me mandar embora , nota altíssima - e o professor sai do roteiro, me pergunta coisa simples da origem de um mineral , e eu ,nada esperando aquela fuga de « script » me atrapalho todo e erro várias vezes , meu « show » prejudicado e com ele minha nota final não tão alta assim !

Estou então chegando na Universidade ,dispensado do exame de admissão específico. E recebo das mãos daquele Reitor desagradável , eu orgulhoso e altivo pelo prazer da minha vingança , em cerimônia solene, um livro com dedicatória e assinado por ele, prémio pela Distinção naquele Exame do 7º ano – D.Sebastião , de Queiroz Velloso , 3ª edição , de 1945 , guardado em minha estante até hoje . Verdade que nunca o li !

Passando em frente ao Liceu , tempos depois, cruzo com os meus antigos professores de Matemática ( 5 anos tentando me derrubar ! ) e de Português ( aquele que se satisfazia com os meus problemas de voz ! ) , juntos em sentido contrário ao meu, eu passo indiferente sem qualquer cumprimento e ouço , voz nas minhas costas , autoritária e indignada de cobrança do sinal respeitoso que eu não dera – « o senhor não é aluno do Liceu ? » , pretexto para punição certa de ato de indisciplina . Gosto da vingança na voz , não tive qualquer dificuldade em responder secamente « não sou » !

Do meu Pai , não me recordo de receber um abraço de parabéns !

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