janeiro 30, 2009

03 FORMANDO UM ADULTO

Na Universidade - Serviço Militar - Casamento


1956 , 17 anos de idade ,entro no IST – Instituto Superior Técnico com o número 4820 . Mais para longe do meu casarão, adiante do Liceu Camões e já não atingível pelos carros elétricos que passavam debaixo da minha varanda , o IST – inaugurado logo depois do início da República ( 1910 ) - tinha 5 cursos de Engenharia – Minas , Civil , Mecânica, Electrotécnica e Química Industrial – alcançados com 3 anos de estudos de caráter geral , seguidos de 3 anos de especialidade , 36 cadeiras , algumas poucas ocupando só meio ano escolar .
Eu tinha feito a minha escolha vendo anúncios de jornais em que se pediam Engenheiros Químico – Industriais . Primeira aula, assustado com as dimensões das salas , grandes anfiteatros tal qual tragédia grega, me deparo com mais de 150 calouros como eu , lotação ultrapassada , gente em pé, professor de Química Geral entrando e , abismado , contar que « como era possível tanta gente , se no ano anterior tinha apenas tido 8 alunos e em anos mais para trás não mais de 4 ?! »

A Universidade era então só para a classe rica , carros enchendo o Estacionamento , jovens empertigados que nos olhavam com alguma ironia , para alguns estranhos naquele meio como eu e outros poucos colegas . Amigo meu de permanente companhia ,vindo dos anos de Liceu , já precisando trabalhar para sustento próprio e de uma irmã também estudando , me dizia – a grande diferença entre eles e nós, é que nós precisamos estudar para sobreviver , eles precisam do canudo para pendurar na parede !
Para privilegiar esses não necessitados, os livros didáticos eram muito poucos , às vezes escritos pelos professores , outros pelos próprios alunos, feitos em duplicadora e vendidos na Livraria do Instituto , as nossas sebentas , precários meios de estudo ; outros , só disponíveis em língua estrangeira , espanhol e inglês , caríssimos , sonho de consumo inacessível de estudante pobre!
Único recurso então , restava copiar para o caderno afincadamente o arrazoado do professor , tal gravadoras humanas , fazendo desses cadernos – os de melhor letra e de alunos velozes na maratona da escrita , bons ouvidos naquelas salas lotadas – mercadoria altamente cobiçada !

Logo eu fiz minha escolha - obter empréstimo desses bons cadernos , copiá-los em casa e não assistir às aulas , me livrando das salas cheias e ganhando preciosas horas para me dedicar ao desporto que acabara de descobrir – o tênis de mesa! Bons colegas me permitiram essa opção , me liberando de tempos em tempos os cadernos que eu copiava esfalfadamente até tarde da noite, e que depois melhorava através do estudo ponderado em anotações que me valiam o apreço daqueles amigos que tinham aí , na sua cópia e minhas explicações a suas dúvidas , a retribuição aos empréstimos.

Me dei bem ! Só obrigado a participar das aulas práticas que completavam o currículo de algumas cadeiras , podendo me afastar daquela maioria de colegas ricos e vaidosos, algum prestígio pela boa presença participativa em algumas aulas , contraditória da minha ausência em geral - aquele êxito esporádico resultado de planejado esforço para que isso acontecesse ! - , alargava então minha assistência às sessões duplas de cinema , a práticas desportivas atabalhoadas , a alguns jogos de bilhar e à continuada descoberta da minha Lisboa.

Minha Mãe continuava sua espera de todas as noites, rosto colado na vidraça da janela, brigas a que eu já não queria estar presente . Assistia - se à formação dos primeiros movimentos políticos para a independência das Colônias portuguesas , a Guerra da Argélia estava no auge - esperando De Gaulle - e iam passando pela minha imaginação filmes de Dean Martin e Jerry Lewis , James Dean, Rock Hudson - o inesquecivel « Assim caminha a Humanidade » ! contundente obra de anti – intolerância racial - , de Elizabeth Taylor e Richard Burton, tantos outros .
A música começava então a me apaixonar – Frank Sinatra , Nat King Cole , o magnífico Louis Armstrong , me faziam desejar dispor da sua presença na minha mão . Como não se envolver com


I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself what a wonderful world.

I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
And I think to myself what a wonderful world.

The colors of the rainbow so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands saying how do you do
They're really saying I love you.

I hear babies crying, I watch them grow
They'll learn much more than I'll never know
And I think to myself what a wonderful world
Yes I think to myself what a wonderful world ?

Mas meu Pai não era sonhador!

Sempre alugando quartos naquele casarão , forma de financeiramente poder suportar meus estudos, belo dia surge um senhor bem apessoado -engenheiro dizia – que não para ele mas para uma moça bonita , bem jovem, simples ,que pouco tempo antes viajara do interior para Lisboa , queria alugar o quarto independente com porta para a escada que ficava justo ali ao lado da minha sala escritório , aquela de varanda para a rua. Minha Mãe , após longa conversa se inteirando de pormenores, alugou.
Natural convívio porque a passagem por minha sala era obrigatória na serventia da cozinha , incluída no acordo de arrendamento, eu , sentado na mesa escritório , primeiro respondia ao cumprimento educado da bela moça , depois , mais sem jeito meu do que dela, vinham curtas conversas de coisas banais , pretexto dela e meu para uma pausa nos afazeres. O tal senhor bem apessoado , sempre sizudo, aparecia às vezes , quase sempre para levar a bela moça em passeio.
Acontece que uma noite, após o jantar , ela já mais desinibida , sem ter a espera do senhor sizudo, se propõe me mostrar álbum de fotografias da sua juventude, talvez da família ausente . Claro , eu interessado em tudo que dela fosse informação, nos sentamos no chão , pequena mesinha entre nós dois, para folhear o tal do álbum. Só isso !
Mas , tinha meu Pai que entrar na sala , o que raro fazia ! – impetuoso e mal educado, enxutou dali a moça , me jogou algumas palavras desengraçadas , eu espantado em completo aparvalhamento da situação!
Piorando , porque ainda não satisfeito, dia seguinte esperou a moça na sua ida à cozinha para lhe completar o sermão , porque eu era jovem e só tinha que estudar , porque ele não queria qualquer desvio - essa conversa a moça me contou , tão envergonhada que alguns dias depois o senhor sizudo estava levando ela, malas feitas , para outro lugar menos tempestuoso.
Assim eu ganhei mais uma página no meu livrinho de reclamações sobre o meu Pai e ,talvez , se pior ainda , perdi a oportunidade de boa experiência!
Não foi a reclamação mais dolorida!

Chega o exame do 1º ano , pressa em conseguir aqueles cadernos para copiar as últimas aulas, agora dias seguidos de estudo que me afastavam da varanda e do cinema , primeiras experiências em outro tipo de exames, alguns podendo levar toda a literatura que o aluno quisesse, colegas meus carregados de livros, eu apenas uma Química Geral , de Linus Pauling , que meus Pais tinham podido comprar .
E aprendia novos cuidados , num sistema de ensino que não dispunha de livros únicos, matérias terminando na imaginação dos professores, às vezes só comentadas nas aulas – para mim , apenas dentro daqueles cadernos que copiava. Exame de Matemática Geral , aquela em que vez por outra eu me decidia brilhar nas aulas práticas, caderno cheio de anotações , o Professor Assistente o mostrando para o Mestre ( que não me conhecia , porque as aulas teóricas não tinham a minha presença .... ) , e o Mestre decidindo fazer comigo uma demonstração de seus conhecimentos , em prova oral que me arrazou , platéia espantada !
Saio do exame , na espera da nota final e Professor Assistente me perguntando se aceito nota mínima ou reprovação para voltar em exame de 2ª época, após férias escolares ! Claro, aceitei a nota mínima !
Consigo minhas férias ,sem obrigações , e vejo mais de metade daquela avalanche de 150 colegas da 1ª aula ficando para trás ,uma boa parte desistindo definitivamente.
Aproveito mais na frequência dos cinemas do que em outros entretenimentos , acesso aos livros dificultado pelo fechamento daquele alfarrábio que me ajudara , colegas meus descansando em casas dos pais fora de Lisboa. Na minha música , ainda naquele radinho de meus Pais,ouve-- - se agora a voz extravagante e ousada de Elvis Presley , me despertando para sensações diferentes.
Em lojas de rua ,vitrines expostas para as calçadas , alguns cafés privilegiados, aparecem aparelhos de televisão , imagem treme – treme, preto e branco , fascínio observado com atenção pelos lisboetas , eu incluso ,em pé, procurando vaga para assistir a transmissões noturnas de poucas horas , pouco mais do que notícias, gosto de quero mais!

Chega o 2º ano , eu mais experiente na distribuição dos esforços, mais cadernos copiados .
Exames finais, me dedico para além do normal à disciplina de Física I procurando assegurar êxito no que era por todos considerado o maior obstáculo do Curso , professor orgulhosamente responsável por derrubar em definitivo e só ele a metade daqueles coitados alunos que já eram a metade dos que haviam começado!
Meu caderno todo rabiscado de inúmeras anotações , exercícios de fabulosos cálculos rigorosamente treinados , deixo para trás , conscientemente certo que não sairiam no exame , cálculos de subida de corpos que nem naves estelares, 11 ou 12 folhas de problemas e outras tantas de complicada teoria .

Nesse esforço de entendimento de matérias ouvidas na aula ,repassadas para caderno e por mim replicado para outro , procuro apoio em colega meu , morador próximo do meu casarão , que visito findo o jantar , monte de livros na mão ,toda a atenção dedicada à Física I .
Em total enlevação das discussões , me esqueço completamente das horas , despreocupadamente caminhando para casa 2 horas da madrugada.
Bato na porta, nunca tive chave dela, aqueles livros todos me pesando na mão , minha Mãe me atende e atrás dela , irado desmedidamente, descubro meu Pai , cinto das calças na mão vindo para cima de mim, nenhuma explicação perguntada . Bateu !
Doeu muito ! Não fisicamente, pouco importava, mas na observação da figura obstinada de meu Pai , cego para me empurrar para o objetivo que tinha traçado, desconfiado e nada incapaz de tomar atitudes sensatas como a de me perguntar o que tinha acontecido ! O choque do absurdo passado com aquela moça linda não tinha agora qualquer importância, eu passava a formular o desejo de sair daquele controle e convivência, para encontrar alguma paz que , desde criança , eu verdadeiramente não obtinha .
Mas foram necessárias muitas situações de igual incompreensão , repetidas tentativas minhas para obter mudanças, para que o afastamento realmente acontecesse .

Chego no exame de Física I e surpresa alucinante , prova prática ditada e toda ela daquela matéria das naves saindo da Terra e o professor querendo saber onde cairiam ! Na minha cabeça, prova só rabiscada, vamos ver a prova teórica!
E então , isso mesmo , a prova teórica era direitinha sobre as explicações do que acontecia àquelas naves, me fazendo perder o exame,agora necessidade de o repetir em 2ª chamada ,férias escolares estragadas.
Como o que está mal sempre pode piorar , dias a mais ocupados no estudo daquele desastre ,me falta tempo para dedicar a uma cadeira igualmente dificílima – Cálculo Integral - , que vejo também jogada para 2ª chamada !
Situação irremediável , aproveito para assistir cuidadosamente às provas orais de Cálculo , junto com colega em situação igual à minha , procurando algum alívio para o estrago feito em minhas férias.

Muitos dias passados em casa desse colega, deixando a Física I da qual só me faltava aquela estória das naves, aprofundamos o Cálculo Integral , agora sobrando tempo, estratégia para o exame oral , parte mais difícil.
Tanto exercício realizado , nos apercebemos de metodologias para mentalmente realizarmos alguns deles , dispensando teatralmente o desenvolvimento de cálculos no quadro negro!
Exames de 2ª chamada , prova oral de Cálculo , o Mestre ( de origem indiana , dos Professores de maior capacidade intelectual que conheci ) chama o meu colega , lhe dá nota alta e o dispensa da oral !
Ele era letra A , eu letra C , exame no dia seguinte. E aí subo na frente da platéia que sempre acompanhava nossos desastres, raras vitórias, convencido da surpresa que lhes proporcionaria ! Decepção ,o Mestre nem olha para mim , me dá nota (alta ) e dispensa num ápice! E eu , parado por segundos , penso naquela frustação , vontade de pedir ao Mestre para fazer exame oral – tipo tudo ou nada, probabilidade de nota mais alta ou de desastre – e saio descendo o estrado , lembrando ràpidamente daquele exame de Matemática Geral do ano anterior !

Então ,estou entrando no 3º ano , ultrapassada a etapa mais difícil da corrida para o canudo , perdendo com tristeza aquele amigo que pagava os estudos da irmã , ele tendo de fazer a difícil opção entre continuar a estudar e interromper os estudos da irmã, que agora havia chegado também à Universidade , ou passar a trabalhar em tempo integral, abandonando ele o sonho de se formar , pelo menos por longo tempo .

Estou com 20 anos , passam pelos jornais notícias assustadas do bloqueio dos Estados Unidos a Cuba, de mísseis nucleares de mau presságio de uma possível nova guerra mundial, e aí eu tenho de tomar a primeira grande decisão de minha vida – exame militar obrigatório , podendo de alguma forma fácil encontrar dispensa do Serviço Militar , ou assumí-lo , no que seriam 6 meses de treinamento, a fase de recruta, e depois um ano de passagem por um quartel ali de Lisboa . que todos diziam não ser obstáculo à continuação dos estudos .
Vontade de me afastar dos problemas dentro do meu casarão , subconscientemente isso me fez decidir pela condição que também satisfaria algum orgulho de virilidade lusitana – faria Serviço Militar !
Então exame médico depois, nova decisão , entre esperar a conclusão do Curso e então fazer o Serviço Militar , estaria com 23 anos, ou já , Curso não concluído, dar-lhe iní cio a partir de agosto do ano seguinte 1960, eu com 21 anos, na tentativa – eu ia conseguir ! – de apressar a minha entrada no mercado de trabalho , independência financeira .
Não hesitei , começaria o Serviço Militar ainda estudando ,entraria em agosto 1960 , terminaria o Serviço Militar e a Universidade ao mesmo tempo ! A fuga à pressão hostil do meu Pai justificava o esforço que me esperava, na verdade iriam faltar só os 5 º e 6º anos, todos diziam que eram fáceis.
Sem qualquer intuição – mão do destino que nos conduz ! ou não ! – estava ali a tomar uma decisão que mudaria o que eu achava , desde bem novo , fosse o rumo rígido da minha viagem .

Definitivamente ausente das aulas teóricas , tenho que continuar a frequentar as aulas práticas , obrigatórias, onde fazíamos exercícios e experimentos quase sempre em grupos de 2 ou 3 alunos. Mal conheço meus colegas , embora passados dois anos de convívio , afora os que me emprestavam os cadernos e , poucos, companheiros dos jogos de tênis de mesa, de bilhar , da descoberta de Lisboa e , claro ,das sessões de cinema.

Nesse meu relativo sossego, vou driblando as dificuldades financeiras com a ajuda escondida de minha Mãe, e as agora quase diárias desavenças com meu Pai , mesa de almoço , muitas vezes me levando a passeios até lá ao fundo da avenida , para me perder olhando para o vai-vem das águas do Tejo, sol espelhando na superfície, pensamentos querendo mudanças .

Então me encontro ,manhã fria de final de Inverno , participando de uma aula prática de Física II , absorvido com uma pesagem não sei para quê – uma moça que nunca vira antes , se aproxima e me pergunta qualquer coisa .
Bata branca vestida , aparência simples, de imediato diferente das outras minhas colegas, na maioria ricas, espalhafatosas e até oferecidas, ali em pé na minha frente e meu pensamento saltando , luz de clarão explodindo, forma-se na minha cabeça com nítida clareza – esta moça podia ser a Mãe dos meus Filhos ! Nada ,em nada ,me fazia esperar aquela sensação, aquela idéia,eu não queria namorar , menos casar, queria acabar meus estudos, terminar meus problemas !
Mão do destino que nos acompanha ! ou não ! aí estou eu indo assistir a aulas teóricas, esperança de voltar a encontrar aquela moça, aquele inefável momento me saltando na cabeça. E encontrada, convite para passear ,nos damos dentro de carro elétrico cruzando Lisboa, pretexto para conversar.
Que tinha vindo aquele ano da Faculdade de Coimbra, Pais distantes morando em Pombal , ela em pensão pacata ali para os lados de cima do Instituto, ruinha ao lado de grande fonte luminosa , Maria Justina ,25/2/1935, Tininha para mim desde logo.

Dias de prolongados passeios , de um enlevamento deslumbrado , namoro começado – 20 de abril 1959 !

Passeios continuados , vidas de passados recontados e futuro de esperanças, minha Mãe primeira a saber , depois indo ao cinema na apresentação ao meu Pai , futura Sogra conhecida em visita dela a Lisboa, aí caminhamos , agora juntos, para os exames do 3º ano.

E vêm as férias escolares , eu já no 4º ano , ela com alguns exames atrasados , dolorosamente separados , eu em Lisboa , ela em Pombal com os Pais , cartas todos os dias trocadas , continuado enlevo de corações de estudantes apaixonados !

Novo ano começado ,Tininha se transfere para a Faculdade de Ciências , nova pensão por lá próxima. Meus dias já pouco se ocupam com o tênis de mesa e o bilhar , mas aprofundo os conhecimentos sobre Lisboa em passeios sem fim e descubro novos cinemas com aquelas sessões duplas , muito melhor agora porque assistidas a dois.
E nos assentamos nos cafés de Lisboa ,longas horas de trocas de emoções , muitas horas de estudo, meu 4º ano difícil por causa dos terríveis cadernos, talvez eu mais distante de meus companheiros de troca, Faculdade de Ciências também complicada por matérias diferentes , extensas e desinteressantes.

Talvez mais complacente com as dificuldades de convívio no meu casarão , sensação de liberdade próxima, não deixo de ser sobressaltado pelos desaforos de meu Pai, algumas vezes o acompanhando em café ali próximo de casa, discussões se iniciando de qualquer fagulha , meu Pai me joga ,voz alta ,meio do salão , « tu és um comunista » ! . Não que não houvesse nessa época algum charme em ser comunista , vivia - se nas sombras o mito Fidel de Castro , o País se assombrava com a fuga de Álvaro Cunhal da prisão ( principal liderança do ilegal PCP ) , mas eu não o era e , naqueles tempos de polícia política feroz tudo escutando , o perigo era imenso !

( Anos mais tarde - 1965 - regressado de Moçambique ,tenente do Exército servindo no Ministério do Exército , defendo em relatórios ao Ministro um colega meu , de brilhantes serviços prestados na guerra da Guiné , condecorado , querendo continuar no Exército após regresso de África , já civil , porque achava essa ser a sua profissão – e recebo clara negativa do Ministro porque aquele brilhante oficial que tinha colocado a vida ao serviço do Pais, tinha sido em novo , 18 anos, em café de Coimbra . ouvido a falar mal do Governo ! Isso estava em seu currículo da polícia política ! )

Nas horas de café, local de estadia dos jovens daquela época , vício que ainda é dos Lisboetas , um dia , com a Tininha , me encontro com bom amigo meu, chegando à mesa em que ele se encontrava sentado, mergulhado em cálculos tremendos e que espantadamente me diz ,
- Graça ,como pode ser !?
Tem 3 amigos no bar, a despesa é de 25 escudos ( moeda daquela
época) , dão 10 escudos cada um, o garçom devolve 5 ,desses 5 dão 2
ao garçom e cada um guarda 1 de troco. Então ,cada amigo deu 9
escudos ,3vezes 9 dá 27 , com 2 escudos que o garçom recebeu ,dá
29 escudos – Graça ,onde estão os 30 escudos? Falta 1 !!!
Meu colega tinha colocado moedas em cima da mesa e fazia cálculos , acho que os fará até hoje!
Com esse bom amigo e a Tininha , vamos festejar o meu aniversário de 21 anos , em restaurante lado de lá do Tejo , varanda dando para as águas quietas do rio , gastando dinheiro que era mesada da Tininha e com que ela me presenteava aquela festa , jovens alegres confiantes no futuro. Ganho da Tininha um lindo cachimbo , que era sonhado , e desse amigo , recebo ali uma cigarreira de prata , presentes que guardo nas minhas gavetas de coisas antigas e dentro do meu coração , lembrança de dias fáceis terminando.
Dos meus Pais , não lembro receber um abraço pelos 21 anos , maioridade atingida !

Como Lisboa estava bonita naquela Primavera de 1960 !
Não obstante o aguçar da guerra fria, o início da corrida espacial rumo à Lua dos sonhos dos namorados, as mulheres ganhavam coragem para assistir às matinês das seis e meia da tarde no cinema , já noite, e mais audaciosas algumas vestiam calças compridas para o deleite surpreso dos Lisboetas .
Meus Pais recebiam o primeiro telefone , a televisão se expandia nos cafés e vitrines de Lisboa, ainda sonho de consumo muito distante para a maioria,.
E eu descobria como Lisboa podia ser ainda mais bonita do que eu conhecia, subindo as ruas apertadas de Alfama, casas pequenas de gente muito pobre , com varais estendidos secando roupa colorida , portas abertas saindo o som da primeira rádio novela portuguesa – patrocinada pelo sabão em pó « Tide » , figura principal uma coitada de uma coxinha, ouvintes em lágrimas - , subindo ladeiras para o topo , lá em cima o Castelo de São Jorge , muralhas de ameias recortadas , cheio de sombras de locais escondidos , prazer de namorados.

Juscelino Kubitschek visitava Lisboa, alvoçarada pelas notícias da inauguração de Brasília e da expansão industrial que se iniciava naquele País que vivia no imaginário dos portugueses , Rio Tejo enfeitado de embarcações engalanadas , ruas apinhadas de gente, papeis picados jogados das janelas.

Aniversário da Tininha , 25 anos ,corro para comprar – muita insistência com minha Mãe , única salvadora! – uma salva para salada ,louça enfeitada, que seria primeiro utensílio para futuro Lar , continuando guardado até hoje.

Mas , inapelavelmente, os exames do 4º ano estão aí .
Talvez meus esforços já não tão insistentes , deixo para trás , esperança de 2ª chamada, duas cadeiras – Mecânica Quântica e Construções e Instalações Industriais .

A Tininha resolve deixar a Faculdade de Ciências , algum desgosto por tão continuada dependência dos Pais, minha Sogra muitas vezes desagradável , e consegue primeiro emprego em agência da Previdência Social .

Agosto , vou dar início ao meu Serviço Militar - e , surpresa ,sou colocado na Arma de Engenharia , primeiros 6 meses em Tancos !
Distante 120 Km de Lisboa , alcançável por 3 horas de trem, Tancos era uma pequena aldeia florida , diziam que fundada por cavaleiros franceses , no Distrito de Santarém , bem perto da terra de infância de meu Sogro – Constância – poucas centenas de habitantes , onde se integrava o Polígono Militar de Tancos – Escola Prática de Engenharia , Aeródromo Militar e Escola de Paraquedistas.
Maravilhosa beleza dessa região , um magnífico Castelo construído em ilha no meio do Tejo – Almourol – podia ser observado de inúmeros pontos altos de um e outro lado do Rio.

Jogos Olímpicos de Roma se iniciando , lá vou eu para a dramática experiência de dormir numa casamata de camas estreitas colocadas lado a lado , para vinte e poucos recrutas, quase todos já cursos completados, Engenharia ou Arquitetura, 3 ou 4 anos mais velhos do que eu , maioria de classe rica .
Sanitários de meias portas mal encostadas , grandes pias de cimento com tôsco espelho , chuveiros de água fria . Restaurante lá longe , horas determinadas para refeição, luzes apagando 23 horas , clarim anunciando a obrigação de dormir , e de acordar 6 horas da manhã para rápida corrida ao Refeitório e depois sessão de ginástica, frio , chuva ou sol que fizesse !
Pouco tempo para limpar naqueles sanitários malcheirosos as marcas de terra dos corpos suados , e horas e horas de aulas , almoço corrido no meio.

Meus exames de 2ª chamada estavam irremediavelmente esquecidos ! Ano escolar perdido – e pior , perdida a bolsa de estudos - tento compensar o contratempo com dedicação aos estudos e às provas físicas ,objetivo de conseguir classificação nos primeiros lugares do Curso , opção para ganhar vaga em quartel de Lisboa ao final .
Fico freqüentador do trem Tancos – Lisboa ,todas os fins de tarde de sextas feiras e último trem saindo nas noites de domingos , passagens baratas em carruagens de 3 ª classe, cheiro de comida no ar .

A relação com meu Pai ganhava agora contornos de clara hostilidade por parte dele, certamente por oposição ao rumo que via eu tomar , contrário ao namoro , à minha ida para o Exército e , pior , à quebra na seqüência dos meus estudos. A situação financeira dele havia melhorado , pensão recebida do Exército, emprego na Previdência Social em progresso pela dedicação que nele punha, aluguel do casarão muito barato pago com o aluguel agora só de um quarto ; talvez eu , com 21 anos, desviado dos objetivos dele , talvez seu planejado meio de melhoria social que não estava dando certo , começasse a ser uma carga malquista !
Daquelas passagens baratas , ouviria anos mais tarde de minha Mãe , repassando certamente a animosidade de meu Pai , assimilada pelos anos de convivência com ele , que sempre as tinham pago , como comentário de benevolência para comigo !

É provável que eu mal me apercebesse aí por inteiro dessa animosidade , talvez eufórico de uma nova situação, que embora difícil a mim não preocupava certo que com a minha vontade e esforço lhe faria frente , nunca abandonado o objetivo de me formar , apenas adiado , eu não tinha dúvidas.

Na corrida semanal de viagens ,mal acompanho os Jogos Olímpicos,que pela primeira vez são transmitidos ao vivo pela televisão , esta agora mais espalhada por vitrines e cafés, sonho de consumo ainda distante da maioria dos portugueses. As vitórias do magnífico Cassius Clay no boxe e do extravagante maratonista etíope que corria descalço ,me escapam.
Mas com a Tininha , o salário dela nos permitia horas de conversa na mesa dos cafés , eu me recuperando do cansaço de Tancos, nossos projetos de vida recontados.
Olhado algum tempo com desejo de posse , vitrine de loja que permitia compras em prestações – só para empregados públicos, a Tininha era ! – nos tornamos proprietários – com orgulho ! – de pequeno rádio portátil , Wilco Deluxe, recém novidade japonesa que agora ia ajudar a Tininha nos dias que eu passava em Tancos, onde ela escutava músicas que iniciavam a Bossa Nova brasileira, João Gilberto em « Chega de Saudade »

Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela
não pode ser , diz-lhe numa prece
que ela regresse , porque eu não posso
mais sofrer. Chega de saudade a realidade
é que sem ela não há paz , não há beleza
é só tristeza, e a melancolia
que não sai de mim , não sai de mim ,não sai

Radinho que é meu troféu eletrônico, muitos outros tendo passado pelo meu entusiasmo, não importa que bem melhor construídos , mais suficientes ou mais belos – aquele « é » o radinho , e ainda funciona!

O Inverno no norte de Santarém , lá para Constância , é muito frio! De trem, chegando a Tancos na estação mal iluminada ,eu e colegas caminhávamos por estrada fora até o Quartel, cortados pelo frio ,eu sobremaneira tolhido que me deitava vestido , só botas jogadas para o chão , esperando o toque de clarim de algumas poucas horas depois .
Os campos estavam cobertos de fina camada de neve , das árvores caíam fiapos de água congelada no ar, as mãos sujas de óleo da arma velha que pesava no ombro , todas os dias era a mesma rotina de exercícios seguidos de aulas seguidas de corridas pelas paisagens deslumbrantes do Tejo que mal olhávamos , seguidas do desconforto daqueles banheiros .
E tinha o mais odiado ! aqueles cavalos das horas de hipismo, cavalos matreiros que sentiam o nosso medo naquelas filas uns enfiados nos outros, corrida em volta do picadeiro, pavor de cair para qualquer lado nas pinoteadas dos animais que pareciam se divertir! Algumas vezes procurei dispensa dessas aventuras ,me refugiando na Enfermaria ,desculpa de dores acontecidas em exercícios mal dominados ou em mãos esfoladas das quedas pela terra empedrada, fugindo de destino igual ao de dois colegas que tiveram os pulsos quebrados .

Termina essa odisséia , consigo o 4º lugar e com ele a sonhada colocação em Quartel de Lisboa, Campo Grande , lá mais para diante onde era a Universidade , que eu tinha deixado para trás , cadernos a que não tinha tempo para dar atenção.

Sou agora oficial do Exército , Aspirante , tempo de serviço obrigatório mais um ano, orgulhoso na minha farda e reconfortado pelo salário que passo a receber.
Animosidade maior ainda de meu Pai, alcanço patente que ele tanto tinha ambicionado mas que para ele, iniciado como soldado, era um objetivo quase impossível , de cursos de seleção rigorosa , impedido pela idade , que o tinha feito tomar a decisão de se aposentar por alegada doença.
Mas os passeios por Lisboa são agora mais aconchegantes, podemos saborear os lanches de batata frita acompanhada de tremoços e chopp ou aqueles maravilhosos bifes das cervejarias de cheiro forte de mar, aquários de mariscos vivos nos desafiando , juventude plena ,vida começando a dar certo , futuro ali nas nossas mãos que viria em emprego meu logo que terminasse o Exército e retorno aos estudos , Universidade a completar.

A Tininha concorre a vaga para Laboratório de análises químicas ,empresa privada , prestigiada, e ganha novo emprego, futuro mais promissor , onde em pouco tempo lhe reconhecem valor e dedicação .
Sem viagens para fazer, o tempo passa agora mais confortável, Lisboa é magnífica na Primavera, jardins começando a florescer , avenida cheia de esplanadas onde os lisboetas fazem lazer, ruas até aoTejo fervilhando de gente que passeia e entra nas lojas e restaurantes apinhados .

Tinha terminado pela rendição dos sequestradores às autoridades brasileiras , no Recife, Brasil , o assalto e sequestro do navio Santa Maria , que fazia a rota Portugal – América Central , em manobra de contestação política aos regimes ibéricos comandada por um capitão exilado Henrique Galvão .
No Quartel , eu cumpro com as obrigações de Oficial de Dia, meio que dono dali na ausência do Comandante , almoço feito na Cantina própria , oficiais todos reunidos. E , 4 de fevereiro de 1961 , a notícia primeiro sussurrada e depois ouvida tragicamente pelo rádio, explode a guerra em Angola, cadeia e delegacia policial assaltadas em Luanda , no Norte impacto de assaltos a fazendas por turbas de africanos , espingardas e facas , embriagados e drogados , atrocidades com famílias inteiras de colonos desprevenidos , quase nenhumas tropas para defender tão vasto território , as poucas por lá mal preparadas e quase desarmadas !

O País se prepara rapidamente para essa guerra inesperada e não desejada, ordem do Presidente do Conselho , Salazar , agora também Ministro da Defesa , « defenderemos com todas as nossas forças o nosso território nacional das investidas do Comunismo » . Povoam o noticiário tragédias de mortes escabrosas, mulheres estupradas , corpos dilacerados em insânia descontrolada, colonos que fogem de suas fazendas , estradas com pontes explodidas , as poucas tropas portuguesas também destroçadas.
A ordem nos Quartéis é de preparação rigorosa e rápida dos milhares de soldados que passam a ser recrutados , chamada de militares na reserva , fabricação maciça de armas e equipamentos.
Na confusão espantada desses dias, sou deslocado para a Pontinha , fora de Lisboa alguns quilômetros , lá para Odivelas , local onde se fará treinamento de soldados vindos de todo o País , assustados , e que durante meses serão minha preocupação de Oficial viril e patriótico.

Cadernos de estudos bem longe das minhas preocupações , a compensação vem dos passeios de finais de semana com a Tininha, em carro dos Tios dela,
que me haviam agradavelmente acolhido embora ele de difícil relacionamento , casado com Irmã de minha Sogra ( claro ,futura ! ) .
Esses passeios me levam para praias além de Cascais, até Sintra dos maravilhosos Castelos , Palácios e Igrejas, vila de origem pré – histórica , passagem dos mouros, cultuada por artistas . E onde encontro os mais deliciosos doces da culinária portuguesa , arte que já é paixão da Tininha .
Nas notícias , constantes informações vindas de Angola, mesas de café fervilhando de comentários assustados, a ONU condena a política colonialista portuguesa , que não são diminuídas pela emoção do primeiro
Homem no espaço, o russo Gargarin , a que se seguiria um americano logo depois.
De notícias chegadas ao Quartel , militares feridos que retornam, outros que vêm preparar armamentos, se ouvem relatos aterradores, assassinato de colonos por formas atrozes – e são já passadas fotografias, de mão em mão , crianças desmembradas , mulheres serradas ! São contadas estórias de heroísmo dos soldados , ainda poucos, saindo de Luanda direção ao Norte, que vão encontrando essas chacinas pelas fazendas e vilas e respondem a ataques desordenados de africanos comandados por estrangeiros a Angola - lideranças treinadas no exterior visando o caos absoluto - com fogo de metralhadoras que têm de ser resfriadas com panos encharcados de água ! O uso de napalm incendiário através de lança - chamas torna-se rotina , tudo gerando ódio dos dois lados de combatentes que antes não existiria.

Nos meus deveres de Oficial, me incumbem de com equipa de soldados fazer a preparação de embarque de tropas no Cais de Lisboa, demarcação de lugares e desfiles, localização de viaturas e autoridades, policiamento militar. Assisto aí a cenas cruentas de choro lancinante das mães que se despedem dos filhos embarcando, tumulto de sentimentos de que procuro me afastar o mais rápido possível, navio ainda encostado .
Em todos esses trabalhos ,ainda sofro em cerimônia de acompanhamento militar de enterro de um General , que me deixa com os soldados quase duas horas em posição de sentido , sol escaldando os capacetes , só porque o caixão de tão grande não cabia na tumba familiar !

Na absorção desses problemas , estava afastada de minha cogitação a possibilidade de uma participação direta no conflito que angustiava o País, eu era da Arma de Engenharia que nele não teria muito o que fazer. Mantenho assim a preparação cuidada dos meus recrutas , esses certo que iriam de seguida para África e nossas conversas , Tininha e eu , não contêm referências a imprevistos.

Termino a preparação daquele contingente de tropas e regresso ao Quartel no Campo Grande , aos afazeres preguiçosos de Oficial de Dia , meu tempo de um ano de serviço militar se gastando.

Verão quente como todos os de Lisboa, 2ª quinzena de Julho se iniciando e tudo explode – manhã , chegando ao Quartel , o Comandante me parabeniza !
- Aspirante Graça, você vai para Moçambique , parabéns!
Notícia mal digerida , se explica o alvoroço do Comandante , na verdade eu era militar de sorte, todos indo para Angola, para a guerra, e eu nas primeiras tropas indo para Moçambique, nenhumas notícias aí de movimentos revolucionários inesperados , populações já avisadas e mais preparadas.

Preso na armadilha , venho para contar à Tininha , banco de jardim em praça ali próxima ao local de trabalho dela, fim de tarde . Nada préviamente pensado , apenas convicção de jovem ardente – talvez mão que nos acompanha ! ou não ! – aí eu decido que nos casaríamos antes do meu embarque , marcado para 23 agosto próximo ! Depois nos esperavam dois anos de separação, tempo de duração da convocação militar , retomaríamos nossas vidas depois , planos feitos no nosso choro de angústia e já de saudades !

Dali , vou para casa de meus Pais , sozinho , partindo para contar da convocação militar e das decisões acabadas de tomar , sempre na esperança de algum apoio.
Sentado na sala de jantar – aqueles móveis que carregavam o sofrimento de minha Tia – escuto de meu Pai barbaridades desaforadas , num comportamento grosseiro que mesmo toda a minha experiência com essas situações me não fazia esperar ! De minha Mãe , menos capaz de grosserias, também não recebo compreensão , qualquer carinho .

Decidido, dia seguinte começo a tratar da documentação necessária para o casamento , felizmente os dois somos naturais de Lisboa , pouco tempo disponível para tanta burocracia , que vai sendo vencida papel a papel , presença insistente na frente de funcionários públicos . Os Pais da Tininha, informados, são mais compreensivos e o casamento é marcado para a Igreja Matriz de Pombal.

Manhã de Domingo , 6 de agosto de 1961 – aí estamos casando « por toda a vida até que a morte os separe » !
A noiva , lindíssima no seu vestido branco , cauda comprida , e eu na minha farda de Oficial do Exército, bolo de casamento mal cortado , saímos em carro de amigo de meu Sogro para Termas próximas dali , Lua de Mel apressada , as férias do Quartel acabando já ali , dia 11 seguinte .

De meus Pais , única Família minha ali , não recebi presente de casamento , nem simples abraço de parabéns ! As fotos foram obrigação perante o fotógrafo, contratado pelo meu Sogro.

Então, no atordoamento feliz de emoções tão rápidas , vimos para Lisboa , casarão de meus Pais, ultrapassando comportamentos indelicados , as situações não nos permitindo escolha e a própria alegria querendo perdoar e não ver.
Retorno ao Quartel . Aquele Comandante é uma pessoa simpática – « Alferes Graça, você será o comandante da Companhia até Angola, o navio vai atracar em Luanda , o Capitão entra aí . Prepare seu pessoal para a cerimônia de entrega do Estandarte » .
Bom , agora eu era Alferes ,minha experiência dos trâmites militares era nenhuma, eu era miliciano , não de carreira , e minha preparação não tinha sido para isso ! Até Luanda as coisas não serão difíceis ,eu pensei .
Os dois colegas alferes milicianos que fazem parte da Companhia são mais velhos em idade , cursos de Engenharia terminados , Universidade do Porto , mas piores classificados no curso em Tancos – assim eu era militarmente « mais velho » e recebia aquela honra !

Reconhecidos Sargentos e Soldados do mesmo infortúnio , trocam – se informações das vidas de cada um , procura-se apoio na rápida formação de amizade que sabe-se irá fazer falta para vencer aqueles dois anos, estórias de Angola na cabeça de cada um , graças a Deus que vamos para Moçambique!
E aí, surpreso e depois atentamente interessado , ouço um dos Alferes , Engenheiro Civil , contar que com ele estava indo a esposa , professora em colégio no Porto , que se licenciara , iria no navio aproveitando uma viagem de 3 semanas em torno de África – navio que transportava também civis – e que depois em Moçambique procuraria dar aulas ! Moçambique parecia longe de problemas de ordem social e a viagem no navio « Príncipe Perfeito » deveria ser maravilhosa , aquele navio estava fazendo praticamente sua viagem inaugural , o mais moderno da Companhia de Navegação !

Corro para o casarão , idéias explodindo - salário de Alferes era bom , meu Sogro havia dado algum dinheiro à Tininha, presente de casamento, Tininha em Lisboa, sozinha, teria de continuar em pensão , a convivência com meus Pais era impossível , e porque não ir também para Moçambique? Teria companhia da esposa do meu colega, nós teríamos uma Lua de Mel fascinante , Moçambique nos iria ser favorável , qualquer dificuldade iria para um grande centro ou regressaria a Lisboa.
Mais corridas de táxi por Lisboa, necessária autorização do Comando Militar , passagem comprada , famílias informadas , Tininha se desliga do Laboratório – agora meus Sogros não se conformam , decisão de jovens audaciosos , sem experiência de vida !

Bagagens despachadas para o Príncipe Perfeito , é véspera do embarque , tem ainda aquela cerimônia de entrega do Estandarte .
Manhã cedo, adentro o Quartel , me certifico de tudo em ordem ,subo a escada que dá para as salas ocupadas pelo Comandante , procuro últimas ordens para a cerimônia. Não preciso passar de alguns lances, Comandante descendo , faço continência.

Decididamente meu Comandante era um militar que gostava de surpresas !
Quase me abraçando , largo sorriso , ele me joga
« Alferes Graça , que sorte sua ,você foi desmobilizado , já não embarca !
Favor , comande a Companhia só para a entrega do Estandarte »

Que fazer , pernas tremendo , voz se embargando , total estupefação ? !
Vou para a cerimônia , presentes Chefe do Estado Maior de Lisboa , Diretor da Arma de Engenharia, senhoras de Movimentos Sociais, as fotografias que iriam sair nos jornais não apanham a minha indignação , ouço os discursos patrióticos de honrar as tradições históricas do Regimento – aquilo não era comigo !
Termino o desfile, peço licença para não comparecer ao almoço de mais discursos patrióticos e saio em disparada para o casarão de meus Pais .
É hora de almoço ,vou com a Tininha ao Quartel General de Lisboa – como os táxis ganharam dinheiro comigo naqueles dias ! - me apresento ao Oficial de Dia , que condoído da minha aflição , estória contada de mulher com passagem comprada e malas já embarcadas , me leva na sala de almoço dos Oficiais, Comandante se levantando e me atendendo na porta .
Sigo para o Ministério do Exército , aquele Comandante havia telefonado para me atenderem , falo com um Major que me explica - o meu Curso de Oficiais de Engenharia de 1960 tinha sido todo convocado, já se estava chamando o Curso de 1959 , e neste , logo nos primeiros que seriam convocados , tinha filho de Ministro – experto e bem informado , o paizinho tinha substituído um simples oficial , eu, pelo filhinho de papai , uma vez que aquela Companhia ia para Moçambique , local calmo !

Menos das 5 horas da tarde, cansado mas feliz, estava de volta ao meu Quartel , ordem de desmonte da tramóia na mão !

Aquele Major , de ajuda amiga e corajosa , voltaria a fazer parte da minha vida , anos mais tarde, naquele mesmo lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário