janeiro 30, 2009

04 SERVINDO O PAÍS

Em Moçambique

23 de agosto de 1961 , 4ª feira ,fim de tarde – hoje não fui eu que demarquei os locais de desfile daqueles que embarcam para África !
Hoje estou aqui para embarcar !
Sou um jovem Oficial, 22 anos, imbuído de um patriotismo sincero tirado da leitura dos livros únicos escolares , de rigorosa censura por um Governo autoritário de práticas de nazismo alemão , orgulhoso dos feitos históricos dos meus antepassados e que acredita com absoluta sinceridade na necessária continuidade do patrimônio territorial português . Conheço Portugal de o olhar de Lisboa e das informações ouvidas das notícias censuradas , vejo as diferenças sociais mas acredito na oportunidade para todos ,exemplo dos meus Pais e do meu percurso até ali , embora pobre mas beneficiado por bolsas de estudos . Da história de África conheço as gloriosas jornadas dos navegadores, os navios negreiros são pontos obscuros da história e agora os relatos da guerra de Angola trazem notícias de sua origem em ativistas externos, comunistas , o Muro de Berlim tinha sido acabado de construir , a revolução cubana tinha a sua Baía dos Porcos .
Ingênuo , sonhador , amante de livros e cinema, com uma preparação militar insipiente no comando de tropas e nas técnicas de guerrilha, aqui estou responsável pelo embarque de quase 150 homens ,entre algumas centenas de outros , que desembarcam de caminhões militares e que , desfiles apoteóticos já então abandonados das práticas de embarque , são envolvidos pelos familiares em últimos abraços de despedida , aqui e ali mais dolorosos porque acompanhados de choros convulsivos e de gritos patéticos de mães e namoradas , navio qual figura fantasmagórica ali esperando encostado ao cais.
Coração acelerado , pressa de subir ao convés , me despeço dos familiares e subo a escadaria pendente do navio , meio balouçante , já cheiro de mar se projetando no ar. Tininha lá em cima , alcanço a amurada do navio , meus olhos retratam aqueles momentos de estranha perturbação ,lenços que se agitam , gritos de chamamento , rostos de lágrimas saudosas e medrosas pelo futuro incerto ; algumas jovens meninas de movimentos sociais procurando o Comandante daquela Companhia , para um beijo de despedida patriótica, espantadas ao sabê – lo tão jovem ! Desço ao interior do navio ,1ª classe , corredores de tapetes espessos abafando os passos, espelhos que projetam um ar solene no ambiente , arrumo as bagagens no camarote e subo para um último olhar de despedida.
Lentamente o navio se afasta do cais , cordas tiradas, ancora levantada .Os ruídos das famílias vão sendo substituídos pelo aconchegante barulho das ondas do mar que quebram no costado, é fim de tarde ,algumas luzes começam a se acender na cidade .
Envolvido por sensação inebriante de paz ,olho para o além por cima das águas. Meus pensamentos se juntam e eu vejo – mão protetora que nos acompanha ! ou não ! – que eu precisava ter feito o Serviço Militar naquele ano, que eu precisava ter casado , que a Tininha precisava estar ali , tudo isso tinha contribuído para que eu estivesse a caminho de Moçambique naquele momento , onde não havia guerra , se algum daqueles fatos não tivesse acontecido eu estaria embarcando anos mais tarde para qualquer ponto de África em guerra !
Da amurada , olho para a cidade que aparece já distante . Como era bonita minha Lisboa ! No meio do estuário do Tejo vejo a Torre de Belém iluminada , qual adeus dos antigos navegantes para os navios que se afastam , a cidade por trás dela parece árvore de Natal com as suas colinas de luzes piscando , a Lua lá em cima na noite de Verão ! Eu vou voltar !

O « Príncipe Perfeito » era um navio magnífico ,quase 20.000 toneladas , 190 metros de comprimento , 1000 passageiros,21 nós de velocidade , construção inglesa de 1960 ,fazia ali sua viagem inaugural. Grandes salões , piscina , era um navio principalmente destinado a cruzeiros marítimos .
Ótima escolha para uma Lua de Mel ,presente concedido pelo destino !

Minha Companhia – Sapadores de Engenharia , 287 – era formada por cerca de 150 homens , apenas 5 Sargentos e 1 Oficial – Capitão – com formação profissional militar ( aqueles de carreira militar ) , todos muito jovens .
Seguia também no navio um Batalhão de Artilharia , cerca de 500 homens, comandado por um Coronel , que pela patente mais alta era o Comandante de todas as tropas embarcadas .
Meus soldados estão instalados na 3ª classe ,camarotes de muitos beliches desconfortáveis , são na maioria de origem alentejana, enxada na mão, vivem a aventura de sair daquelas terras difíceis , alguma esperança de um futuro melhor ; os sargentos, em 2ª classe , são um pouco fechados,pela educação e experiências mais desconfiados ,talvez receosos da responsabilidade direta perante os soldados .
Meu Capitão embarcará em Luanda , está lá em missão já 5 ou 6 meses ,vou então gozar minha Lua de Mel .

E como aquele navio tinha por onde distrair os privilegiados passageiros da 1ª classe , algumas centenas de civis além dos Oficiais ! O camarote era magnífico , suite de dois beliches paralelos, grande espelho na parede sobrepondo o toucador onde eu encostava o Estandarte da Companhia .
As refeições eram servidas em imponente restaurante , o café da manhã impressionante na diversidade era a atração principal da Tininha, eu quase sempre fugidio pela preguiça matinal ; o almoço e principalmente o jantar vinham apresentados em finos cardápios desenhados e se desenvolviam aos nossos olhos gulosos trazidos em grandes travessas de prata pelos garçons impecáveis nas suas fardas brancas ; música ao vivo e gente na maioria magnificamente vestida , completavam espetáculos de puro prazer. Nos salões de descanso e nos decks frente para a piscina , sempre cheia ,se passavam as horas dos dias do navio singrando o mar , nada no horizonte que não fosse mar, às vezes sorte aqui e ali de grandes peixes que acompanhavam o abrir das ondas , conversas de nossos passados com os dois colegas e a mulher de um deles, já algumas diferenças encontradas pelo azedume que eles não escondiam por verem as carreiras profissionais cortadas por aquela mobilização , já cursos de engenharia completados , talvez formação cultural diferente da minha , eles eram do Porto ,cidade ao Norte , mais politizada que Lisboa por maior proximidade com a pobreza daquelas regiões belas mas inóspitas.
Nas tardes e noites ,espetáculos musicais e passagem de filmes completavam a magia da viagem , não sem fazer com que esta pela longa duração sem paradas , corrida pelo extensão do mar, ameaçasse fatigar .

Rápida parada do navio ao largo da Ilha do Príncipe , mais pequena ilha do Arquipélago de São Tomé e Príncipe , primeiras descobertas marítimas dos portugueses no caminho para as Índias , no Golfo da Guiné , lá pelo 5 º dia de viagem , somos surpreendidos por maravilhosa festa a bordo - estamos atravessando o Equador !
Brincadeiras durante o dia pelo pessoal de bordo , o jantar dessa noite se tornou em recordação maravilhosa para uma Lua de Mel e para uma viagem nos levando a destino incerto ! Naquele já magnífico restaurante , os garçons carreavam, em pares , grandes padiolas que suportavam enormes castelos iluminados, de onde saíam os pratos do cardápio , grandes salvas de louça deslumbrantes nas suas apresentações culinárias , prazer dos olhos que tinham a sorte de tudo contemplar!

Ao final de 7 dias de viagem aportamos finalmente a Luanda , parada de poucas horas mas bem - vindas para relembrar o prazer da terra firme. Capital de Angola , vivia- se ali a angústia da guerra em todos os seus dramas . Dois colegas meus de Tancos me esperavam no cais ,procurando notícias de Portugal e dispostos em me assessorar em rápida visita pela cidade .
E para me dizerem também que o Capitão não ia ali embarcar , estava retido no interior , e que eu seguia como Comandante para Moçambique !
Talvez pelo inesperado da noticia, o cais de Luanda e depois a cidade daquele final de agosto de 1961 me pareceram de um primitivismo e de uma miséria gritantes ! Ruas de terra batida , africanos quase despidos ,roupas rasgadas , pés descalços, mulheres de seios nus caídos na cintura, casas precárias de pouco porte, talvez o ar geral de indisfarçado terror que sobre tudo pairava me tenha endurecido a apreciação da cidade , mas me lastimei porque aquela não era a imagem que tinha idealizado das cidades capitais dos territórios portugueses em África !
Ar de tristeza, subo para o navio ,mais dias de muito mar até ao destino.

Parada de poucas horas no Lobito ,cidade ao sul de Angola , que bem melhor impressão me deixou , o navio zarpa para cruzar as águas tenebrosas do Cabo da Boa Esperança ,cantadas por Camões no seu maravilhoso Lusíadas

«eu sou aquele oculto e grande cabo ,
a quem chamais vós outros Tormentório »

Em frente e 150 Km para leste do Cabo da Boa Esperança , que inicialmente foi chamado Cabo das Tormentas pelo navegador português Bartolomeu Dias, ponta de África mais ao sul , se juntam correntes marítimas de águas quentes vindas do oriente pelo Oceano Índico e de águas geladas que vêm do Oceano Atlântico , gerando ondulações fortíssimas que deram origem ao primeiro nome .
O Príncipe Perfeito era um navio com a mais alta tecnologia disponível na época , que ali ia ser posta à prova pela primeira vez .
Madrugada já terminando , somos bruscamente acordados , aquele meu Estandarte caindo sobre o espelho do toucador , nos corredores gente gritando , louças explodindo nos restaurantes jogadas para o chão , pânico geral , o navio balouça de um para outro lado, somos projetados para as paredes ,é difícil sair do camarote. Subitamente ,nenhum aviso , o navio se estabiliza ! Todos os barulhos cessam , gritos se interropem - os responsáveis pelo navio acabavam de fazer o teste do sistema hidráulico , grandes bombas que acionadas automaticamente jogavam óleo para reservatórios distribuídos dos dois lados do navio , assim se contrapondo ao choque das violentas ondas contra o navio. O teste ficou caro mas dali até à entrada da Cidade do Cabo o navio deslizou suavemente nas águas fortes que batiam no convés .

Cidade do Cabo foi a primeira colônia européia na África do Sul , se iniciando como ponto de abastecimento das caravelas portuguesas no rumo para a Índia , depois tomada pelos holandeses e em seguida pelos ingleses. Dotada de uma geografia privilegeada , parece amparada por um enorme paredão rochoso , de mais de mil metros , envolto em camadas de nuvens , a cidade se espraiando em baixo.
O navio atracado no cais ,temos algumas horas para visitar a cidade ,treinar o nosso inglês , eu e Tininha na companhia do meu colega solteiro resolvemos partir para a cidade , que vemos se estendendo para lá do cais atulhado de caixotões em imensas fileiras. O tempo está frio, nuvens acinzentadas prenunciando chuva . Com roupas militares , todos protegidos por capas de borracha do equipamento dos soldados, pegamos um ônibus em direção à cidade . Nos sentamos atrás , nos primeiros bancos próximos à entrada , os passageiros nos olham firmemente , parecem desconfortáveis.
A cidade é bonita ,muito limpa , prédios baixos da estrutura colonial
inglesa , somos de repente alertados para o que nenhum dos três havia lembrado - o apartheid ! Ao longo dos passeios por onde andamos, os africanos saiem para o asfalto da rua ; aqui e ali onde encontramos caixas para atendimento do publico , sempre se vêm pares , um com placa para « brancos » e outro com placa para « não brancos » . Antes no ônibus, tínhamos nos sentado na parte exclusivamente destinada aos não brancos !
A tarde estava caindo rápido , as ruas desertas , procuramos onde comer rápidamente. Apressamos o passo para chegar ao navio , nas paredes dos prédios deparamos com caixas tipo contra incêndio mas estas são para chamar a polícia . Chegamos ao cais , assustados , com frio ,fugindo duma condição de relacionamento entre diferenças de cor que não entendíamos.

Rodeado então o «Tormentório » , o Príncipe Perfeito navega ao longo da costa oriental , mais alguns dias de lazer nas festas a bordo .
Nos aproximamos do Sul de Moçambique , logo chegando a Lourenço Marques ,capital. Moçambique é quase 9 vezes maior do que Portugal , com uma extensão costeira de 2500Km , se alargando de sul para norte ; uma faixa de mar de poucas centenas de quilômetros , o Canal de Moçambique , separa o continente da Ilha de Madagáscar, uma das maiores ilhas do Mundo , mais de 6 vezes a área de Portugal , recém independente .
Moçambique dos meus livros de História tinha sido palco de fascinantes aventuras , de desbravadores como Serpa Pinto fazendo o mapeamento do continente africano de Angola a Moçambique - pretensão territorial portuguesa que foi impedida por ultimato dos ingleses a Lisboa em 1890 ! - a Paiva Couceiro e Mouzinho de Albuquerque , nas suas lutas pela pacificação de Moçambique , estórias contadas em filme da minha juventude , culminadas pela batalha de Chaimite - em 1895 - contra os Vátuas comandados pelo régulo Gungunhana , com Mouzinho sozinho e altivo , no meio de multidão de africanos , o obrigando a sentar - se no chão !

Noite de véspera de chegada a Lourenço Marques e a bordo mais um maravilhoso jantar , black tie , eu estreando a farda branca de Oficial português , também altivo e orgulhoso .

Poucas horas de descida em Lourenço Marques nos deixam antever uma cidade de largas avenidas revestidas de acácias avermelhadas e de jacarandás , estilo colonial inglês , com um comércio fervilhante de lojas indianas, cidade de qualidade bem mais agradável do que Luanda.

Zarpamos de novo ao longo da costa, direção da Cidade da Beira, importante centro portuário por ser a ligação marítima para as colônias inglesas que fazem a fronteira a oeste de Moçambique , as Rodézias , do Sul e do Norte.
Pequena parada e continuamos a jornada em direção ao nosso ponto final , o porto de Nacala.
Mas vamos primeiro passar pela Ilha de Moçambique , a menos de 200Km de Nacala, ilha de coral , com uma pequena fortaleza , cais pulsante de vendedores africanos entre os quais as mulheres circulam orgulhosamente com seus rostos e pescoços cobertos por camada branca de pomada ! Sabemos aí que essa pomada lhes deixa a pele macia e suave, atrativo considerado indispensável pelos homens , essa pomada elas mesmas
fazem , nos dizem que o ingrediente principal é excremento de vaca!

Vinte e poucos dias de viagem naquele navio , chegamos finalmente a Nacala ! Mal divisamos uma imponente baía – lembro do meu professor de Geografia falando se tratar de um dos melhores portos naturais do Mundo – estamos ancorados ao largo , a noite cai rapidamente, estamos com as poucas luzes do navio, aqui e ali lanternas de mão, a costa aparecendo fantasmagoricamente lá longe iluminada por fracos pontos de luz.
Uma umidade fina começa a cair, nuvens de mosquitos nos atrapalham.
A descida de homens e bagagens se faz por difíceis escadas de madeira para desengonçadas barcaças, primeiro os civis – lá vai Tininha ! – depois o Batalhão e a minha Companhia , salve-se quem puder !
Largado o sossego luxuoso do navio ,está começando a minha aventura em África !

Estamos em Nacala, difícil organizar os meus homens na noite de pontos difusos de luz, sabemos que temos de apanhar um trem para seguir 100 Km para o interior . Já estamos na noite seguinte , a confusão se vai finalmente esvaecendo com a subida para o trem e o arrumar das bagagens , podemos comer alguma coisa , a Tininha prevenida tinha trazido uma sacola de enlatados comprados na Cidade da Beira .
Aquele trem – igual Maria Fumaça ! - iria demorar toda a madrugada para vencer a distância até Nampula , parando a meio de longa subida, dividindo metade dos vagões primeiro , outra metade vindo buscar depois, agora todos juntos, assim começo a entender Moçambique e a colonização portuguesa daqueles dois séculos.

Nampula finalmente alcançada , nos pedem um esforço para desfilar , a população civil vai gostar , principalmente a européia que vê suas primeiras tropas chegando , maior segurança.
A metade norte de Moçambique , acima do Rio Zambeze que vem de Angola e que com seus quase 3000 km vem desaguar no Índico em enorme estuário , depois de atravessar Moçambique de oeste para leste , é um grande planalto , que tem fronteiras a norte com a Zâmbia, Malawi e Tanzânia.
Nampula é o Centro Militar dessa metade norte , em que predomina quase exclusivamente o povo da raça Makua , uns 2 ou 3 milhões de nativos . poucos milhares de europeus e alguns milhares de habitantes asiáticos de origem indiana – chamados de monhés , um pouco depreciativamente , que tinham tido sua origem nos milhares de trabalhadores , os coolies , recrutados mais ou menos compulsivamente pelos ingleses na Índia para as suas colônias em África e que se espalharam por todo o Moçambique quando tiveram por findos os seus contratos , se empregando como pessoal doméstico, no comércio e nos caminhos de ferro e obras públicas.
Os monhés dominavam quase todo o comércio de pequeno varejo , naqueles tempos de minha chegada a Moçambique , se encontrando instalados nas mais pequenas e remotas povoações , quase sempre precariamente .

Alguns dias parados em Nampula , por sorte em casa de médico militar , também casado , que me iniciou nos cuidados de saúde naquele canto do Mundo , não sobrando da cidade senão tênues recordações, vem a ordem de partida para nossos destinos de aquartelamento – um pelotão para Vila Junqueiro , no Alto Zambeze , e dois pelotões para um local mal encontrado no mapa , ninguém sabe o que é – Maua ! – o primeiro sob comando daquele colega também casado ( é o mais antigo depois de mim ) e os outros dois sob meu comando e auxílio do outro colega .

Mal sabia , estava começando aí meu curso de sobrevivência na selva ! Sem informações estratégicas , sem conhecimento de quaisquer objetivos, só ir e estar , permanecer lá acontecesse o que acontecesse ! Com a Tininha !

Viagem de todo um dia naquela Maria Fumaça, alguns 350 Km depois de uma travessia de terras quase desertas , aqui e muito depois ali pequenos aglomerados de palhoças , mata desoladora de árvores retorcidas pela luta com o sol escaldante , gritos de hordas ululantes de macacos que pulam nas árvores e se divertem com o passar daquele trem , parecendo adivinhar o espanto daqueles soldados pela descoberta do Nada, chegamos a Nova Freixo ( Cuamba , nome indígena ) .
É noite fechada , temos de descer do trem e descarregar todas as bagagens , além das muitas caixas com equipamentos embarcadas lá em Lisboa e que nos acompanharam em toda a viagem .
Tropas que ali já estavam aquarteladas nos aguardam com caminhões militares , de motoristas já treinados nas estradas de areia , nos ajudam no transbordo ;recebo algumas instruções , pouco tempo para alguma comida e refresco,estamos iniciando a última parte da viagem direção a Maua.

Adentramos então a estrada pela mata , passa da meia noite ! O nervosismo dos soldados aflora ,tenho que vencer algumas resistências , mas não estou menos temeroso nem menos cansado.
Os faróis dos caminhões militares são potentes , os motoristas conhecem as armadilhas daquelas trilhas de areia , mão única, terminadas ao lado diretamente nas árvores da mata , vez por outra grandes descidas que dão em pontes de madeira sem parapeitos , tábuas que balançam e se arqueiam com o peso , atravessando riachos secos . Nas constantes curvas daquela alucinante faixa de areia que se desenrolava mata adentro, os faróis batem aqui e ali em olhos esbugalhados de animais , alguns que por deslumbrados ficam estáticos , a maioria saindo em disparada. O cheiro de capim seco e da areia revolta invade tudo , nos insensibilizando ; sem alternativa, muitos são vencidos pela fadiga e dormem.
A condução é pela mão esquerda , em todo o território , influência da vizinha África do Sul ,inglesa.
150 Km depois, altas horas da madrugada , a noite esfriando , estamos entrando em Maua, 5 ou 6 casas dos lados da estrada , que se abria em grande terreiro , casa lá ao fundo da autoridade local , o Chefe de Posto .
E aí, candeeiro de petróleo balançando na mão , vem correndo a Tininha , ouvindo os caminhões que despontavam . Atrás dela , gritando desesperada , a mulher do Chefe de Posto - cuidado Tininha, não vá , olhe os leões!

Estava apresentado a Maua !

A Tininha tinha saído de Nampula na véspera , em jeep militar com um também Alferes de Engenharia , responsável pela logística de instalação da minha Companhia , junto também um Sargento meu .
Seguimos para o local de aquartelamento , alcançado a menos de 10 Km, tendo logo ali à saída de Maua uma pequena ponte passando por leito seco de um rio. Na noite só rompida pelos faróis dos caminhões ,encontramos um grande armazém , que pertencia a uma empresa algodoeira , uma estradinha que seguia na escuridão lá para longe e , do outro lado desta e em frente ao armazém, um razoável laranjal que parecia bem cuidado.
Nada mais a fazer que dormir por qualquer lado , no chão acimentado do armazém ,esperando que nos postos de guarda lá fora os soldados escalados não adormecessem e que o frio cortante da noite não passasse os poucos agasalhos.

Manhã rompendo , corpos doídos, os caminhões começam a ser descarregados , e eu faço o reconhecimento da situação. O armazém era de razoável tamanho , com alguns conjuntos de quartos laterais que permitiriam instalar a enfermaria, a sala de rádio , alguns quartos para os Sargentos , quarto para o meu colega, e um pequeno conjunto de duas divisões com pequena área de entrada para as duas que daria para minha acomodação – com a Tininha .
As mesas para as atividades administrativas ficariam nos próprios quartos.
Há um pequeno sanitário com chuveiro .
Ao lado do armazém , no meio um grande terreiro , outro galpão bem mais pequeno , adequado a oficinas e , lá na frente , um poço de cêrca de 4 metros de diâmetro , no fundo uma altura de uns 6 ou 8 metros de água , qualidade só razoável.
Todo o exterior é de terra batida , uma terra avermelhada que levanta pó.

Há então que limpar tudo , abrir os caixotes , conferi – los , montar camas e colchões , verificar armamentos , equipamentos de rádio , instalações da enfermaria , ferramentas e utensílios , aproveitar todas as tábuas dos caixotes para a construção de moveis .

Tínhamos um jeep Willys , um caminhão GMC , uma cozinha militar e um auto – tanque rebocáveis , tudo da 2ª Grande Guerra .
Como armamento , espingardas , algumas metralhadoras pesadas , revolveres e metralhadoras leves para Oficiais e Sargentos . Munição , poucas caixas de balas para as primeiras , uma caixa de balas para as últimas.
Provisões de alimentos tinham - nos sido entregues em Nova Freixo , a carne teria de ser encontrada por ali.

Sou otimista ! penso que se alguma coisa grave acontecer vai ser possível romper caminho até Nova Freixo , onde as condições de defesa seriam bem melhores , falo com o meu colega , reunimos os Sargentos, eles não são otimistas.
Sem outra saída , há que construir a defesa do local , paliçadas em
madeira , não há arame farpado, preparar postos de guarda , fazer escalas para os postos e para rondas , arranjar sanitários, montar cozinha e mesas de refeitório .

O ambiente entre o pessoal é péssimo , acho que é o cansaço !

O Chefe de Posto – plena autoridade civil e policial da região , representante do pátrio poder , responsável por alguns guardas nativos , todos vindos do sul de Moçambique – é jovem , figura alta , mulato claro ; a esposa ,também jovem, muito elegante, mulata quase branca . Um rápido contato deixava observar de imediato que aqueles dois não pertenciam ao lugar , especialmente ela , de um trato agradabilíssimo, sem vaidades , ao mesmo tempo garboso e altivo ; a amizade entre os dois casais é imediata. As informações e conselhos que recebo dele me são úteis.

As casas naquele povoado são todas de comércio, maioria de monhés ; casas de blocos à vista , pobres , paredes mal caiadas , exposição pouco cuidada , exclusivamente produtos básicos dirigidos aos nativos , as pessoas são de difícil convívio .
As compras de alimentos terão de ser feitas em Nova Freixo , 150 Km de picada ( como chamam àquela estradinha horrível de areia ) , ou em Marrupa na continuação da estradinha e final dela , quase à mesma distância .

Os nativos se espalham pela mata , em palhoças de terra argilosa , telhados de capim , terreiros abertos entre árvores procurando se proteger do sol e da chuva .
A riqueza da região é quase só da plantação de algodão , que na época da coleta é levado em fardos , a pé e na cabeça , para entrega a empregados da Algodoeira , que os pesam em balanças fraudadas e erram as contas.
A agricultura é apenas de subsistência , pela pobreza do solo .
A caça completa a alimentação , as vendas das peles e presas dos animais melhoram um pouco a renda . O artesanato é inexistente.

Volto ao aquartelamento, descubro que ninguém sabe montar os rádios , nem os operadores nem os sargentos. Estamos isolados !

A temperatura na região oscila grandemente , madrugadas muito frias - fogueira e manta pelos ombros - começando a aquecer rapidamente com o nascer do Sol, forte calor já pelas 9 horas que se torna insuportável entre o meio – dia e as 14 , obrigando à parada de tudo, melhor deitar e dormir.
As chuvas têm época certa, entre outubro e abril , estamos no final do período seco .

Pouco distante do armazém tem uma casa bem cuidada com acesso por pequeno quintal florido , onde mora um casal que guarda as instalações da Algodoeira . Deles recebo queixa do laranjal ter sido assaltado e depenado das laranjas , na véspera à noite, pelos meus soldados !
Acho que foi contrapartida por estarmos ali , o Comando Militar defendendo interesses da Algodoeira . Não vou ver mais o casal , com a nossa presença , garantida a guarda do patrimônio , eles fecham a casa e desaparecem.

A noite vem rápido, só com a luz de candeeiros de petróleo e não refeitos ainda do impacto da nova situação, o pessoal se deita, camas já montadas , alguns caixotes melhorando o conforto .

Eu tenho o que fazer ! Como Oficial mais antigo , abaixo do Capitão , tinha recebido instruções de que seria o responsável pela Administração da Companhia , guarda do dinheiro , pagamento de todas as compras para alimentação , transporte , obras , salários , que só poderiam ser realizadas dentro dos padrões orçamentários do Exército . Mensalmente ,teria de fazer a demonstração das despesas de acordo com os tais padrões para obter a reposição do dinheiro.
Assim, eu tenho debaixo da cama um saco com dinheiro ( eu ganho cerca de 5000 escudos, recebi como fundo de maneio 600.000 ! ) , já muitos papeis de despesas feitas, muitos outros com supostas Normas e Instruções , a cabeça cheia de problemas, toda a responsabilidade assustadora, não tenho sono , preciso ler !

Na noite de África , na mata, os barulhos parecem chegar de todos
os lados ! Corujas , hienas com seus gritos ásperos, às vezes parecendo risadas , alguns grunhidos de javalis que se arrastam pelo restolho ,o vento que assovia nas ramadas do arvoredo .


Mas aquela primeira noite de pessoal acomodado iria ter mais ruídos ! Muitos tinham feito os colchões com capim misturado com feijão macaco , uma planta relativamente alta que tem uma vagem preta, retorcida , cheia de picos tipo alfinete e quase imperceptíveis , que parecem carregar um liquido extremamente irritante à pele ; nus ,ou quase, os soldados se coçavam desesperados, vinham para o terreiro, tentavam se livrar daquilo que se alastrava pelo corpo! Os minúsculos picos quando arranhados se quebram e mais se espalham , para infortúnio dos desavisados !
Os nativos se protegiam com uma pasta feita com cinzas embebidas em água, quando tinham que trabalhar em desmatamentos.
Iríamos aprender que os nossos maiores problemas da vida da mata não seriam os leões, cobras ou outros animais selvagens, mas sim o feijão macaco , as abelhas , os mosquitos e moscas , as formigas ! E as saudades !

Estamos no fim da tarde do 2º dia da nossa estadia, o pessoal se lava da sujeira daquele pó avermelhado , procurando algum refresco do calor a que ainda pouco habituados .Tinham sido dependurados em troncos de árvores baldes de lona com saída em chuveiro , uso militar, feitos cercados para proteção das vistas , as instalações sanitárias lá no mato .

Vêm me chamar ! A água do poço tinha sumido ! Mando descer alguns homens,esperança de escavar e obter fio de água nascente .Nada ! Aquele poço era na verdade reservatório de água das chuvas !

O moral do pessoal estava mais desgastado , procuravam algum apoio em mim, eu tão despreparado como eles, o meu colega se afastava não querendo participar dos problemas , como isso possível !
Nada a fazer, há que deitar e ouvir o choro das hienas, que parecem estar chegando mais próximas de nós.

Mal Sol aparecendo, saio procurando informações para abastecimento de água . Pela estradinha de areia que passa na frente do armazém, sentido oposto a Maua, chego depois de uns 15 km a uma Missão . Algumas casas bem construídas , vivem ali dois padres italianos , péssimo português, que catequizam os nativos, têm igreja , escola , refeitório . Cedem alguma água , explicam que abrindo minas em sopé de montanha ali próxima vai ser possível captar água que nela se acumula pelas chuvas.

Mais uma vêz , mão que nos acompanha !, ou não !, o meu colega inamistoso é Engenheiro de Minas , e vai demonstrar ali um bom trabalho, que em alguns dias de escavação nos vai permitir coletar água em cisterna e daí transportá-la no auto - tanque rebocado pela GMC ou pelo jeep para o aquartelamento .

A carne para o refeitório começou a vir das caçadas feitas por pessoal mais afoito , mata adentro . O cheiro dos animais abatidos , pacaças, javalis , até gazelas, impesta o ar . A GMC sai para Nova Freixo , renovando nossos estoques .

As coisas se ajeitam mas o moral de todos continua muito baixo , às vezes gerando indisciplina . Contornar frequentes situações de atrito , algumas vezes provocadas pela irritabilidade do meu colega, me desgasta também , pela minha inexperiência e pelas preocupações aumentadas por aquele saco com dinheiro !

Mas tudo o que está mau sempre pode piorar, eu ia aprender !

Aquartelado em Marrupa , lá no final da picada que passava por Maua , um sargento nos visita , caminho de Nova Freixo. Sorte ! ele é de Transmissões, vai pôr nossos rádios trabalhando . Esses rádios usavam energia elétrica gerada por movimento de pedais , tal qual bicicleta , bastante confiáveis ; ligações estabelecidas com Nova Freixo , horários marcados, estamos mais acompanhados.

Para auxiliar no abastecimento de carne e também motivo de diversão, iniciamos caçadas noturnas , com a GMC ao longo da picada , pessoal em pé em cima da caixa, potentes faróis alimentados pela bateria da viatura , fachos de luz jogados para a mata procurando caça. Das experiências mais fascinantes da vida na mata , observamos olhos iluminados de animais de todo o porte , grandes em corpos pesados que achamos de leão ou leopardo , piscando e fugidios de pacaças e gazelas ; e os macacos acompanhavam toda a festa , pulando assustados das árvores , acordados no descanso noturno. E tinha os coelhos, que ali a poucos metros dentro da mata se levantavam nas patas traseiras, parados ,hipnotizados pela luz forte, aguardando o nosso tiro ! Nos diziam haver elefantes, nunca os vimos.
Acertado o animal , vinha a parte mais difícil da caçada , entrar na mata para acabar de o matar , quase sempre necessário porque as nossa balas de espingarda eram perfurantes , impróprias para a caça, e o transportar para o caminhão – aí só os valentes, medo das cobras , dos leões e leopardos à espreita !
Das cobras, o medo era geral, divulgado o caso do meu colega no desbravar do trajeto para abrir as minas de água lá na Missão, bruscamente alertado : uma cobra enorme se desprendia dos ramos da árvore em cima da cabeça dele , pronta para o bote ! Nesse dia , até ao aquartelamento o meu colega não parou de procurar se limpar !

O rádio funcionando , ligação com Nova Freixo , já algumas semanas aquartelados, chega um comunicado informando da possível presença na região de um casal de alemães, ambos altos, loiros, se deslocando num Land Rover , procurados por suspeita de espionagem . Ordem de montar postos de controle em todos os possíveis locais de passagem , prendê-los !
Manda quem pode ,obedece quem é esperto – coloquei postos em vários pontos , instruções aos Sargentos e Soldados.

Nessa noite , terminado o jantar , sou alertado por um Sargento , metralhadora dependurada do ombro , que um Land Rover anda passando lá para depois do laranjal . O alerta já havia sido dado , toda a tropa se movimenta , candeeiros a petróleo balançando na mão . Mal tenho tempo de sair para o terreiro , com a Tininha, chega o Chefe de Posto com a esposa,descendo do Land Rover – era ele que , vindo nos visitar, tinha deparado ali perto com um javali , que perseguiu pela mata , aos ziguezagues com a viatura. Vistos de longe na noite , um casal , altos, dentro de um Land Rover ,fácil serem confundidos pelos guardas dos postos.
Não houve tempo para troca de cumprimentos - aquele Sargento vem esbaforido, de encontro ao grupo que ali se formou, ouve-se o estampido sêco de um tiro, a Tininha cai, gemendo de dor ! Mal tenho tempo de a amparar e , rápido, levá-la nos braços para a Enfermaria, confusão deixada lá atrás, Sargento jogando a metralhadora para o chão !
Felizmente o tiro apenas queimou a pele na parte detrás do joelho direito , dolorido mas nada grave. A metralhadora , por sorte na posição de tiro a tiro e não de rajada , com a trepidação havia - se solto da trava e disparado ! A bala bateu no chão , ricocheteou e apanhou a Tininha de baixo para cima. O Sargento ,desesperado com o acidente , jogou a arma no chão , o que podia ter causado um dano muito maior !

Talvez por um efeito de solidariedade , pela compreensão da situação difícil a todos comum , a tensão na tropa se desanuviou a partir daí.

Dia seguinte estou ainda deitado , batem na porta , é a Tininha que atende , me chama . Deparo com dois sujeitos com fardas similares à do Chefe de Posto , umas divisas mais incrementadas que desconheço , me interpelam porque na véspera foram desrespeitados por tropa minha , num posto montado em qualquer lugar da estrada , obrigados a parar e a se identificar ! Não me lembro o que falei , acho que besteira ! Sairam prometendo qualquer coisa !

Outubro já terminando, chegam as tão esperadas chuvas . E como! Começo do anoitecer, as nuvens se escurecem de um cinzento negro, o vento abre rajadas que levantam redemoinhos de poeira e jogam para o ar o que de leve apanhem pelo solo, começam raios faiscantes cruzando o céu seguidos do estouro dos trovões, cada vez mais as nuvens parecem próximas de nós. Aí , elas parecem se abrir e descarregam água em torrentes de gotas grossas que em pouco tempo alagam os baixios da mata e deslizam pelos leitos dos rios , a Natureza se saciando .
Este espetáculo se repetiria depois , quase que diariamente .

Procurando entender aquela prestação de contas que me era exigida, resolvo ir de jeep a Nova Freixo , aproveitaria também para compra de alimentos enlatados, frutas ,cafés , queijos ,vinhos , o que não se encontrava nas lojas do povoado ; procurava também um rádio portátil que nos pudesse distrair.
Madrugada, saio então no jeep , com um motorista e um outro soldado . Carregamos metralhadora pesada , caixa de balas , eu levo a minha metralhadora de mão ( a pistola ficava com a Tininha ) , os soldados as suas espingardas . Capota baixada e lenços tapando as faces, para evitar o acumulo de poeira, vamos à descoberta daquele caminho de areia , agora de dia .
A GMC já várias vezes tinha feito aquele percurso , para abastecimento do Refeitório, não tinha encontrado quaisquer dificuldades.
Ainda não chegando a meio percurso , baixa velocidade porque a estrada é muito ruim, ligeira subida, quebra o olhal do feixe de molas direito da frente do jeep , que segura o eixo do rodado . A viatura dá um brusco puxão para a direita, o motorista não consegue retorná-la para a estrada e ela vai de encontro a um paredão inclinado para fora que ali acompanhava a estrada por alguns metros. Com essa batida , o jeep vira e roda em torno de si umas três vezes. Todos estamos lá dentro , atordoados , sem tempo para reação.
O jeep pára, está com os rodados no chão, nos observamos, nenhum de nós tem qualquer ferimento, a caixa de balas e as armas estão lá .
Saímos do jeep , ninguém é visível .

Olhamos para a estrada , à nossa frente. A alguns metros terminava a subida , começava uma descida e menos de 100 metros depois uma ponte de madeira , uns 20 metros de extensão , sem qualquer proteção lateral , atravessando um riacho quase seco , pedregulhos enormes cravados no leito ! Poderíamos ter caído ali !

Seguimos para Nova Freixo , o jeep pulando no rodado direito .Chegamos meio da tarde , há que reparar o jeep, só amanhã estará pronto. Por comunicação rádio, informo para Maua – recado para avisar a Tininha – que as compras iam demorar, só chegaríamos dia seguinte , não informo do desastre para não preocupar.

Chegando a Maua , a Tininha trémula , assustada como todo o mundo, pergunta se estamos bem, se não estamos feridos , o que aconteceu ! A notícia do nosso desastre tinha chegado ainda na manhã da véspera,com algumas pinceladas trágicas ! Entendemos que o tam-tam dos nativos tinha funcionado nesse caso e que não podíamos deixar de o considerar em futuras ocorrências !

Os dias começavam a passar mais facilmente, as minhas acomodações estavam funcionais, a Tininha tinha colocado uma cortina de plástico num armário feito com a sobreposição de dois caixotes, a mesa tinha bancos , as roupas pareciam arrumadas naquele arame estendido entre duas paredes de canto do quarto , no vestíbulo de entrada havia uma improvisada cozinha com fogareiro a petróleo , algumas panelas e louça . Lá em Nova Freixo eu tinha comprado um grande rádio portátil, com grandes baterias, que nos acompanhava no lazer.
A elaboração da minha prestação de contas estava acontecendo , mais do meu jeito improvisado do que pelos padrões militares, tinha de a enviar daí a algum tempo, o dinheiro se esgotava , nas minhas contas tinha saído com algum prejuízo, alguns documentos de despesa sumidos.
As instalações do pessoal também estavam terminadas , dentro do possível , a cerca do aquartelamento estava sendo feita, o abastecimento de água funcionava bem, auxiliado agora pelas chuvas quase diárias.

O Chefe de Posto era agradabilíssimo , insistiam na nossa presença , passávamos horas da noite jogando cartas depois do jantar.

Um sábado à tarde ,Tininha já tinha ido para ajudar a esposa do Chefe de Posto na preparação de mais um dos jantares em comum, eu tomo banho para seguir para lá.
Me avisam da chegada de um jeep com um Major. Apresso - me para o receber, apresentações feitas me pergunta pela minha esposa . Convido - o para seguir comigo a casa do Chefe de Posto , eu certo que este não deixará de o convidar para o jantar.
Como sempre , a esposa do Chefe de Posto é amabilissima, o jantar decorre ótimo, conto os problemas que tenho encontrado , é óbvio que o Major está encantado.
Vamos jogar cartas .
Meio da noite , o Major faz uma parada e nos atira – sabem o que eu vim fazer aqui ? Não lhe tínhamos perguntado , eu pensava que estaria de pasagem lá para Marrupa .
Bom - sorrindo pela espectativa - , eu vim prender o Alferes Graça ! Consta que ele tentou matar o Chefe de Posto a tiros de metralhadora , há também umas queixas de depredação de um laranjal e de desrespeito a um Administrador de Posto!
Não foi difícil continuar a jogar !

Chegando o mês de dezembro é normal que as saudades aumentem.
Agora o calor é menos seco , a terra está molhada pelas chuvas , nos riachos a água corre solta. A estrada está mais perigosa , em alguns pontos a lama argilosa provoca derrapagens .
As madrugadas ganham um aroma indescritível, pela terra molhada recebendo os primeiros raios do Sol.
O cheiro da caça dependurada torna-se insuportável ; o gosto ácido dessa carne começa a ser enjoativo, procuramos substitutos nas galinhas do mato, coelhos .
O pessoal está mais familiarizado com o local , parece que as hienas também porque se aproximam na noite dos postos de guarda, chegamos a vê-las quase ao lado dos soldados quando os faróis dos carros batem em cima.

Madrugada de um desses dias que começavam a ser todos iguais, gritos na minha porta, enfermeiro correndo ! Primeira baixa , um Sargento com um tiro na perna.
Me contam , numa ronda para mais longe do aquartelamento , até ao riacho já próximo do povoado, dizem que para ver os leões que de madrugada procuravam a água, a metralhadora que esse Sargento levava a tiracolo se destravou talvez pelo balanço do andar – ou terá sido o medo ? –
disparando um tiro que entrou pela coxa e saiu pela barriga da perna - milagrosamente sem estourar o joelho. O jeep tem de o levar em correria para Nova Freixo , não tinhamos condições locais de tratamento.

Ali eu só tinha surpresas ! Depois da nossa parada diária para a sesta da tarde , corpos amolecidos pelo calor, chega um jeep , Capitão dentro.
É o Capitão da nossa Companhia ,finalmente saído de Angola e ali chegado , muito surpreso com o tamanho do meu cabelo , que na verdade não via tesoura desde o embarque em Lisboa !
E – há muito não recebia boas notícias ! – vamos ser substituídos por uma Companhia de Artilharia , já a caminho, vamos para Vila Junqueiro onde já está aquele pelotão do meu colega casado !

Meu curso de sobrevivência na selva tinha terminado !

Embora as dificuldades enormes , principalmente as psicológicas pela tensão quase indisciplinada da tropa nas primeiras semanas , durante muito tempo eu iria sentir saudades de tudo aquilo , talvez pela falta da adrenalina ou porque ali a Vida fazia sentido na maravilhosa interação com a Natureza.

No final do meu tempo de Moçambique eu receberia um louvor em Ordem de Serviço porque « mesmo em condições muito difíceis para um Oficial mais experiente, o Alferes Graça tinha sido capaz de ..............» .

Também , mais de um ano depois em jantar com o Comandante Militar de Nampula , ele me disse que naquele tempo todos estavam perdidos , a desordem era total e a disponibilidade de meios quase nula para fazer frente à rápida preparação para uma possível guerra.

Chegamos a Vila Junqueiro ( Gurué , nome indígena ), a cerca de 250 Km de Maua , para o Sul de Moçambique , é quase Natal !

A cidade era pequena mas muito agradável, algumas ruas , terra batida ,bom comércio com duas lojas grandes, padaria , até loja de presentes e livraria , Clube com quadra de tênis e grande salão com cinema , hospital , igreja , um hotel em construção, um aeroporto a 5 Km dali com restaurante e pousada . Vegetação frondosa se espalhava por tudo .
Luz elétrica até 22 horas ! Para quem vinha de Maua , aquilo soava a Paraíso !

Estávamos na Zambésia , na base dos picos Namuli , onde foi criado todo o Povo Makua, o mais numeroso de Moçambique

“Todos os homens foram criados no Monte Namuli. Deus, um dia, nas profundezas daquele monte, nos seus subterrâneos criou os homens fazendo-os germinar do Embondeiro. Do rei misterioso de Deus, os homens, em pequenos grupos, passaram pelo abismo e surgiram à luz. Dessas mesmas profundidades saíram também os animais que povoam o mato. Os homens e os animais, ao passarem das profundezas à luz deixaram os seus rastos sobre a pedra ainda mole.

Cada grupo de amigos que saia recebia um nome próprio, que os unia entre eles como se fossem todos irmãos e irmãos. Formaram-se assim vários clãs: todos os que ocupam, atualmente, o território Makua.

Durante muito tempo viveram todos no Monte Namuli ou entre as terras próximas, divididos em família com a proibição mais absoluta de comunicarem entre si. Chegou porém o tempo em que sentiram a necessidade de casar. Como não podiam casar entre irmãos e a morte começou a ceifá-los, os anciãos declararam que quem quisesse casar deveria casar noutra tribo vizinha, viver lá, mas pertencendo a família da sua mãe. Em breve tempo multiplicaram-se tanto que se tornou necessário abandonar a Montanha e espalhar-se pelo vale. Alguns, transpondo o rio Lúrio, que nasce no monte, e foram até muito longe.”

A Zambézia é sulcada por vários rios de vales luxuriantes , se dispondo como grande anfiteatro voltado para o Índico , a vegetação passando de extensos palmares junto à costa para , no interior , nas zonas mais elevadas do Gurué , predominarem rasteiras e verdejantes plantações de chá. Quelimane na costa da Zambézia é uma orla plana junto ao Rio dos Bons Sinais, importante porto de cabotagem.
Vila Junqueiro fica a 450 Km de Quelimane, um avião monomotor faz a carreira diária entre os aeroportos , ida e volta.
O chá era a grande riqueza da região , e de Moçambique , embora já passados os tempos das grandes fortunas e sua ostentação , pelas décadas de 1940 – 50. Grandes plantações tinham sido criadas, com o desmatamento e abertura de estradas , plantação de árvores de chá , instalação de fábricas ; a coleta da folha , nos meses de março a setembro , exigia milhares de trabalhadores , gerando correntes migratórias de mão de obra para a região.
Durante o período das chuvas, uma nuvem de água pairava no ar , chuva fina sempre caindo, rega permanente das plantas de chá.
As instalações militares eram muito boas , permitindo agora condições normais de trabalho. Eu, finalmente livre da árdua tarefa de comando , vou poder me dedicar ao meu saco de dinheiro. Já tenho um cofre , a Companhia recebeu todas as viaturas , armamento , munição , mobiliário .

O Capitão era casado, estava com a esposa e dois filhos, aceitamos de bom grado compartilhar as instalações em que já moravam , oferecidas amavelmente por um casal na própria casa , ele ocupado em construção civil e ela a padeira da cidade. Os meus colegas ficam no aquartelamento , a esposa do que tinha ali chegado primeiro conseguiu emprego de professora na cidade da Beira.

Chega o nosso primeiro Natal em Moçambique. O Clube organiza uma festa com a presença dos militares , é quase nossa apresentação à cidade .
A Tininha em casa orienta os preparativos para a grande refeição do Natal, dá instruções ao cozinheiro nativo , diz como tratar do perú que vai ser o centro da mesa de delícias.

Regressamos a casa , a vida se apresenta bem diferente das dificuldades dos caixotes de Maua, da obrigatória carne de caça .
Entramos em casa e .... o perú corre esbaforido para todo o lado , glu-glu de pavor, pele de cor vermelho escura, nenhuma pena no corpo do coitado! Atrás , saltitante , o cozinheiro tenta agarrá-lo , arfando de cansaço !

A Tininha tinha dito para escaldar o peru em água bem quente e depois tirar todas as penas . Não falou da necessidade – imprescindível – de matar primeiro o perú !

Assim eram os nativos , humildes , de obediência cativante , claramente medrosa , quase só encontrando na dança o desafogo para as dificuldades quotidianas

« A dança moçambicana está profundamente enraizada na terra, não procura gestos que abstraiam da vida natural e exprimam formas abstratas, estáticas e estéticas. Os gestos da dança moçambicana não tomam posse de um vasto espaço diagonal, restringem-se mais a uma posição básica, onde o tronco é levemente inclinado para a frente, as pernas com uma ligeira quebra nos joelhos, na posição de maior prontidão de reação, e os braços fazendo equilíbrio. À volta desta posição surgem as oscilações e, às vezes, ondulações e torções, sustentados pelos passos rítmicos. Os dançarinos preenchem esta posição — às vezes aparentemente parada — com virtuosismo de tremuras parciais dos músculos.
Nas danças de mulheres, como consequência natural da sua construção e função, os movimentos são muito mais restritos, e muitas vezes elas satisfazem-se com passos pequenos, inclinações de cabeça rítmicas e bater de palmas . Como posição típica , sempre esta linha diagonal do tronco em relação ao solo e a importância do movimento dos ombros e da bacia, tudo sustentado por passos pequenos, com uma enorme sensibilidade e leveza rítmica dos pés. Estes passos são guiados coreograficamente em forma de roda, ou em fila, ou de duas filas enfrentando-se .
Dançar, pôr o corpo em movimento, em vibração, significa uma espécie de comunhão com as forças vitais, com tudo o que adoram, e o que temem; e, além disso, une e reforça neste intuito a comunidade. Dançar é uma necessidade que liga até os vivos aos espíritos dos antepassados mortos e que facilita a comunhão com eles » .

Os homens provinham ao sustento da família pelas formas possíveis , se dedicavam à caça e à guerra na preservação dos seus espaços, as mulheres exclusivamente se ocupavam da casa , da terra e dos filhos , culturalmente mais atrasadas pela sujeição ao recolhimento nos pobres povoados de palhoças de precária construção . Apenas cobertas por rasgados saiotes , o mais coloridos possível, seios nus, carregavam seus filhos enrolados em panos traçados nas costas , na busca pela água e no arranjo da terra em plantações de mandioca e milho .
Algum tempo depois , conseguimos nosso primeiro apartamento , móveis de verdade , em vime, adquiridos em cidade próxima. Primeiro andar sobre a padaria, acesso por escada exterior, alugado ao casal onde inicialmente ficamos e onde tínhamos tido o primeiro contato com umas formigas pequenas , pretas, ameaçadoramente carnívoras - o talaco – que um principio de noite vemos entrar dentro da casa em extensa frente , aos milhares , desfile maciço , em perseguição a pequenas formigas inofensivas , formigas do açúcar , que haviam disparado em fuga na aproximação do talaco ! Essa noite tivemos que dormir na casa do lado , deixando acontecer aquele trágico desfile da Natureza , pois que o talaco tudo ataca , com ferroadas dolorosas no corpo capazes de matar pequenos animais.
Acomodados então civilizadamente, podemos desfrutar do som do rádio comprado em Nova Freixo, da leitura de alguns livros comprados ali na livraria, jogos de cartas e de dados, e começarmos a nos deliciar com a exótica culinária da região , apreciada em festas caseiras e no restaurante do aeroporto , propriedade do piloto do avião e ocupação da mulher deste .
Não há como esquecer o frango à cafreal ( como os árabes designavam os que não seguiam a sua religião e os portugueses adotaram para se referir aos não cristãos )
Ingredientes:
• 1 frango médio
• 1 coco ralado
• 8 dentes de alho
• 1 folha de louro
• sal q.b.
Confecção:
Limpe bem o frango e deixe escorrer num passador.
Rale o coco para dentro de uma bacia plástica e, depois de ralado,deite meia chávena de chá de água quente e meia de água fria, mexa muito bem com as mãos até ficar um leite mais ao menos cremoso, deixe arrefecer; entretanto pila-se o alho e o sal.
Para temperar o frango, ponha-o num tabuleiro e tempere com o preparado e a folha de louro.
Uns minutos depois deite meia quantidade do leite do coco e deixe a marinar por meia hora.
À parte, numa tigelinha, junte o resto do leite de coco e um pouco de azeite.
Este frango é assado na brasa e de vez em quando, com uma pena de galinha , vá borrifando o preparado de leite e azeite sobre o frango até estar pronto para servir ( o preparado de leite de coco e azeite é para que na altura de assar o frango na brasa a pele fique mais estaladiça ) .

E os pratos de caril ?
O caril é uma mistura de especiarias muito utilizada na culinária de países como a Índia, Tailândia e outros paises asiáticos.
Este condimento é feito à base de pó amarelo de açafrão da Índia cardamomo , coriandro , gengibre , cominho ,casca de noz moscada, cravinho, pimenta e canela ; para além destes ingredientes básicos, outros são incluídos de acôrdo com as preferências – existem caris que chegam a levar até setenta plantas diferentes !
Ali em Vila Junqueiro nos diziam que levava 21 ! Tinha caril de cordeiro , de frango , de camarão e , especialmente apreciado pela Tininha no restaurante da pousada, caril de caranguejo

Os ingredientes são 2 cebolas cortadas às rodelas, 3 tomates cortados aos bocados (aos losangos ficam com um sabor especial ) , 1 colher de chá de pó de caril amarelo (de preferência daquele indiano), muito piripiri (de preferência daquele pequenino mas muita potente), 2 dentes de alho, 2 côcos, 2 colheres de sopa de óleo, sal a gosto e 500gr de caranguejo lavado, cozido e desfiado. A qualidade do caranguejo e do caril são determinantes.

Começar por ralar o côco, extrair o leite e guardar à parte. Depois fazer um refogado com o óleo e a cebola, até esta alourar, e depois juntar o caranguejo, o tomate, os alhos esmagados, o caril e o piripiri. Deixar ferver até o caranguejo mudar de cor. Depois é só acrescentar o leite de côco, já em fogo brando, mexendo sempre para não coalhar. Isto é muito importante, senão fica uma papa . Depois aumentar um pouco o fogo e deixar ferver durante cêrca de meia hora e pôr sal a gosto.

Este é daqueles pratos que só são bons se forem comidos à mão e de babete - está escrito na receita !
Além dos caranguejos , os camarões grelhados – enormes – também deixavam água na boca!
O Clube tinha aos domingos sessões de cinema , a que não podíamos faltar , ponto de encontro de toda a colônia européia.
Ao longo do final de semana , ali se reuniam os mais abastados , algumas senhoras , em jogos de bridge acompanhados a abundante whisky , restos de uma opulência que se perdia , pelos riscos de acontecimentos similares ao de Angola e pela continua queda dos preços do chá , que era negociado como commodity na Bolsa de Londres - o chá indiano era de qualidade superior e negociado a preços mais baixos .
Lamentações frequentes , eram contadas estórias da formação das grandes fazendas , da difícil chegada de quase todos , vindos de Portugal por motivos políticos, alguns, outros no cumprimento de penas por alguns delitos , quase todos pobres , poucas esperanças. Atraídos pelas excelentes condições de clima e riqueza do solo , propensas a boa agricultura, foram no entanto seduzidos pela plantação do chá , mais remuneradora.
Exigidas grandes extensões de desmatamento , abertura de acessos, construção de pontes, casas e fábricas, o regime de trabalho se assimilou inicialmente ao da escravatura , com o recrutamento forçado de nativos em regiões de todo o Zambeze.
Com o inicio do Salazarismo e imposição da legislação trabalhista, foi necessário procurar artifícios para não ver diminuir os lucros . É assim que surgem idéias de efetuar a marcação da presença diária do trabalhador , manhã e tarde , com a entrega de uma agulha de gramofone ( daqueles primeiros tocadores de disco ; com a sua substituição pelos mais modernos , sobravam no mercado milhares de caixas de agulhas , de nenhum valor ) , exigindo a sua apresentação ao sábado para pagamento da semana – cada agulha recebia salário de meia diária, simples assim , não fosse pelo fato dos nativos não terem onde guardar as agulhas e as perderem todas ! Não menos engenhoso, pagar os salários e efetuar o desconto simultâneo de impostos ali inventados , com a colaboração das autoridades, sempre presentes para dar respeitabilidade !
Infelizmente, o descontentamento que crescia na África portuguesa tinha causas profundas , não obstante a humildade e até passividade sincera da grande maioria dos nativos .
No final de dezembro , os territórios portugueses na costa ocidental da Índia , Mar da Arábia, ocupados desde 1510, foram tomados pelo exército indiano, na conclusão de querela que se arrastava desde 1954 com as invasões pacíficas de satyagrahis ( turbas de indianos pobres ,em vagas sucessivas, conforme eram as convicções de Mahatma Ghandi ).
Em consequência , aqui em Moçambique foram tomadas algumas ações de contrapartida contra os monhés , o que vem afetando a estabilidade social pelo menos na área de comércio em que eles são muito influentes.

As atividades militares decorrem agora sem percalços, me embrenho na contabilidade militar, procuro estabelecer controles corretos das despesas.
Os consumos de gasolina pelas viaturas são muito altos e díspares,o Sargento Mecânico procura explicar porque as viaturas são velhas , as estradas péssimas, uso contínuo da tração às 4 rodas.
Os meus colegas, talvez também o Capitão ! , mostram algum desagradado pelo meu controle, acham que excessivo, seria possível tirar alguns benefícios ! Aquele Alferes casado me interpela se não seria bom para mim ter uma reserva financeira quando chegasse a Portugal !
O volume mensal de dinheiro que passa nas minhas mãos é muito alto, me preocupo em efetuar pessoalmente todos os pagamentos.

Temos jornais diários, recebidos na viagem do monomotor, que algumas vezes vamos esperar , alertados pela chegada em vôo razante sobre a cidade.
Nessa leitura, deparo com a informação de que a minha turma da Universidade ,se formando em agosto 1962 , estava chegando a Moçambique em cruzeiro de final de curso . E na visita estavam vindo à Zambézia para conhecer o Gilé .
A 250 Km de Vila Junqueiro , passando pela povoação de Molócuè , a região do Gilé é uma enorme e diversificada reserva de caça , mas sobretudo uma área de mineração interessantíssima pela grande variedade de minerais que podem ser encontrados – turmalinas, quartzo, lipedolite, tantalite, esmeraldas, ouro, águas marinhas. Mais a norte , na direção de Nampula , existem reservas de metais pesados .
Os meus colegas vêm de Nampula , e eu com a Tininha estamos lá os aguardando! Saudades , alguma tristeza porque aquela era a minha turma de formatura, mas não arrependimento porque eu sabia que nada se igualava à experiência de vida que eu estava encontrando.

Contráriamente à região de Maua , a Zambésia era rica de artesanato , peles tratadas de animais, leopardo ,crocodilo , dentes de elefante trabalhados , dos mais diversos tamanhos alguns com quase 2 metros , muita diversidade de peças em madeira, de ébano ou pau preto e pau rosa ( pelo cheiro que emite, é usado na fabricação de perfumes ).
O trabalho da madeira é uma arte desenvolvida pelo Povo Maconde , dizem que de influência egípcia , pelas caravanas que demandavam o sul de África . Os Macondes ocupam a região norte , para cima de Nampula , até à fronteira com a Tanzânia , caracterizada por densas matas que tornam o acesso muito difícil ; o povo é altivamente guerreiro , a colonização da região muito difícil e mesmo incompleta ainda naqueles tempos.
A madeira é trabalhada com instrumentos primitivos , manejados com rapidez e precisão , e dela extraem obras de enorme sensibilidade humana com grande equilíbrio de proporções ; mais do que decorativos, esses objetos são a expressão da sensibilidade de um povo.

Esses trabalhos são oferecidos à porta de casa, encontramos um artista que se propôs fazer as peças de um jogo de xadrês .
Compramos também 3 dentes de elefante , uma pele de leopardo , linda , e uma pele de crocodilo não curtida ( vamos ter de a mandar curtir , para a poder transportar para Portugal) . Os dentes de elefante , aquele artista das peças de xadrez, se propõe trabalhá –los .

Junho 1962 – a Tininha me dá a noticia mais esperada naqueles tempos, vou ser Pai ! O encantamento é enorme, será moçambicano ou moçambicana, a Tininha vai ter que fazer exames médicos , o enxoval vai ser ocupação predileta .
Felizmente temos ali um médico , para lá de meia idade , que atende a Tininha, logo aconselha a fazer o parto em Quelimane , ali só temos energia até as 22 horas, pode haver complicações. O nascimento ainda está longe .
Os jornais nos dão noticias dos resultados da Copa do Mundo no Chile – Brasil e Garrincha ! - , é fundada a Frelimo , Frente de Libertação de Moçambique .

No convívio com os europeus vamos - nos acostumando ao uso de palavras africanas ,já falamos kanimambo - obrigado - , manambua - cão -, chibante - coisa berrante , vistosa . Aceitamos também palavras como mata-bicho - café da manhã !
Em Moçambique , o português é falado por menos de 10% da população , existem mais de 20 idiomas nativos ; algumas vezes a dificuldade de comunicação com os africanos é grande .

Os Beatles começam a ter as suas músicas tocadas no rádio ; eu compro um toca - discos portátil , alguns Sargentos já têm discos que me emprestam , estou – me apaixonando pela escuta, talvez porque os dias são agora mais monótonos , a ansiedade pela chegada do bébé os deixa maiores , mais difíceis de passar ! O enxoval aumenta !

Natal 1962 – pela primeira vez montamos árvore de Natal ! O nome do futuro Guterres Quintans Graça nos ocupa, na alegria da descoberta.
Nomes passam nas conversas, João António em homenagem aos Avós surge primeiro . Mas ,e se for menina ? Menina , primeiro filho sempre foi meu sonho desde adolescente ! Helena Paula , tem um apelo que me encanta, fica esse .

A colonização portuguesa e agora a situação de risco de insurreição dão origem a muitas estórias ! Nos visitam dois militares , em roupas civis de péssima qualidade , apresentação de Robison Crusoé , que percorrem o norte de Moçambique se misturando com os nativos para a coleta de informações , nos contam casos das dificuldades que encontram, um deles nos fala dos artifícios que arranjou – casar com as filhas dos chefes tribais em cada povoação , assim ganhando respeito e livre trânsito . Mas dava muito trabalho !
Por eles fico sabendo que um dos meios para antever um futuro levantamento numa região era o controle das compras de sal , quando muito aumentadas informavam da formação de estoques , material essencial na conservação da caça que seria préviamente estocada !
Esse militar eu viria a encontrar um ano depois , ele fazia a contra espionagem na região do Lago Niassa, onde eu estava.

Hora de gente chegando ! O médico faz as contas , aconselha a Tininha a seguir para Quelimane , meio de janeiro, vai nascer já !
Nossa vez de conhecer o monomotor , 3 passageiros mais o piloto que gostava de provocar o medo dos iniciantes , às vezes fingindo adormecer nos comandos , outras em vôos rasantes pela copa das árvores da mata.

Tininha se instala numa pensão , bem próxima ao Hospital que a atenderia, pensão que por tal era principalmente frequentada por mulheres grávidas vindas de toda a Zambézia.
Quelimane é luxuriante ! A 20 Km da foz do Rio dos Bons Sinais , no Oceano Índico, o porto ocupa uma antiga região pantanosa , separada do interior por extensa faixa de palmares .
A origem do nome – de killing man ,inglês , como diziam – lembrava ter sido uma região infestada por mosquitos transmissores do paludismo ( malária ) , os mosquitos anopheles que pela picada transmitem um protozoário parasita que origina uma doença infecciosa grave, causadora da morte.Desde a chegada a África, nos era obrigatória a tomada semanal de comprimido de Daraprim - pirimetamina - , imunizador dos efeitos do mosquito.
Com cerca de 100.000 habitantes , a cidade é bem construída, provida de recursos que lhe possibilitavam ser um local de lazer para os europeus ricos do Gurué , ruas e avenidas com árvores de grande porte em toda a extensão . Mas o clima ! Estávamos em plena época de chuvas, a humidade do ar era quase total, o suor escorria pelo corpo quente e pegajoso, a proximidade dos grandes ventiladores não diminuía o desconforto! De noite, éramos tentados a banhos de chuveiro freqüentes, mas o suor não saia mesmo com o enxugar das toalhas !

Nessa pensão a Tininha ficou umas 3 semanas , muitos dias sozinha, eu tinha de estar no Aquartelamento , viajava nos finais de semana no monomotor.
O médico do Hospital aconselhava a espera ,está para estes dias !
Final de fevereiro , aniversário da Tininha, eu consigo uns dias de licença , fico na pensão lhe fazendo companhia . Estou ansioso , receoso de mais uma situação desconhecida , sem o acompanhamento habitual da Família nessas situações.
Mas aproveito o remanso . Na pensão servem ao almoço umas mangas deliciosas , que vêm para a mesa sem caroço, que eu repito várias vezes,envergonhado . Ali , às refeições , criança de 5 ou 6 anos se manifestava diariamente em revolta contra os pais, altos gritos, bater de pernas e braços, não queria comer ; em todas as tardes, ela se fartava de doces e bolachas , compensando a abstinência malcriada das refeições.
Não vou querer meus filhos assim !
É sexta feira , a Tininha sente alguns incômodos, depois do jantar resolvemos andar , entramos no cinema ali perto, não podemos ficar longe do Hospital . Um filme qualquer , a Tininha acha melhor passar pela pensão e fazer a malinha com as roupas, rumo ao Hospital . São umas 22 horas, fico ali ao lado da cama passando as horas mais angustiantes da minha vida ! As dores vêm e vão , já estão voltando , a enfermeira só vem raramente, a manhã começa , a Tininha está cansada, eu desesperado !
O médico chega da sua noite bem dormida , manda levarem a Tininha para a sala de partos, eu fico ali na porta, dá para o pátio , posso fumar.
A enfermeira me diz que as dores já passaram , eu fico mais descansado, o médico está lá, posso ir ali na pensão descansar um pouco .
As senhoras da pensão me perguntam ,eu conto aliviado que as dores já passaram , meu Deus , isso é mau , não pode acontecer , elas dizem ! - eu não sabia ! – corro para o Hospital .
É meio dia , chego angustiado !
Meu Filho tinha nascido – João António , é sábado , 2 de março de 1963 !
3,2 Kg de peso , 51 cm de altura .

A Mãe descansa , o bébé está sendo assistido , espero . Entro no quarto , está lá meu filho ,deitado no berço, Tininha preocupada porque acha que a orelha ....! Finalmente sou Pai !

Três dias depois estamos saindo do Hospital , ficamos mais dois dias na pensão , Tininha tem que voltar ao Hospital. Pagamos todas as despesas , gratificamos as enfermeiras, vamos para o monomotor , regresso feliz a Vila Junqueiro . É dia 7.
Preciso comprar cigarros, não tenho dinheiro algum ,Tininha encontra uns trocados na bolsa . Não há dinheiro que pague a Felicidade !

Nos mudamos para uns quartos do hotel , já concluído mas não inaugurado, gentileza do proprietário. Ali João António vai perder o cordão umbilical, começar a tomar seus banhos diários, brincar nas mantas estendidas no chão , abrir seus primeiros berreiros.
Compro uma máquina de filmar, procuro guardar aqueles momentos de encantamento .

As notícias me chegam do Mundo , que parece tão distante .
A guerra tinha-se estendido ao território português da Guiné , aí particularmente difícil obrigando a assumir quase só posições defensivas .
No quartel , nasce a paixão pelo voleibol, se constrói quadra e formam-se equipas. O relacionamento com meus colegas não melhora, não participam de atividades de lazer junto à tropa, talvez sintam mais a frustação de o regresso não chegar.

Noticias da morte por câncer do Papa João XXIII , que tinha convocado o Concílio do Vaticano II de onde saíram alterações aos comportamentos da Igreja procurando aproximá-la dos fiéis, cada vez mais afastados como eu , desde aquela decisão ouvindo o rádio de meu Pai.
O meu João cresce rapidamente , começa a devorar potinhos de comida ,as brincadeiras na manta do chão são mais decididas. Tininha está com problemas de cárie , os meus dois anos de comissão terminarão em agosto , máximo setembro estarei de volta a Portugal .

Decidimos que a Tininha regresse mais cedo , em Lisboa ela vai obter tratamento dos dentes mais seguro e fácil – aqui o dentista é um enfermeiro , mulato , que tinha tido a coragem de arrancar um dente do siso da Tininha , grávida , anestesia precária , cadeira comum substituindo a de dentista , que não havia , razão de pânico quando mais tarde nos dizem que poderia ter tido sérias conseqüências ! Também , poderá arranjar emprego ,auxílio financeiro que vai ser indispensável na reorganização da nossa vida.
Ficará em casa de meus Pais , o casarão é grande ,tem o que era o meu quarto , certamente os Avós vão ficar felizes podendo conviver com o neto.

4 de julho de 1963 , sábado , a Tininha e o João António , 4 meses, tomam vôo naquele monomotor, vão para Quelimane , depois cidade da Beira e daí direto para Lisboa ! Os aviões da TAP na época são Super Constellations , pouco mais de 100 passageiros , não estou temeroso mas as saudades começam a explodir , as cartas serão quase diárias .
Tininha chega a Lisboa em 6 de julho. Alguns dias depois tira uma fotografia com o João no colo, 4 meses e meio , durante muitos meses será minha companhia !

Agora os dias passam mais devagar, aquele hotel vazio é assustador , procuro maior participação nos jogos de vôlei , faço contas às minha economias , tive de pagar a viagem da Tininha , parte do meu salário passa a ser depositado em Lisboa.

Nossas comunicações rádio agora funcionam bem . O meu entendimento das rotinas administrativas militares é completo.
Já noite , uma comunicação rádio urgente ! Confidencial , estranha ! O Comando Militar em Quelimane quer que elaboremos toda a prestação de contas para uma obra a ser feita na estrada Nova Freixo – Maua , valor de quase 700.000 escudos ; essa prestação deve conter todos os documentos comprovatórios, folha de mão de obra , notas fiscais de compra , relatórios de participação de veículos de transporte e obra, tudo como se a obra tivesse sido realmente feita ! Não dizem se alguma vez o será ! Querem tudo já dali a poucos dias, assinado pelos responsáveis da obra e enviado para Quelimane.

Me lembrando do tal ditado « manda quem pode ...» , eu e o Capitão passamos horas bolando como proceder, fazemos mais ou menos um cronograma da obra , orçamos no olho e saio para trabalhar. Listagens de mão de obra, nomes inventados , alguns tirados de obras já por nós feitas, peço no comércio , meio envergonhado , notas frias para cobrir valor tão alto . Alego que quando a obra for feita, os materiais serão comprados ali, nas quantidades e preços. Não me demonstram problemas - aquilo devia ser rotina deles ! - tudo pronto e assinado , segue no monomotor para Quelimane.
Não muitos dias depois, nova comunicação rádio , agora convocando o Alferes Graça a apresentar-se no Governo de Quelimane ! Releio , trata-se mesmo do Governo , não do Comando Militar !
Não preciso nem lembrar do ditado , vou no monomotor para Quelimane . Me apresento, burocracia pomposa, me entregam uma ordem de pagamento no valor da obra, em meu nome !
Atordoado , chego no aeroporto , hora do regresso , só eu de passageiro.
O tempo daquele final de tarde tinha fechado , nuvens escuras e
baixas , densas, cobrindo o aeroporto. Pergunto ao piloto , melhor seguir amanhã ? Mal me responde , subimos no aviãozinho , eu calado de medo .
Corrida na pista, o avião levanta no meio daquelas nuvens negras que pareciam fantasmas nos abraçando . Me encolho , fecho os olhos. Abro – os logo depois com o brilho de um Sol magnífico batendo no vidro do avião , nenhum sinal daquela tempestade que parecia só esperar para desabar ! Continuei calado , aquela ordem de pagamento estava ali bem no meu bolso, em meu nome !

Esse dinheiro ficaria na minha conta , aguardando ordem para realização da obra , era um valor muito alto , mais de 10 anos de meu salário de Alferes do Exército Português , muito superior ao ganho por meu Pai como 1 º Sargento quando se aposentou !

Estamos em agosto ,nossa ordem de regresso não chega . Fala-se em dificuldades de Portugal para repor tantos militares, são agora 150.000 que se espalham pelos territórios em África , mais de 5% da força de trabalho do País.
Mas o Capitão ,com tempo anteriormente passado em Angola, é substituído por outro , que chega logo se mostrando descompromissado com os afazeres militares - não muitos naqueles bons tempos - , mais interessado no whisky e nos jogos de bridge, estendidos dos finais de semana no Clube para rotina diária nas ricas casas dos fazendeiros.
O « meu dinheiro » está mais protegido , o novo Capitão parece descrente daquela estória , o outro com a euforia da partida nem se lembrou.

Continua o meu entusiasmo pela música , ouvida nos meus discos tão alta quanto possível . A Tininha , na passagem pela cidade da Beira , conseguiu comprar alguns discos, que eu recebi pelo correio .
O vôlei melhora a performance com o forçado treinamento. Decidimos encontrar adversários nas Companhias Militares por lá aquarteladas, vamos a Mocuba e a Nova Freixo . Viagens na GMC, passeios turísticos . Ganhamos .
E na primeira das localidades tenho a oportunidade de ver a única cobra de toda a estadia em Moçambique ! Eu sentado na porta de um bar, final de tarde, de frente para a estrada, um fusca pára e dele saiem dois civis , novos , que se dirigem ao bar . Ainda não andaram meia distância , alguém grita – uma cobra ! Debaixo do fusca desenrolava-se calmamente uma cobra, uns dois metros, caindo para o chão , grossa, cabeça triangulada , começando a se empinar. Um dos civis abre calmamente a porta do fusca, retira uma arma de caça e dispara um tiro certeiro na cabeça do animal. Por pouco não teria um única cobra para ver !

Já estamos em outubro. Surgem boatos de deslocamentos nas populações lá para a fronteira com o Malawi , para o Lago Niassa.

E para complicar os tempos finais de nossa estadia, assim o achamos, antecipadamente temerosos, vem uma ordem do Comando Militar – seguir para Vila Cabral com todo o pessoal que tinha estado em Maua , ali em Vila Junqueiro fica só o pelotão inicial !

Vila Cabral era uma cidade de cerca de 50.000 habitantes , a oeste de Moçambique, Distrito de Niassa , a 650 Km de Vila Junqueiro , ligada a Nova Freixo por estrada e por aquela Maria Fumaça que conhecíamos em 300 Km de temerosa linha férrea. Zona alta de planaltos , a 1300 metros de altitude , clima moderado quase todo o ano , saía-se dali na direção norte para Metangula , bem na costa do Lago Niassa, fronteira natural com o Malawi . Seguindo mais para norte se chegava a Olivença , último posto militar quase na fronteira com a Tanzânia.
O Lago Niassa apresenta orientação norte – sul , ocupando uma área de 30.000 Km ², quase 600 Km de comprimento , 80 de largura.
Embora uma região muito pobre e pouco povoada , a proximidade das fronteiras e o terreno muito acidentado , com elevações chegando a 1800 metros e descidas caindo abruptamente para o Lago , que ficava ao nível de 400 metros , criavam as condições ideais para infiltração de agitadores políticos vindos dos paises vizinhos.

Já se encontrava na região um Batalhão de Caçadores, mas chegavam reforços de Paraquedistas e também nós, Sapadores de Engenharia , ao final de 20 horas de viagem por estradas cansativas.
Vila Cabral era uma cidade plana, mergulhada em extensas matas e verdejantes plantações de pinheiros.
O clima era de preparação para a guerra , difícil imaginar que estaríamos correndo esse risco , agora já ultrapassados os 2 anos de comissão .

Mas a Companhia não ficaria em Vila Cabral – vai seguir para Metangula, há que abrir estradas na região para facilitar o acesso de tropas aos locais de vigilância na fronteira com o Malawi.
Felizmente, por ser o responsável financeiro , fico em Vila Cabral , para abastecer de mantimentos , materiais e equipamentos as tropas em trabalho na fronteira. Me instalo num quarto de blocos à vista , toscos, chão de cimento mal alisado, roupas dependuradas em arame estendido parede a parede , cama e mesa metálicas , no interior do Quartel do Batalhão de Caçadores .
Quase sozinho , estão comigo apenas alguns soldados de um pequeno grupo de Engenharia que por lá se encontrava anterior à nossa chegada , tenho ao menos o prazer de me levantar tarde e de ser o último dos Oficiais a entrar na Cantina para tomar o mata – bicho , leite bem fresco , pão e manteiga excelentes , numa paz que me refazia da amargura de permanecer em África para além dos 2 anos.

Finalmente , princípio de dezembro , a ordem chega ! Viagem até Nacala, outra vez o navio no contorno pelo Cabo das Tormentas, será que dá tempo para chegar antes do Natal ?
Mas meus trabalhos não terminaram !

Sou o Oficial responsável pelas contas da Companhia que precisam ser totalmente aprovadas , também pelo seu patrimônio que tenho de entregar à Companhia que nos substitua ! Vejo a alegria da minha tropa subindo nos caminhões, me despeço de gente que não mais verei e que ali foram partícipes de momentos para sempre gravados na minha memória, não me é dado o prazer de uma ultima viagem com eles, da chegada juntos a Portugal - tenho de ficar , cumprir mais aquela dolorosa missão ! Fico mais sozinho !

A nova Companhia chega uma semana antes do Natal , noite adentro. Sei da ansiedade e medos por que passam , lembrei de mandar preparar as camas dos Oficiais , de arrumar a caserna dos soldados , me recordo de como cheguei a Maua , daquela primeira noite dormida no chão desconhecido .

Um dos novos Oficiais me procura , estou no meu quarto .Sinto que está ofendido , voz altiva de comando - Graça, os lençois das nossa camas têm vincos de sujeira ! Eu vi que ele estava convicto daquela falta de consideração , disse uma besteira qualquer e fechei a porta.

Dias mais tarde , esse Oficial estava regressando de Metangula , em viagem de distribuição das novas tropas na região. O jeep quase desaparecia dentro das camadas de lama que o cobriam , os rodados tinham sido envolvidos em mantas para poderem avançar nos lamaçais, já estralhaçadas naquela altura , poucos fiapos dependurados ; o Oficial e os soldados eram figuras quase de barro , escondidas na terra vermelha que carregavam !

Eu tinha aquele dinheiro todo em meu nome, na verdade algum eu tinha tido a coragem de gastar , em bolas e equipamentos de vôlei e futebol, na reparação de veiculos desgastados pela viagem de Vila Junqueiro para cá e depois nas viagens para o Lago Niassa, evitando com isso solicitar complementos de verba que exigiam burocracias pesadas e autorizações por demais demoradas . Tudo estava perfeitamente documentado , sobravam quase 600.000 escudos que entreguei ao Capitão da nova Companhia , que os recebeu primeiro receoso e depois sorriso de felicidade quando se apercebeu das facilidades que aquele dinheiro lhe poderia dar na manutenção dos coitados dos jeeps !

Bom , eu poderia ter ficado rico , mas a Felicidade não se compra.

Noite de Natal , 1963 , que melancólicas saudades ! Aqueles Oficiais tinham trazido na bagagem as tradicionais delícias portuguesas para comemorar o Natal , que sabiam iriam estar passando poucos dias depois de chegarem a Moçambique. Vou no quarto de um deles, sentados na cama comemos nozes , figos , abre-se uma garrafa de Vinho do Porto , mais nozes e figos, aparece um garrafa de Aguardente de Figo , especialidade do Algarve , é muito forte mas tem uma textura deliciosa !
Tem Missa do Galo , festa lá na Cantina , mas eu vou para o meu quarto , prefiro vencer as minhas saudades sozinho.
Meio da noite, acordo , não sei onde estou , o que aconteceu aos lençóis e chão ! ? Tento chegar aos banheiros que estão lá para a frente do meu quarto , tenho de atravessar a parada ao relento , não sei como volto !

Metade de janeiro , 1964 , está próximo o meu aniversário , 25 anos. Chegam a Vila Cabral mais tropas, alguma Unidade apoiada por cachorros de guerra que passeiam pela cidade com seus tratadores e ar ameaçador – os boatos aumentam , gente que se desloca lá em cima na fronteira com a Tanzânia .
Finalmente vou para Lourenço Marques , em avião Nordatlas , bimotor , bojudo , que era utilizado no reabastecimento e no lançamento de paraquedistas . Vou para o Batalhão de Engenharia, aprovar as minhas últimas contas e , enfim , partir para Portugal. Deixo o Norte de Moçambique, me sinto pelo menos livre daquele pesadelo em formação.

A Guerra em Moçambique começou em setembro desse ano , com a explosão de depósitos de combustível , na região de Metangula.

Estou em Lourenço Marques , me hospedo num bom hotel não muito longe do Batalhão . A cidade me parece deslumbrante , afinal eu vinha do mato ! A metade Sul de Moçambique , fronteira com a África do Sul , é caracterizada por uma larga planície costeira de aluvião , coberta por savanas cortadas por vários rios. Lourenço Marques é uma cidade cosmopolita, influenciada por gente de várias culturas – árabes, chineses , indianos , ingleses , se misturando aos nativos de toda aquela África Austral , e aos portugueses que ali aportaram nas viagens para a Índia

Foi com a descoberta das minas de ouro no Rand e a construção da linha férrea para o Transval, que Lourenço Marques foi invadida por gente exótica e estranha, trazida no sonho da aventura. Vieram sírios, libaneses, italianos, ingleses, gregos e judeus e outros de nacionalidade obscura com nomes britânicos, e vieram mulheres de Porto Natal, Pretória e Joanesburgo, cançonetistas, dançarinas, prostitutas, criaturas abandonadas e belas, que se vendiam elas próprias em leilão, em cima das mesas dos bares, oferecendo-se em finos maillots cor de carne a quem desse mais libras.

Lourenço Marques está à beira mar , se estendendo ao longo da Baía da Lagoa , delimitada pelos rio Incomáti e Maputo .
Partindo da bela Praia da Polana, a cidade era cruzada por largas avenidas cheias de acácias, que lhe transmitiam um ar fresco e alegre . Devido às abundantes acácias, a cidade passou a ser conhecida como a cidade das acácias. Nos passeios corriam além das acácias diferentes tipos de árvores, palmeiras e jacarandás.
Lourenço Marques era desde os seus primórdios considerada uma das melhores cidades do Sul de África, impondo-se pela beleza esquemática com que se organizou no espaço , pelo seu elevado movimento comercial portuário e sobretudo pela reputação formada como estância privilegiada de turismo.

Passo o meu aniversário , chega o Carnaval ! A aprovação das minhas contas no Comando Militar encontra problemas inesperados, elas estão integradas nas contas do Batalhão , estas estão cheias de problemas , o Capitão responsável é uma figura simples, bonacheirão mas parado , insensível ao problema de um Oficial que apenas quer sair dali !

Procuro me distrair conhecendo a cidade , a praia é surpreendente, de águas quentes . Conheço um Oficial natural da cidade , família ali, que faz de meu guia de turismo. O Carnaval tem bailes agitados em clube tradicional, aceito o convite para uma noite. Assisto a uma bonita cantora brasileira ser assaltada no palco quase logo começar a cantar , roupas minúsculas, marchinha de carnaval brasileiro, os soldados entusiasmados se aproximam cada vez mais, pulam para o palco , a cantora foge , não retorna !

As dificuldades com a burocracia da aprovação de contas me desesperam . Obtenho autorização para analizar as contas do Batalhão , identifico pendências, peço ajuda a um Oficial compreensivo do Comando Militar , quero saber como posso ajudar . Corro nas lojas da cidade , peço favores para troca de notas fiscais mal elaboradas , preparo novos documentos de justificativas de despesas , solicito autorizações que estavam em falta, é assim mês a mês , vários meses estão com problemas !

A burocracia precisa de tempo !

O meu novo amigo é gentil . Final de semana prolongado, vamos no carro dele com outro Oficial estrada afora até à Praia do Xai – Xai , que me diz local sofisticado de turismo rico , cassino de jogo, belos hotéis , frequentado na época de banhos por ingleses « brancos » da África do Sul que aqui se encontram com suas amigas « não brancas » , pecado intolerado pelas leis de segregação social daquele País.
A 200 Km de Lourenço Marques , a cidade de Xai – Xai fica nas margens do Rio Limpopo e a pouco mais de 10 Km , por estrada de difícil acesso , se chega na praia do mesmo nome , atravessando dunas de areia finíssima , cobertas de vegetação cercando belos chalés de praia.
Com um cordão de rochas de corais correndo paralelo à costa, protegendo-a do mar aberto na maré alta e formando várias piscinas salgadas na maré baixa, onde então se podem apanhar maravilhosos mexilhões , a Praia do Xai – Xai é certamente uma das mais belas do Mundo.
Seguimos para norte , mais 10 Km e chegamos à Praia do Chongoene , semelhante à do Xai – Xai. Aí ficamos nessa noite , num bom hotel , quase vazio na época, para de manhã nos deleitarmos nas águas quentes do mar límpido e escorregar das altas dunas de areia que caiam para a praia.
Os dias passam devagar , para meu desalento . Acompanho à distância o aniversário da Tininha, o primeiro aniversário do meu filho . Corro entre o Comando Militar e o Batalhão .
Finalmente ! consigo a aprovação , não falta nada, estou livre !
Recebo a passagem de avião , preparo minhas malas , vou no Batalhão para últimos acêrtos , algumas despedidas . Passo na Guarda da entrada , ordem para me apresentar com urgência na Sala do Comandante . Não posso acreditar ! certamente existem problemas , talvez aquele « meu dinheiro » , algum papel fora dos regulamentos !
Na Sala do Comandante estão os Oficiais do Batalhão , ladeando a mesa a que se senta o Coronel, altivo , ar sério . Entro assustado, pernas tremendo ! Faço continência , o Coronel se levanta , corresponde à continência e eu ouço dele o inesperado – « desejaria que todos os meus Oficiais fossem iguais ao senhor , pela sua forte determinação e competência ; parabéns e bom regresso a Portugal » ! Não encontro palavras para retribuir , um simples obrigado , eu só quero mesmo voltar para minha Família !
Estou livre , sentado no avião que me levará a Portugal .Foram dois anos e meio em Moçambique . Uma maravilhosa sensação de alívio se ocupa dos meus pensamentos , deixo entrar o barulho do avião correndo na pista e iniciando o seu vôo. Lentamente retorno ao passado , às experiências que acabo de viver . As maravilhosas imagens do Gurué estão ali na minha frente , aqueles imensos tapetes verdes das plantas do chá entrecortados pelo azul das hortências e o rubro das acácias que ladeiam as estradinhas , em que milhares de trabalhadores deslizam na arte de colher as folhinhas , nativos humildes que pouco esperam da Vida , só verem crescer seus filhos na dura incerteza do amanhã . Sou um Homem diferente daquele que aqui chegou , sei dos erros históricos do meu País , a que tive o orgulho de servir voluntariosamente . Deixei para trás oportunidades de fortuna , continuo certo que a Felicidade não se compra . Saio daqui pensando que não será impossível criar nestas maravilhosas paisagens de Moçambique uma sociedade mais justa , de mais oportunidades para todos , independentemente de suas origens.
Sei que ganhei o desejo de poder fazer parte dessa transmutação , em qualquer parte desta África maravilhosa , que me deu meu primeiro filho e uma experiência inesquecível de Vida.

Ajeito a cadeira do avião , descanso, estou em paz.

KANIMAMBO Moçambique, obrigado .

Nenhum comentário:

Postar um comentário