janeiro 30, 2009

05 NOVAS DESCOBERTAS - PARTE II

Na Bélgica

Passaportes tirados , precisamos de Carteira Verde ( para conduzir fora de Portugal ) , seguro automóvel especial , mapa rodoviário da Europa , livros de francês .
A Tininha vende os nossos móveis, chora quando retiram , aquele móvel rádio e a TV faziam já parte da Família !
Compramos algumas roupas , vai ser Inverno , na Bélgica e Holanda o frio é intenso, passamos por casa de meus Pais , não esperamos muita ajuda deles , rumamos para Pombal , para deixar os Filhos – quantas recomendações , Joãozinho vai ajudar os seus Irmãos , temos a certeza , a separação vai permitir melhores condições financeiras futuras para todos, sempre que podermos vamos estar aqui , Natal é apenas daqui a dois meses e meio – fazer as malas e sair para a grande viagem , vamos no nosso Kadett , pois então !

4 de outubro , domingo , serão 2100 Km de estradas , a Tininha ajuda a conduzir , sou otimista, seguimos para a fronteira com a Espanha , precisamos estudar francês , aqueles anos de Liceu já quase foram esquecidos , vamos ter tempo durante a viagem !

Passamos por aquelas estradas nossas conhecidas , até à Guarda e daí para Vilar Formoso , fronteira com a Espanha . As estradas são apertadas , sinuosas , de má sinalização , as localidades ao longo delas nos parecem tristes , pobres, de cor cinzenta uniforme, as pessoas se vestem de roupas escuras, mulheres de muita roupa, longas saias , rostos curtidos pelo sofrimento. É o País que conhecíamos.
Vilar Formoso , vistoria de documentos, perguntas , que vamos fazer, que levamos no carro .
Entramos em Espanha, vamos para Ciudad Rodrigo , lado da fronteira espanhola, procuramos a placa para Salamanca , é uma cidade repleta de monumentos da Idade Média, tem a Universidade. A estrada é fácil , podemos conduzir mais à vontade , dá para estudar francês , a Tininha acompanha o mapa rodoviário e o livro de conversação.
Rota para Burgos , o movimento aumenta , grandes caminhões, as ultrapassagens precisam ser cuidadosas, a estrada segue por grandes retas . As localidades ficam afastadas da estrada, tem placa para Valladolid, não , vamos para Burgos, abastecemos , comemos alguma coisa , língua estranha , carregada , não são atenciosos .
Ultrapassamos Burgos , já andamos mais de 600 Km , as nuvens são baixas , o tempo pesado, um vento frio não deixa abrir as janelas do carro , a tarde está acabando . Vamos para Vitória , mais 120 Km , é capital do País Basco, o frio aumenta, estamos na base dos Pirineus , o Atlântico não está muito longe . Resolvemos parar , é princípio de noite , procuramos um hotel médio por ali próximo da estrada , vamos jantar e descansar. Tínhamos andado 750 Km , a tensão pela novidade das situações foi muito grande , aquele ruído contínuo dos pneus do carro rodando sobre o asfalto e a trepidação do carro que está dentro do corpo não deixam adormecer !
Manhã começando , de novo no carro , o vento cortante e seco , subimos por estradas carregadas de trânsito , nos aproximamos da fronteira , vamos descendo para San Sebastián , na costa do Atlântico , o seu Cassino ,cidade turística da Belle Époque do inicio do século , a Pequena Paris, ruas aburguesadas , o mar bate com violência nos paredões do cais.
A 20 Km estamos na Alfândega , Irun espanhola e Hendaya francesa , belo porto pesqueiro. Bon jour monsieur , passamos na fronteira mal mostrando os passaportes, estamos na França de Napoleão , de Paris dos sonhos dos namorados, finalmente temos estórias para contar àquelas senhoras lá no Café do Barreiro !
Placa para Bordeaux, continuamos. A estrada parece mais alegre, os campos são verdejantes , floridos aqui e ali, as localidades têm um ar festivo, um colorido chamativo nas casas de beira de estrada , postos de combustível pedindo para parar. Manhã quase passando , páro num posto , precisamos de gasolina, limpar vidros do sujo dos caminhões que respingam lama do asfalto molhado da neblina, entro no bar , faço uso do meu francês , reaprendido ali Tininha ao lado falando palavras - « Bon jour, s´il vous plâit, un verre de café au lait » , acho que me saí bem ! O sujeito no bar ri descarado , tem gente no balcão que colabora , « une tasse de café au lait , c´est ça ? » , ele diz ! Bom , são mal educados, pouca atenção com os turistas , fiquei sabendo que não é copo de café com leite mas sim taça ! Vou aprender !

Bordeaux é uma grande cidade , margem do Rio Garonne, perto do
Atlântico , difícil de atravessar , as placas sinalizam bem , me lembro dos afamados vinhos franceses, estou no maior centro comercial de vinhos da França, região da Aquitaine , dos vinhedos que se espalham pelo horizonte , esta noite no jantar vou pedir um Cabernet Sauvignon , melhor , talvez um Merlot !
Não dá para apreciar a região, belíssima , lá na frente temos Angoulême, Poitiers , até chegar a Tours .
As localidades se sucedem ao longo da estrada , o movimento é constante , os grandes caminhões são gentis, nos oferecem passagem , não dá para correr muito , sucessivos faróis nos obrigam a parar, tem linhas de trem cruzando , as cores se espalham em tudo . O tempo quase fechado da manhã dá agora lugar a um calor reconfortante , o sol que bate nas casas e nos campos deixa tons de laranja , Outono das árvores deixando cair suas folhas , tornando a estrada mais perigosa nos seus locais frondosos .

Chegamos a Tours , 700 Km depois de Vitória, merecido descanso , tem um atraente hotel antes da cidade. Mais acostumados com o cansaço da viagem , o corpo respondendo melhor à trepidação do veículo – excelente aquele Kadett ! – descemos para o restaurante , vamos apreciar o Merlot. Cardápio na mão , difíceis aqueles pratos , não pelo francês mas pela composição , descubro a iguaria que o livro de nosso aprendizado referia como muito apreciada por ali – rãs ! Insisto , temos de experimentar , é uma oportunidade , a Tininha reluta , aceita ! Serão rãs !
O Merlot é excelente , o pão diferente , suave , crocante, esperamos as rãs.
O garçon é perfeito na arte de atender, traz com orgulho o prato que deixa na minha frente , já lá o da Tininha – tinha uma coitada de uma rã , carne branca , certamente muito macia, parecia, corpo apenas meio aberto , braços e pernas estirados, ocupando o prato ! Não , eu me lembrava das aulas de zoologia no Liceu , tínhamos que dissecar uma rã, anotar cada órgão. Decididamente eu não ia comer aquilo ! A Tininha gostou ! Não me lembro o que falei ao garçon, meu francês não era suficiente para me lamentar da má escolha !

Vamos dia seguinte para a ultima étapa , a que nos levaria à entrada na Bélgica. Surpreendidos pela magnífica qualidade do café da manhã , croissants deliciosos , leite e manteiga parecendo terem acabado de chegar da fazenda , vamos para a estrada, 250 Km para Paris , mais 300 até à fronteira .
Passamos por Orléans , vale do Rio Loire , local das lutas de Asterix contra os invasores romanos , da glória de Jeanne D´Arc , da magnífica catedral .
Corremos para encontrar Paris, ótimas estradas , o sonho empurra o carro, meu Kadett vôa !
O movimento aumenta muito , o entrecruzamento de estradas é desconcertante, a sinalização é muito boa, ajuda , vou contornar a cidade , não dá par entrar nela, parece não mais acabar , pesada , bairros que se sucedem , não é bonita , um dia voltarei !

Uma auto-estrada magnífica nos leva para o Norte, são 300 Km para a fronteira ; paramos em restaurante de estrada , tem máquinas de refrigerantes, café , cigarros. Como o cigarro francês é ruim ! Escuro , denso , intragável , quase não dá para fumar , vou comprar Malboro !

Ao longo da auto- estrada os campos são abertos, o vento corre livre , não há limite de velocidade , Porsches e Mercedes passam pelo Kadett , chegaremos lá também ! Escolhemos o caminho para Lille , para entrar na Bégica por Tournai , outra viagem iremos por Valencienes para entrar por Mons.
A cidade de Lille leva para Dunkerque no Mar do Norte, Canal da Mancha, e para a Bégica por Tournais, numa região de grande densidade populacional .
A cidade é um grande centro industrial , principalmente têxtil, o trânsito aterroriza, parece surgir de todos os lados , a chuva miúda que cai mais atrapalha, a luz do dia começa desaparecendo, vamos parar em Tournais, pequeno hotel em casa simples , cortinas avermelhadas nas janelas , restaurante aconchegante , luz de candeeiros nas mesas , toalha colorida.

Estamos finalmente na Bélgica, amanhã no Escritório da Empresa , arredores de Bruxelas, um frio de medo não explicado , cansaço da viagem quase anestesiante , confio na capacidade de contornar dificuldades, a Tininha está falando melhor francês do que eu , as nossas estórias aumentaram , vamos aproveitar o jantar. O vinho continua estupendo, quero experimentar « Escargots Bourguignons » ! Uma delicia, especialmente com o ótimo pão francês e este vinho , Cabernet ! Nada melhor para fazer esquecer aquele medo do dia seguinte

Escargots Bourguignons pour 4 personnes

36 escargots décoquillés et leur coquille
150 gr de beurre d´escargots
5 cl de vin blanc de bourgogne ( aligoté, chablis ,..)
Une point de marc

Mixer 15 secondes le beurre avec le vin blanc et une
pointe de marc .
Déposez une pointe de beurre au fond de chaque
coquille , puis la chair d´escargot et complétez avec
votre beurre .
Dans um four três chaud placez vos escargots dans 8 à
10 min.

Servez avec le même vin que celui qui à servi a cette
préparation d´escargot bourguignon .........un BON
moment de plaisir culinaire.

Manhã seguinte, grande dia, estamos a caminho de Bruxelas – Bruxelles em francês ou Brussel em flamand , a segunda língua da Bélgica , dialeto holandês falado principalmente na região da Flandres , mas que se espalha por toda a Bélgica - 100 Km de ótima estrada, terno bem alinhado , Tininha aprumada , rápido entramos na cidade , procuramos uma banca de jornais para comprar um mapa orientador de nosso trajeto para aquele Escritório na Chaussée de La Hulpe , 1170 , Ibecor . Fica nos arredores de Bruxelas, não consta no mapa, solução pedir a um motorista de táxi que siga na frente, Tininha vai com ele .

A cidade é atravessada por extensos túneis , ligando os Bairros e conduzindo para a periferia. O motorista é cuidadoso , entende a preocupação da Tininha ali ao lado , vou seguindo o táxi tranquilo .
O prédio do Escritório é alto , todo o andar térreo de grandes paredes em vidro dando para o parque exterior, lá dentro inúmeras grandes máquinas, pessoas em volta , atarefadas – são os mais modernos computadores , que servem a todas as empresas ali instaladas no prédio .
Subimos, nos atende uma secretária gentilíssima , senhora de idade, Monsieur S. está aguardando. Tininha fala alguma coisa mais do que eu , tem mais à vontade . Monsieur S. é muito agradável , pessoa forte , quase 60 anos, impecável em terno inglês bem cortado . Apresentações , algumas informações , vamos ter de abrir conta em Banco , aquela secretária depositará o dinheiro todos os meses , temos de estar em Louvain amanhã, chama um gerente do Escritório , Monsieur A. , que vai - nos acompanhar ao Hotel em Bruxelas, almoçar e , amanhã , nos levar a Louvain.

Voltamos para Bruxelas, agora Tininha a meu lado , tenho que seguir o carro do Monsieur A. , um belo Volvo 164 , sedan, preto. Mas Monsieur A. devia ter pressa , conhece bem os túneis de Bruxelas, mora lá, eu não ,meu carro é só um Kadett ! ele voa pelos túneis, entra num desvio , outro ali, pé no acelerador , o carro dele é rapidíssimo , aproveita pequenos espaços para ultrapassar ! Chego na porta do restaurante colado no parachoques traseiro dele , não sei como consegui !

O restaurante é de grande luxo , poucas mesas , toalhas de linho alvejante, talheres de prata pesada . O serviço de mesa é feito por atenciosas senhoras , uniformes brancos, touca na cabeça . Entramos , eu e Monsiuer A. procuramos os toillets , ouço cá atrás uma atendente perguntando para a Tininha « combien de couverts , madame ? » . Tininha não entende , se a pergunta fosse quantas pessoas , mas « couverts » !? Ah , três !

Entramos no Hotel Atlanta , no centro de Bruxelas, Boulevard Adolphe Max, grande avenida central , a 500 metros da Grand- Place , a Gare Central não muito mais longe ; o Hotel é antigo , móveis pesados, um certo luxo, confortável.
O cansaço era grande , a cabeça latejava pela atenção redobrada em seguir a conversa de Monsieur A. , que falava tanto quanto corria de carro.
Tínhamos que descansar ; à noite desceríamos para uma rápida refeição em qualquer restaurante , depois deitar um rápido olhar por aquela cidade , de que iríamos estar tão perto durante alguns meses .

Jantamos ; o boulevard convidava a um passeio até àquela praça que parecia imponente , a Grand – Place : era certamente o coração de Bruxelas , uma obra prima arquitetônica, grande como um campo de futebol , envolta por belíssimos edifícios de estilo gótico , século XV , fachadas por inteiro ornamentadas , estatuetas , figuras e frases ciseladas na pedra, compondo um conjunto surpreendente de riqueza decorativa e estrutural . Os edifícios recobertos de dourado refletiam a luz de holofotes , criando um aspecto feérico . Ao longo dos passeios ,entradas para o subsolo de alguns edifícios levavam a bares de mesas e bancos em madeira tosca, pesada, ambiente obscurecido , paredes talhadas na pedra , ornamentações de figuras medievais, que nos transportavam à Idade Média . Ressaltando daquele magnífico conjunto , um edifício ocupado pela Prefeitura – o Hôtel de Ville – e na frente dele um outro – a Maison du Roi - , circundados por edifícios de antigas Corporações de Ofícios . Só por si , a observação de tão magnífica demonstração do talento do Homem , fazia valer a viagem !

Manhã seguinte , Monsieur A. nos guia até Louvain , 20 Km a leste de Bruxelas , coração do Brabant Flamand, região da Flandres, por ótima estrada de três vias, a terceira para uso alternado ora pelos que trafegavam na via da direita ora pelos da via da esquerda , o que permitia velocidades altíssimas que os belgas pareciam adorar ! Eu estava aprendendo !
Louvain era uma cidade jovial , de estudantes, Universidade Católica fundada em 1425 pelo Duque John IV de Brabant . Na Rua Brusselsestraat , centro da cidade , aí nos instalamos, Hotel Magestic , propriedade de senhora de forte compleição, marido paralizado por derrame cerebral, duas filhas . Hotel simples , apenas café da manhã, a diária e as refeições fora iriam caber nos nossos proventos ali na Bélgica , alguma folga para lazer .

Na rua do Hotel , para um lado a Estação de Trem , grande praça , outros hotéis, para o outro , ali atrás , uma belíssima praça que era o centro antigo da cidade .
Nela , um fantástico edifício , estilo gótico, que abrigava o Hotel de Ville , século XV , Monsieur A . dizia ser o mais bonito edifício medieval do Mundo ! Na sua frente , um fontanário formado pela estátua de um estudante lendo - o Fonske, a Fons Sapientiae , a Fonte da Sabedoria !
De tempos em tempos este estudante era vestido com trajes próprios de cada ocasião !

Para outro lado , a Biblioteca da Universidade , edifício mais recente , construído onde teria sido um castelo no século XII , projetava para os céus uma torre de carrilhões que Monsieur A. dizia ser a mais alta do Mundo !

A igreja de St. Peter´s e outras dezenas de igrejas, capelas e monumentos faziam daquela cidade um estimulante centro para estudantes de todo o Mundo , que se locomoviam com as suas bicicletas entre bares, restaurantes, livrarias técnicas, centros residenciais universitários e um comércio vultoso.

Eu estava ali, fazia agora parte daquela amálgama de gente que procurava aprender, eu tinha um motivo a mais para maior felicidade do que a deles , eu estava sendo pago para isso ! Monsieur A. me acompanhou na Universidade , fiz a inscrição e comecei as aulas.

O Curso de Cervejaria da Faculdade de Ciências Agronômicas que me reteria ali até ao final de março seguinte , era ministrado por um entusiasmado professor belga, Prof. De Clerck , autor dos livros didáticos , pesquisador de uma indústria que estava agora saindo do obscurantismo de práticas seculares sigilosamente guardadas por religiosos dentro dos seus conventos e por místicos mestres cervejeiros que tinham aura de alquimistas . A indústria se envolvia ainda de mistérios só adentrados por afortunados que faziam daí sua fortuna e prestigio ; mas o desenvolvimento da Quimica Orgânica auxiliado pela descoberta de melhorados métodos de análise quimica, vinha derrubando mitos e democratizando conhecimentos.

Louvain era o maior centro cervejeiro da Bélgica, país que tinha mais de 100 fábricas de cerveja, mais de 500 marcas comerciadas, consumo de quase 100 litros de cerveja per capita /ano !
Na região Norte da cidade , a Fábrica da Stella Artois era a maior da Bélgica , a mais conhecida internacionalmente , cerveja do tipo Pils , de fermentação baixa , cerveja que representava 75 % do consumo total. Mas o universo de cervejas era imenso - cervejas brancas , à base de trigo , pouco teor de álcool , moderadamente doces, refrescantes, às vezes com sabor de especiarias ou mesmo cereja ou laranja ; cervejas escuras , de sabor adocicado , de malte torrado ; cervejas produzidas em mosteiros , de fórmulas secretas ; cervejas de fermentaçõa alta , tipo inglesas ; cervejas de alto teor de álcool ; cervejas de fermentação natural, sem levedura , conservadas em velhos tonéis para vinho durante 2 a 3 anos !

Naturalmente que o consumo de cerveja na Bélgica teria de se revestir de misticismo ! Milhares de Cafés apresentam uma escolha muito vasta, com a cerveja servida com o maior cuidado , na temperatura ideal ( a da cave em que é fabricada , 8 a 15 º C ) , em copos de formas especiais , com a logomarca da cerveja, que se propõem valorizar o sabor e o aroma pela forma como as bolhas de gás se prendem nas paredes de vidro !

Eu não era o único aluno de língua portuguesa naquele curso – o Aragão vinha de Fábrica em Moçambique, residia lá mas era natural de Portugal , família de estirpe nobre, casado , esperava que a esposa chegasse em breve ; o Eduardo , vindo de Fábrica em Portugal , rico, solteiro , dono de um magnífico Porsche 911 , preto , motor traseiro ; ambos residiam em centros universitários .
Não do mesmo curso , mas ali estudando , outro português já amigo daqueles dois, o Fernando , aguardava também a chegada da esposa e filhos.

Então , assim entrosados , conversação fácil que fazia esquecer o francês , eu e a Tininha partimos para o conhecimento de Louvain, nas muitas horas que me sobravam da presença às aulas e do estudo em quarto do Hotel.
De imediato conhecemos o que passaria a ser local das refeições de todos os dias, almoço e jantar : ali perto do Hotel , um restaurante para estudantes – Les Almes , como era conhecido - de comida farta e barata, bandejão , alegre movimento constante de estudantes bem mais novos do que nós, por isso divertido.

Na rua do Hotel , de um lado um cinema com sessões estendidas até à ultima das 23 horas , filme pornô ( de absoluta proibição em Portugal naqueles tempos ! ) , e do outro um grande magazine , o L´Innovation ; mais lojas comerciais de modas , calçados e outras completavam o bom comércio da cidade , que fervia de bares e cafés , paradas dos estudantes . O colorido se espalhava pela cidade , nas fachadas dos prédios, nas bandeirinhas que se penduravam das lojas , nas que enchiam os postos de combustível. Não fora o frio que começava a cortar naquele inicio de Outono , vento já gelado que arrepiava o rosto nas saídas à noite, tudo parecia mágico para um jovem que poucos anos atrás procurava sobreviver nas matas de Moçambique !
Mas aquela cidade guardava surpresas ! Duas ou três semanas após a chegada , a Madame do Hotel me avisa , manhã no café , retire o seu carro para longe do centro da cidade , vai ter tumulto ! E teve , os estudantes faziam anualmente a sua festa de começo de aulas provocando a Polícia , na forma dos maiores distúrbios até que chegassem os carros tanque com lançadores de água que os jogavam rua abaixo ! Havia uma cumplicidade nessa manifestação desordenada , os dois lados sabiam que parava ali , naquele dia , o dia seguinte não havia vestígios da arruaça !

Entre todas as lojas daquele comércio , o L´Innovation atraía pelas dimensões dos vários andares e pela distribuição colorida e aberta dos seus produtos, que se espalhavam em mesas, balcões, armários, vitrines, dispostos quase ao acaso pelo meio dos corredores e escadas em que circulavam os clientes , sem nenhuma proteção a mãos menos cuidadosas ou até a possíveis furtos . Aí passávamos bom tempo , interessados por artigos por nós desconhecidos, eu mexendo em tudo para desespero da Tininha !

Nos finais de semana, a cidade se esvaziava, despertava vontade de explorar Bruxelas, mesmo que só para admirar a arquitetura medieval dos edifícios que se espalhavam pela cidade , o dinheiro não chegando para beneficiar dos magníficos restaurantes que admirávamos da entrada .

A cidade velha de Bruxelas era um magnífico centro comercial aristocrático, luxuoso e deslumbrante, de contundente dignidade imposta pela idade cuidadosamente conservada das ruas, quase todas fechadas ao trânsito de pedestres, dos edifícios e dos monumentos que se encontravam a cada passo , para o deslumbre dos olhos e da imaginação.
Saindo da Grand – Place , que durante o dia se encontrava enfeitada pela miríade de flores espalhadas pelos vendedores , se entrava na Rue des Bouchers , dois metros de largura remontando ao século XVIII, adentrando por esta nas Galeries Royales Saint – Hubert , 200 metros de encantamento divididos em três partes, a Galerie du Roi , a leste da Rue des Bouchers , a Galerie de la Reine , para oeste , e a Galerie du Prince ligando a Galerie Du Roi à Rue de Dominicains.
Esta passagem apresentava cobertura toda em vidro de 8 metros de altura , reunindo ao longo dela luxuosos magazines especializados, Cafés com simpáticos terraços exteriores , Docerias e Sorveterias , de ornamentação e iluminação fascinantes ; era também um centro literário , com um Teatro na Galerie du Roi , outro na Galerie de la Reine ( teatro de « vaudeville » ), várias livrarias .
Hotéis, restaurantes sóbrios e extravagantes , de várias nacionalidades , bares, mesas em terraços externos na maioria cobertos, ofereciam uma pausa no encontro de monumentos aqui e ali .
Na esquina da Rue de l´Etuve com a Rue du Chêne , lá colocado na metade do século XV , deparamos com o Manneken Pis - fontanário em estatueta de bronze com 61 cm , assente em base de pedra azul e com a inscrição em latim sobre ele « em pedra fui levantado e agora elevo a minha cabeça acima dos meus inimigos » , representando um menino urinando, é uma figura legendária, mundialmente conhecida ; ele representa por excelência o humor e o espírito de contestação dos habitantes de Bruxelas e se assocía às alegrias e dores da cidade através de quase 800 roupas
de que o vestem .

A elegância da cidade era completada pelo porte e apresentação de senhoras e senhores que desfilavam por essas ruas charmosas , enchiam as lojas e se sentavam com altivez nos terraços dos Cafés, bares e restaurantes ; elas em finas roupas , rendas e ornatos, de luvas e chapéu, eles em ternos de tecido pesado, corte impecável , sapatos brilhando , às vezes chapéu e bengala .

A diferença para a simplicidade que eu encontrava na minha Lisboa era por demais evidente, e invejável.

Em Louvain , as tardes de Outono ficavam mais frias , melhor suportadas no ambiente aquecido do L´Innovation , onde eu descobria o interesse na coleção de bandas de charutos , ali vendidas em coleções inteiras , ou em algum dos muitos pequenos bares da cidade , particularmente em um de esquina ali próxima em que se ouvia Silvie Vartin e Adamo tocados por velho rádio e tinha em um canto disputada máquina de jogo , de três cilindros concêntricos girando simultâneos com frutas que nunca se mostravam iguais.
A convivência continuada com aqueles amigos portugueses prejudicava o aprendizado do francês mas tornava mais fácil o passar dos dias.
A leitura dos jornais era quase esquecida , por difícil , mal me dando conta da ascensão de Salvador Allende no Chile , sonho da construção de uma sociedade socialista, e da eclosão ali na Bélgica de uma greve de dois dias em que todas as atividades foram paradas , me explicava a Madame do Hotel por razões de desacordo dos Sindicatos com a política tributária que o Governo pretendia impor, enquanto ela tinha de prover na cozinha do Hotel aos nossos almoços e jantares porque cá fora nem um bar abria ou um táxi circulava ! Sem cigarros , havia que recorrer às máquinas de rua, restando nelas apenas marcas locais e francesas , infumáveis !

Dinheiro sendo gasto , nos damos conta de que a Empresa não depositara o salário daquele mês , mesmo alguns dias já passados .
Surpresos , preocupados , vamos para Bruxelas, ao Banco em que abríramos conta ; atendidos por senhor respeitável , funções de Caixa, pergunto se posso descontar naquele Banco um cheque português , em escudos ; consulta no interior do Banco , o Caixa me dá resposta positiva , aproveito para sacar valor alto . Não que não tivesse admirado a facilidade , mas como se tratava de primeiro mundo , não fiquei pensando no assunto !
Menos preocupados , vamos falar com Monsieur S. – Tininha tinha estudado bem a lição , « Monsieur , nous sommes à court d´argent ! ». Aquela gentil senhora secretária de Monsieur S. tinha entrado de férias e esquecido de informar do nosso depósito mensal.

Agora podíamos começar a comprar os brinquedos para o Natal dos Filhos , presentes para os Pais.
Nas minhas conversas com os amigos e colegas belgas ficava evidente a necessidade de equipar o carro com correntes para os pneus, porque pelo menos no Norte da França e em toda a Bélgica a neve era fenômeno certo em todos os Invernos, exigindo dos carros algum sistema anti - derrapagem.
Entro numa oficina de automóveis , não têm correntes mas me mostram pneus com tachas metálicas que dizem excelentes ; olho para os meus pneus , se aproximavam já do momento ideal de troca para quem se propunha viajar intensivamente . Faço a troca e saio dali com um ruidoso barulho dos pneus trafegando no asfalto , que ia ficando marcado de furinhos na minha passagem !

A Universidade de Louvain exigia dos alunos estrangeiros um exame de francês , prova escrita e oral . Passei.

Hora de retornar a Portugal , Natal se aproxima. Um padre português que também estudava em Louvain sabe não sei como do meu retorno de carro , ele era de Coimbra.
Nos procura , claro , não custa nada , saímos os três para a fronteira , manhã bem cedo , nós ansiosos pelo abraço saudoso nos Filhos.
Viagem tranquila , já conhecedor do percurso e mais afeito à condução em terras estranhas , aqueles pneus segurando melhor o Kadett na estrada ; paradas em Tours, Vitória e na tarde do 3 º dia estava deixando o padre em Coimbra , rumo para Pombal.

O Natal me parece melhor pelas saudades , pelos muitos brinquedos e presentes para todos , pelas estórias a contar sobre as viagens e aqueles países .
Os Filhos estão bem, João António entrou ali na Escola , 2ª Classe , se mantém ponderado , começou a fase interrogativa ; a Helena Paula superou os seus problemas de garganta mas não as suas carências, comportamento receoso de novidades, sempre carente de apoio e afetividade ; a Olga Maria , com 4 anos, se mostra arrojada, às vezes complicativa no trato , ansiedade precisando de controle ; o Pedro Jorge é criança começando a descobrir as brincadeiras do irmão mais velho.

O Inverno vem rigoroso , agasalhos pesados, os dias felizes passam mais rápido , temos de estar em Louvain depois do Ano Novo .

Visitamos Lisboa, aproveito para passar no Banco , próximo à casa de meus Pais , para me certificar dos valores em conta e se aquele cheque entregue lá em Bruxelas tinha sido debitado. Não , não pode ser , Portugal não tem acordos com Bancos estrangeiros, os nossos cheques não são válidos no exterior ! Bom , saco valor correspondente , vou trocar em francos belgas na fronteira , a moeda de lá, e irei repor no Banco em Bruxelas , estaria resolvendo o problema .

Mesmo percurso, no Inverno aquelas localidades do centro do País até à fronteira em Vilar Formoso parecem ainda mais infelizes, as sombras do dia igualam tudo em monotonia, talvez eu esteja influenciado pelo colorido e alegria da Bélgica .
Entrados em Espanha , depois de Burgos , as estradas começam a aparecer com fiapos brancos, os campos à volta estão espelhados pelo gelo depositado nas plantas, ao longe as montanhas estão cobertas de neve.
À medida que nos aproximamos de Vitória o cenário se torna mais branco , o frio é cortante , a umidade dentro do carro incomoda , o ar quente no máximo. O espetáculo é grandioso , mas a viagem se torna cada vêz mais perigosa, a estrada tem grandes placas de gelo , logo ao lado a neve se acumula em montes de cor acinzentada pela mistura com a lama projetada pelos rodados dos caminhões. Aqueles pneus especiais ajudam o carro na sua estabilidade , não dou pelo gelo da estrada que faz derrapar os outros carros, todo o mundo vai parando , estou só eu cortando a nevasca .
Aqui e ali alguém dos carros parados na beira da estrada nos acena , sinal para ter cuidado , melhor parar , não dá para continuar . A nevasca aumentou , passo por dezenas de carro derrapados de encontro aos montes de neve dos acostamentos, tem caminhões virados com as suas cargas espalhadas, é um cenário inesperado , belo mas desolador, perigoso.
Que sorte a compra daqueles pneus ! Sigo viagem , preocupado mas seguro , o carro não aparenta dificuldades . Estamos em Vitória , passa das dez da noite , tempo de parar no hotel e correr para jantar em algum restaurante mais tardio.
Entramos no restaurante, preocupados, está vazio, já não atendem mais !
O garçon chega solícito, e descobrimos que em Espanha o jantar não começa antes das dez horas da noite , as lojas não abrem de manhã antes das 9 horas ! Costumes !

Novo início de viagem , vamos tentar chegar a Paris, desejo de ver um pouco dessa cidade deslumbrante. A estrada atravessando os Pirineus está transitável, as filas de caminhões fazem desaparecer a neve do asfalto , a velocidade é baixa mas a viagem segura.
Entramos em França, as estradas estão boas , há neve nos campos , telhados das casas cobertos de branco , árvores com grandes pendentes de gelo parecendo enfeites de Natal. Entramos em Paris final da tarde , aquele sonho de começar a conhecer a cidade nos leva para o centro , placas sinalizando o rumo.
Mas a cidade maravilhosa está coberta de neve ! As ruas, com pouco trânsito , acumulam neve que cobre tudo , não deixando vislumbrar onde fica o asfalto e onde ele termina ! Quero parar , encontrar um pequeno hotel, terminar aquela viagem que está ficando perigosa . Estou no centro, as placas indicam a Torre Eifell, não conheço nada daqui, me vejo passando quase ao lado dela , monstro de aço olhado ali de dentro do carro com os vidros embaciados , naquela fantasmagórica paisagem, cortando a neve não sei se do asfalto se de campo de terra batida !
Chegamos num hotel de ruinha ali próxima , a senhora na recepção nos olha de forma inquisitiva, certamente não esperava clientes naquele fim de tarde medonho ! Menos de carro, viajantes !
Temos que jantar, aquela viagem tinha sido arrazadora. Saímos para a rua , casacões compridos , luvas , cachecol, Tininha de gorro na cabeça. Nem 500 metros , entramos em pequeno restaurante, porta fechada, quase vazio , senhora simpática no balcão. Podemos nos aliviar das roupas , relaxar finalmente. De repente, quase logo depois de sentado , uma dor fortíssima corre o meu rosto , parecendo lâminas rasgando a pele , uma dor quase insuportável , que permanece ali , dolorosa ! A pouco e pouco a pele se aquece , a dor fica menos profunda e eu me acalmo, entendo o que seja a dor sofrida por coitado que tenha o seu corpo congelado , eu só tinha estado lá fora naquele frio intenso por poucos minutos.
Fazia 15 º C abaixo de zero , aquele estava sendo o Inverno da Europa mais castigado de muitos anos para trás !

Não tínhamos como ver Paris , dia seguinte chegávamos a Louvain , a cidade também coberta de neve , toda a área da Universidade coberta por um manto branco nos dando um espetáculo que em Portugal, País privilegiado, nunca tínhamos assistido .

O acompanhamento das aulas na Universidade continúa, procuro estudar no Hotel , os conhecimentos que descubro sobre essa indústria me fascinam , o Professor é entusiasmado e motivador. Dentro do Curso compreendem-se visitas a fábricas, visitamos a Fábrica da Stella Artois ali em Louvain e uma Fábrica de Malte não muito distante .

Algum dia mais livre, vou a Bruxelas, passear naquele centro velho e passar pelo Banco , devolver o dinheiro.
O mesmo senhor no Caixa , peço – lhe desculpas porque o Banco português não aceitou a transferência . Vejo o sorriso dele se abrir em alegre surpresa « senhor , nós não contávamos mais com esse dinheiro , eu estava com problemas porque fiz uma operação ilegal » ! Melhor assim.

Aquele magazine L´Innovation em Louvain era filial do L´Innovation em Bruxelas, que nós acabamos por descobrir agora , bem no centro da cidade .
Esta grande loja de departamentos tinha sido vitima de terrível incêndio em 1967 , mais de 300 mortos, apanhados na tragédia porque as portas de saída se abriam para o interior da loja ! Ainda mais magnífica do que a de Louvain, passou a ser nosso local de passeio em Bruxelas , protegidos do frio de lá de fora e deslumbrados pela diversidade de produtos e formas de exposição, boutiques de perfumaria e cosméticos das melhores marcas francesas , vidros e porcelanas de coloridos surpreendentes, papelaria com as mais diversas formas de cadernos , canetas e lápis , móveis italianos, brinquedos imaginativos, roupas de costureiros renomados , um mundo de luxo que ali se oferecia .

Aquele português , o Fernando , que continuava aguardando a chegada da esposa e filhos , fala em visitar Londres , tem amigos de colégio estudando também lá na Universidade , vem chegando um feriado prolongado , podemos passar lá uns dias. O dono do Porsche e o Aragão preferem ir visitar Berlim, capital da Alemanha , eu acho fascinante mas tem que atravessar a parte comunista daquele país, tenho receio de problemas, melhor ir conhecer Londres .

Vamos de carro para Oostende , na Flandres ocidental , cidade portuária , rainha das praias belgas, Mar do Norte. Passamos pela enorme Igreja de São Pedro e São Paulo, deixamos o carro estacionado ali mais adiante e vamos para o ferry boat que nos levará , atravessando o mar da Mancha, até Dover , costa da Inglaterra. O barco é grande mas balança nas águas agitadas do Canal , tempo fechado , escuro , de inverno inglês.
Quase duas horas de viagem, avistamos Dover com seus rochedos brancos de pedra calcárea, giz, rocha sedimentária formada em águas marítimas profundas pela ação de microorganismos que provocam a acumulação gradual de partículas de calcite . Mais próximo , são visíveis casamatas de defesa militar da 2 ª Guerra Mundial , mal deslumbradas pela névoa que se forma sobre o continente.
Pegamos o trem para Londres , vamos para Charing Cross , centro de Londres , ponto de referência topográfico da cidade . Estamos perto de Trafalgar Square , de um lado a National Gallery , as suas escadarias e conjunto de colunas suportando o edificio , no centro da praça a coluna de Nelson rodeada de fontanários e de quatro leões fundidos em bronze , outros monumentos em volta , aglomerado de pessoas, turistas quase todas. A cidade nos aparece imponente, orgulhosa , provocativa na sua sumptuosidade.
Tomamos táxi para Cover Street , local de pequeno hotel que foi indicado ao meu colega. Os táxis são qual mordomo enfatuado de uma casa nobre, pretos, modelos iguais de teto elevado , vidro separando do motorista, ali sentado ereto , impecável no seu terno escuro, conduzindo em marcha lenta pela esquerda do trânsito .
O Hotel em Cover Street fica quase na frente da University College e da Royal Academy of Dramatic Art . Prédio estreito , antigo , instalações sofríveis, quarto nas águas furtadas, contador de luz à entrada funcionando com introdução prévia de moeda , sem banheiro , lavatório com jarro de água para as mãos.
Final de tarde, saímos para a descoberta de um pouco da cidade . Procuramos o metrô , ali na saída final da rua, Euston Square . A London Underground , chamada de « The Tube » , inicialmente The Metropolitain Railway – de onde veio o nome de « metro » - foi a primeira rede de metrô construída na Europa , começando a funcionar em 1863 . Enorme labirinto de intricadas linhas a vários níveis do solo , tinha mais de 200 estações , quase 400 Km ligando toda a cidade e seus subúrbios.
Procuramos no mapa da entrada como chegar a Piccadilly Circus , linhas coloridas entrecruzadas, tiramos as passagens nas máquinas e descemos as escadas . A sinalização não parece deficiente mas , inglês ruim e túneis que se seguem uma escada depois da outra , resolvemos perguntar a uma senhora que passava , idosa , o caminho para a estação daquela linha que nos levaria , alguma baldeações depois , até Piccadilly Circus. A senhora procura ser gentil , tenta explicar da melhor forma . Seguimos, pouco adiante as placas nos dizem que a senhora se enganou , o caminho não é aquele , melhor voltar , procurar caminho certo. Encontramos, estamos andando nos túneis quase vazios quando ouvimos atrás de nós barulho de passos apressados , salto alto batendo no cimento – é aquela senhora simpática , correndo atrás de nós , respiração cansada , já tinha ido ao caminho que nos indicara , ela tinha visto estar errada e vinha afobada nos pedir desculpa, nós já estávamos no caminho certo , ainda bem , « I´m sorry, my appologizes » !
A amabilidade e a educação até exagerada dos ingleses tinha - nos sido apresentada ! « You are welcome , madame » !

Piccadilly Circus à noite era feérica ! A London´s West End , cruzamento das Regent Street e Shaftesbury Avenue , grande praça circular , era plena de bares e teatros, grandes fachadas iluminadas por enormes néons de cores que saltavam para os nossos olhos, apinhada de gente que procurava se divertir , era o coração da noite londrina .
Procuramos ali um restaurante, tipo taverna , cheio de gente, fumo de cigarro empestando o ar cruzado por luzes de projetores, barulho de musica misturado ao de vozes e ao bater de copos , mesa apertada , ao lado casal de gays em trajes de couro . Uma moça nos atende, é portuguesa , fala de sua estória ali ; é parente de proprietários de importante livraria em Lisboa, mandada estudar em colégio interno de Londres , desistiu dele para ganhar liberdade , a família não sabe, ela subsiste como garçonete de restaurante e se diverte.
A conta do jantar veio reduzida a um simples chá , favor daquela portuguesa despreocupada !

Seguimos a pé pela Shaftesbury Avenue , ladeando o Soho pelo seu lado sul. É um bairro multicolorido , cheio de clubes , pubs, bares, restaurantes, cafés , intermediados de sex shops que nós encontrávamos pela primeira vez de forma tão despudorada , inúmeros gays despreocupadamente passeando sós ou em grupos, gente enchendo tudo aquilo ! Nas sombras das calçadas , nas portas escondidas de prédios, muita gente se mostrava claramente embriagada , até drogada , grupos de hippies apareciam , ruidosos, roupas de cores brilhantes de inspiração indiana , calças bocas de sino, camisas tingidas . Fruto da evolução do pós- guerra , da exacerbação do nacionalismo e da guerra do Vietname , esses jovens, os hippies, apregoavam a não violência, o pacifismo e o amor livre, contestavam a civilização e os seus valores individuais , faziam da vida comunitária e das práticas do budismo ou hinduísmo a sua bandeira ; se espalhavam pela Europa, onde as liberdades individuais fossem mais protegidas pelas autoridades, aqui na Inglaterra e na Holanda , ocupavam espaços e edifícios públicos, trabalhavam o mínimo possível !

Entramos num pub , difícil chegar ao balcão, tomado por gente ruidosa , o ambiente não é confortável , saímos . Um pouco temerosos pela turbulência daquele bairro, seguimos pela Road Charing Cross, bem mais comportada , para Norte , direção de St Giles´ Circus , grandes edifícios vitorianos, muitas livrarias de livros usados, a University College ali para a direita.
Chegamos ao Hotel , cansados mas ainda extasiados pelo deslumbramento da Piccadilly Circus.

Manhã seguinte , sábado , levantar cedo e tomar café da manhã no Hotel , salinha apertada , poucas mesas, gente muito jovem, naturalmente estudantes. O atendimento é feito por duas jovens , pele bem clara , altas , belo porte, toda a aparência de estudantes trabalhando para ajudar nos estudos ; vestem minissaia minúscula , que em nada as impede de se debruçar no alçapão do elevador , apoio em um só pé para chegar mais longe, gritando os pedidos lá para baixo , visão de suas pernas quase nuas para uma platéia sonolenta , nada interessada !
Deparo ali com a moda das minissaias que se espalhava pela Europa, dali projetada por Mary Quant, a rainha da moda da Swinging London , saias curtas , não mais de 30 cm , extravagantes , coloridas e chamativas , usadas por mulheres de pernas longas , e depois também pelas nem tão longas, suéteres justos, botas de salto alto .

«Os anos 50 chegaram ao fim com uma geração de jovens, filhos do chamado "baby boom", que vivia no auge da prosperidade financeira, em um clima de euforia consumista gerada nos anos do pós-guerra nos EUA. A nova década que começava já prometia grandes mudanças no comportamento, iniciada com o sucesso do rock and roll e o rebolado frenético de Elvis Presley, seu maior símbolo.
A imagem do jovem de blusão de couro, topete e jeans, em motos ou lambretas, mostrava uma rebeldia ingênua sintonizada com ídolos do cinema como James Dean e Marlon Brando. As moças bem comportadas já começavam a abandonar as saias rodadas de Dior e atacavam de calças cigarette, num prenúncio de liberdade.

Os anos 60, acima de tudo, viveram uma explosão de juventude em todos os aspectos. Era a vez dos jovens, que influenciados pelas idéias de liberdade "On the Road" ( título do livro do beatnik Jack Keurouac, de 1957) da chamada geração beat, começavam a se opor à sociedade de consumo vigente. O movimento, que nos 50 vivia recluso em bares nos EUA, passou a caminhar pelas ruas nos anos 60 e influenciaria novas mudanças de comportamento jovem, como a contracultura e o pacifismo do final da década.
Nesse cenário, a transformação da moda iria ser radical. Era o fim da moda única, que passou a ter várias propostas e a forma de se vestir se tornava cada vez mais ligada ao comportamento.

Conscientes desse novo mercado consumidor e de sua voracidade, as empresas criaram produtos específicos para os jovens, que, pela primeira vez, tiveram sua própria moda, não mais derivada dos mais velhos. Aliás, a moda era não seguir a moda, o que representava claramente um sinal de liberdade, o grande desejo da juventude da época.

Na moda, a grande vedete dos anos 60 foi, sem dúvida, a minissaia. A inglesa Mary Quant divide com o francês André Courrèges sua criação. Entretanto, nas palavras da própria Mary Quant: "A idéia da minissaia não é minha, nem de Courrèges. Foi a rua que a inventou". Não há dúvidas de que passou a existir, a partir de meados da década, uma grande influência da moda das ruas nos trabalhos dos estilistas. Mesmo as idéias inovadoras de Yves Saint Laurent com a criação de japonas e sahariennes (estilo safári ), foram atualizações das tendências que já eram usadas nas ruas de Londres ou Paris.
O sucesso de Quant abriu caminho para outros jovens estilistas, como Ossie Clark, Jean Muir e Zandra Rhodes. Na América, Bill Blass, Anne Klein e Oscar de la Renta, entre outros, tinham seu próprio estilo, variando do psicodélico ( que se inspirava em elementos da art nouveau, do oriente, do Egito antigo ou até mesmo nas viagens que as drogas proporcionavam) ou geométrico e o romântico.

Em 1965, na França, André Courrèges operou uma verdadeira revolução na moda, com sua coleção de roupas de linhas retas, minissaias, botas brancas e sua visão de futuro, em suas "moon girls", de roupas espaciais, metálicas e fluorescentes. Enquanto isso, Saint Laurent criou vestidos tubinho inspirados nos quadros neoplasticistas de Mondrian e o italiano Pucci virou mania com suas estampas psicodélicas. Paco Rabanne, em meio às suas experimentações, usou alumínio como matéria-prima.
Os tecidos apresentavam muita variedade, tanto nas estampas quanto nas fibras, com a popularização das sintéticas no mercado, além de todas as naturais, sempre muito usadas.
As mudanças no vestuário também alcançaram a lingerie, com a generalização do uso da calcinha e da meia-calça, que dava conforto e segurança, tanto para usar a minissaia, quanto para dançar o twist e o rock.

O unissex ganhou força com os jeans e as camisas sem gola. Pela primeira vez, a mulher ousava se vestir com roupas tradicionalmente masculinas, como o smoking (lançado para mulheres por Yves Saint Laurent em 1966) .
A alta-costura cada vez mais perdia terreno e, entre 1966 e 1967, o número de maisons inscritas na Câmara Sindical dos costureiros parisienses caiu de 39 para 17. Consciente dessa realidade, Saint Laurent saiu na frente e inaugurou uma nova estrutura com as butiques de prêt-à-porter de luxo, que se multiplicariam pelo mundo também através das franquias.
Com isso, a confecção ganhava cada vez mais terreno e necessitava de criatividade para suprir o desejo por novidades. O importante passaria a ser o estilo e o costureiro passou a ser chamado de estilista.

Nessa época, Londres havia se tornado o centro das atenções, a viagem dos sonhos de qualquer jovem, a cidade da moda. Afinal, estavam lá, o grande fenômeno musical de todos os tempos, os Beatles, e as inglesinhas emancipadas, que circulavam pelas lojas excêntricas da Carnaby Street, que mais tarde foram para a famosa King's Road e o bairro de Chelsea, sempre com muita música e atitude jovens.
Nesse contexto, a modelo Jean Shrimpton era a personificação das chamadas "chelsea girls". Sua aparência era adolescente, sempre de minissaia, com seus cabelos longos com franja e olhos maquiados. Catherina Deneuve também encarnava o estilo das "chelsea girls", assim como sua irmã, a também atriz Françoise Dorléac. Por outro lado, Brigitte Bardot encarnava o estilo sexy, com cabelos compridos soltos rebeldes ou coque no alto da cabeça (muito imitado pelas mulheres).
Entretanto, os anos 60 sempre serão lembrados pelo estilo da modelo e atriz Twiggy, muito magra, com seus cabelos curtíssimos e cílios inferiores pintados com delineador.

A maquiagem era essencial e feita especialmente para o público jovem. O foco estava nos olhos, sempre muito marcados. Os batons eram clarinhos ou mesmo brancos e os produtos preferidos deviam ser práticos e fáceis de usar. Nessa área, Mary Quant inovou ao criar novos modelos de embalagens, com caixas e estojos pretos, que vinham com lápis, pó, batom e pincel. Ela usou nomes divertidos para seus produtos, como o "Come Clean Cleanser", sempre com o logotipo de margarida, sua marca registrada.
As perucas também estavam na moda e nunca venderam tanto. Mais baratas e em diversas tonalidades e modelos, elas eram produzidas com uma nova fibra sintética, o kanekalon.

O estilo da "swinging London" culminou com a Biba, uma butique independente, frequentada por personalidades da época. Seu ar romântico retrô, aliado ao estilo camponês, florido e ingênuo de Laura Ashley, estavam em sintonia com o início do fenômeno hippie do final dos anos 60.

A moda masculina, por sua vez, foi muito influenciada, no início da década, pelas roupas que os quatro garotos de Liverpool usavam, especialmente os paletós sem colarinho de Pierre Cardin e o cabelo de franjão. Também em Londres, surgiram os mods, de paletó cintado, gravatas largas e botinas. A silhueta era mais ajustada ao corpo e a gola rolê se tornou um clássico do guarda-roupa masculino. Muitos adotaram também a japona do pescador e até mesmo o terno de Mao »

Vamos para a rua, ao encontro de novo desta cidade fascinante, agora para a estação do metrô de Marble Arch , monumento em mármore de carrara , entrada para o Hyde Park , pelo Speaker´s Corner , onde oradores em cima de qualquer suporte mais elevado falam livremente de suas idéias, quase sempre políticos em procura de votos . Não tinha quase ninguém por ali , talvez pelo cedo da manhã, fria embora de sol claro ; seguimos bordejando o Park , pela Park Lane , grande avenida , corredor de tráfego , fascinante bairro residencial de luxuosas residências. Ao final dela deparamos com o Green Park , um pouco para a esquerda , ladeado a Norte pela Piccadilly . É um parque de grama deslumbrantemente verde , de corte por igual , ruas e fileiras de árvores colocadas geométricamente , que nos conduzem pela Canada Gate até ao Queen Victoria Memorial , no centro do Queen´s Gardens , frente para o Buckingham Palace , residência oficial da Rainha . Passava das 10 H30, uma multidão de pessoas se aglomerava na frente do Palácio – pouco esperamos para ver a troca da Guarda , diáriamente efetuada às 10H40 ! Ver a imponência daquele cerimonial enchia de orgulho os ingleses, e a nós , turistas , de admiração pelo luxo das fardas e precisão dos movimentos. Caminhamos ao longo de The Mall, grande passagem perpendicular ao Buckingham Palace , local de cerimônias em honra de Chefes de Estado visitantes , naquele dia decorada profusivamente com bandeiras da União Inglesa ; vamos até St. James´s Palace , também residência da família real , retornamos para contornar B. Palace e seguir na direção da estação do metrô de St. James´s Park .
Procuramos onde almoçar, mas naquela região de solenes edifícios públicos e certamente por ser sábado, iríamos encontrar apenas um restaurante , lotado , onde a opção foi um ruim « hamburger and chips » ! Entramos no metrô, vamos para a estação London Bridge , na outra margem do Rio Tamisa , em Southwark , queremos atravessar a London Bridge e seguir paralelamente ao longo do Rio , pela margem Norte, Cannon Street . A estação London Bridge é a mais antiga do metrô de Londres, com trânsito anual de cerca de 40 milhões de pessoas !Da saída da London Bridge olhamos para a nossa direita , está lá a Tower Bridge , uma ponte - báscula, uma das mais famosas do Mundo , ao lado da Tower of London, os dois pontos turísticos mais famosos da Cidade .
Numa curta visita turística há que fazer opções ! Embora deslumbrados pela Tower Bridge ali tão perto, seguimos no sentido contrário , começamos a ficar cansados, queremos chegar a Charing Cross, muito distante dali.
A 1 Km dali , encontramos St, Paul´s Cathedral ! É uma Igreja anglicana , residência do Bispo de Londres , do século XVII , em estilo renascentista , onde se realizam os funerais das grandes figuras inglesas , da família real , políticos e militares , com os túmulos do Duque de Wellington , o General de Waterloo , e de Lord Horacio Nelson , herói da Batalha de Tragalgar , uma jóia arquitetônica admirável.
Continuamos nossa caminhada pela Fleet Street , das grandes empresas de comunicação – The Daily Telegraph , France Press - até ao encontro da Somerset House , defronte para o Rio Tamisa e ao lado da Waterloo Bridge , enorme edifício , local de manifestações artísticas e com um imenso jardim interior onde no Inverno são realizados espetáculos de patinação no gelo . Estamos andando ao lado do Tamisa , pela Victoria Embankment , passamos pelo Cleopatra´s Needle , um obelisco em granito vermelho original das Cataratas do Rio Nilo no Egipto , de 21 metros de altura , com inscrições em caracteres hieróglifos , presente no início do século XIX ao Reino Unido por um Vice –Rei do Egito em homenagem à vitória de Lord Nelson na Batalha do Nilo .

Lá para baixo na mesma margem do Tamisa está o Palácio de Westminster , frente direta para o Rio, com a Tower Clock e o seu Big Ben, que avistamos , imponente e preciso . Mas , extenuados pela caminhada de mais de 4 Km , a tarde acabando , melhor entrar na Charing Cross, metrô para a feérica Piccadilly Circus, vamos jantar.
Não encontramos a garçonete portuguesa, a conta veio inteira ! Vamos para o Hotel , últimos olhares ao esplendor de luzes, às sex- shops, àquela amálgama de gente de todas as partes do Mundo .
Domingo , pequeno almoço no Hotel – onde estão as duas moças de mini - saia ? ! – e saímos para fazer o percurso inverso , até ao carro em Oostende e estrada para Louvain . A visita que acabava de fazer foi uma surpresa fascinante, diferente de Bruxelas que me transmitia uma sensação de recuo no tempo , de enlevo e admiração por um passado genial dos seus habitantes, agora Londres dava - me um inebriante mergulho na vida presente pela eufórica mistura de gentes , comportamentos , colocações sociais , ao mesmo tempo que fazia isso inserido numa opulenta presença de riqueza arquitetônica , numa demonstração de dignidade orgulhosa de um Povo, de um passado histórico profundamente respeitado . Mais uma vez eu senti inveja e lamentei por meu Portugal tão diferente , por uma Lisboa de incomparável riqueza natural , só ! Talvez o Terramoto de 1775 tenha feito desaparecer a opulência de Lisboa , talvez .

« Às 9:30 da manhã no dia 1 de novembro em 1775, Lisboa sentiu um grande terramoto. O terramoto continuou por 10 minutos em 3 intervalos. O primeiro terramoto foi um grande barulho que se transmitiu pela cidade. O segundo terramoto, que veio depois de um minuto, foi o mais destruidor. O terceiro terramoto destruiu o resto da cidade. Como era dia de todos os santos e era a hora de missa, as igrejas estavam cheias de pessoas e morreram muitos deles. Foi falado que cinco por cento da população de 270,000 pessoas morreram. Muitos das pessoas morreram queimadas, esmagadas, ou afogadas. O terramoto foi o desastre natural que mais afetou a Europa durante o século XVIII »

Chegamos a Louvain , troca de estórias com os dois amigos que tinham ido para Berlim , ainda tensos pela experiência arrepiante de atravessar território comunista – a Capital Berlim estava encravada em território da Alemanha Oriental , na fronteira eram dadas severas instruções de não sair da estrada que levava a Berlim, dividida esta em parte ocidental e parte oriental – mas também divertidos pelas dificuldades que tinham encontrado para se fazerem entender , nenhum deles falando palavra de alemão ! No primeiro hotel que procuraram em Berlim, tentaram explicar ao encarregado que queriam quarto com banheiro , faziam desenho de chuveiro, duas camas , o fulano falava « Yes , Yes » . Subiram , no quarto em cima da cama estavam roupas íntimas de mulher, era um hotel de prostituição ! Fugiram !
As aulas na Universidade são agora mais voltadas para a parte prática, laboratorial, microbiológica . Visitamos uma enorme fábrica de enchimento de garrafas , em Gand , cidade na confluência de rios , não muito distante de Bruxelas , forte influência holandesa.
O meu colega Aragão está agora mais feliz, chegou a esposa, a Tininha passa a ter companhia para todos os dias. Senhora extrovertida, alegre, sem controle de despesas , adora fazer compras, para preocupação do marido que vê a sua situação financeira em grave risco. Vamos nas Les Almes , almoçar. A senhora vai no toilete, vem esbaforida, são mistos, homens em pé , na frente , senhoras passando pelas costas, locais sempre apertados, para chegarem ao fundo onde estão os gabinetes , pequena porta meio indiscreta ! Nos restaurantes mais chiques era também assim !
Monsieur S. e a esposa nos convidam para jantar em Bruxelas , restaurante de alto padrão no Bois de la Forêt , senhora elegantíssima , alta , loura, um pouco forte, pouco mais nova do que S., nos contam sua vida , um filho , lua de mel por coincidência passada no Hotel Majestic , onde nós agora estávamos, casa pequena , ali próximo , casa sem condições de receber visitas como era a da maioria dos altos executivos belgas, bons salários mas altos impostos , embora satisfeitos pela boa qualidade da educação e da saúde públicas, boas aposentadorias, dinheiro que sobrava de todos os meses para gastar em bom carro e em férias anuais imprescindíveis por qualquer parte do Mundo - precisam conhecer a Grécia ! é dos locais mais bonitos !
Vamos visitar um fábrica de cápsulas para garrafas de cerveja , dentro de Bruxelas . Eu e o Aragão levamos as esposas, ficam ali pelo L´Innovation , recomendação rigorosa do Aragão à esposa para não fazer nenhuma compra, e seguimos de carro para a fábrica , local combinado para o reencontro. Visita feita , voltamos . O Aragão quase tem uma síncope , a esposa cheia de sacos de compras na mão , casaco novo ! Das horas em que ficaram juntas , a Tininha me contava que tinham entrado numa loja de tecidos, enorme magazine, a senhora pediu para descer para o balcão peças de tecido umas depois das outras , sob pretexto que tinha uma oficina de costura em Moçambique e que estava interessada em importar ; depois entraram numa loja de louças em porcelana finíssima, faqueiros em prata e foi o mesmo espetáculo , procurava por uma marca complicada de faqueiro de christofle ; na rua , senhora passando ao lado com elegante casaco de peles , ela solta em português « aonde será que esta comprou aquilo em liquidação » ?! - A passante era portuguesa « não foi liquidação , não ! » Aquela mulher do Aragão era certamente uma surpresa , não muito agradável para o marido !

Meu aniversário, vai chegar o Carnaval , o aniversário da Tininha, já muitas vezes cobiçada nas lojas de aparelhagem de Louvain, resolvo comprar uma máquina de filmar , super 8mm , filme fechado em embalagem de plástico preta, proteção contra a luz , sem som , última geração de uma tecnologia que vinha crescendo . Primeiro ensaio da máquina, meio desajeitado, o Carnaval de Louvain , parada de foliões desfilando ali debaixo da varanda do Hotel, alguns carros desengonçados, brincadeiras de estudantes , talvez brasileiros saudosos do Rio de Janeiro .
Aniversário da Tininha , porque não ir visitar a Holanda ? Bom conhecer onde iríamos passar alguns meses depois daquela estadia em Louvain , saímos um final de semana de frio e fina chuva como todos aqueles do Inverno belga , vamos para Amsterdam , a apenas 290 Km de Bruxelas , passando por Antuérpia , fronteira com a Holanda , e a seguir por Rotterdam .
A Holanda , Nederland , Paises Baixos , é um País densamente povoado , mais de 450 habitantes por Km quadrado , um quarto do território abaixo do nível do mar , metade a apenas um metro de altitude , maior elevação de pouco mais de 300 metros , grande parte conquistada ao mar , os pôlderes , cheio de canais , barragens e diques de proteção ao avanço das águas do mar ; o transporte fluvial é um dos principais meios de importação e exportação .
A Holanda tem uma localização privilegiada, limitada a Norte e Oeste pelo Mar do Norte , a Sul pela Bélgica e a Oeste pela Alemanha, o que desde a Antiguidade lhe possibilitou ser corredor de passagem para esses países ; do seu aeroporto de Amsterdam se alcançam a menos de uma hora de vôo as cidades de Berlim, Londres ou Paris . Os principais setores industriais são o processamento de alimentos , a Química e Petroquímica e o maquinário elétrico . A agricultura é altamente mecanizada , colocando a Holanda como um dos grandes exportadores agrícolas mundiais , em valor de produtos.
É um País de grande tolerância e liberdade, de profundo respeito à individualidade , principalmente demonstrado em Amsterdam, sua capital , talvez em razão da sua guerra pela independência originada nos conflitos religiosos da Reforma Protestante , de Martinho Lutero e João Calvino . Com grande tradição na pintura, a Holanda tem Rembrandt , Vincent van Gogh ; tem os tamancos de madeira , as cores alegres dos trajes folclóricos, e a beleza deslumbrante das tulipas , que aquele romance de Alexandre Dumas , a Tulipa Negra , com os amores de Cornelius e sua Rosa, tanto me seduzira na juventude .
Mesmo no Inverno frio e de chuva , coberturas de gelo sobre os campos abertos, águas revoltas do Mar do Norte na aproximação da estrada à costa, a viagem se desenvolve fácil, fronteira sem burocracia, orientação perfeita pelas placas em inglês . Ultrapassamos Rotterdam e rápido chegamos a Amsterdam , ainda meio da tarde .
Entramos na cidade , placas indicando centro , chegamos sem sobressaltos à Rembrandt Plein , grande praça de bastante arvoredo , restaurantes e hotéis .
Mas tudo é triste ! O frio é intenso , as portas das lojas , cafés e restaurantes são mantidas fechadas guardando o calor dos sistemas de aquecimento mas não impedindo o assovio do vento forte nas frestas , uma lama escura e pastosa se espalha nas ruas, efeito do sal jogado para derreter o gelo , as árvores se mostram sobrecarregadas pelos fiapos de neve, nem uma flor , os canteiros sumiram por aquela lama da rua jogada para cima deles pelos pneus dos carros . As pessoas refletem a mesma desolação , roupas compridas cobrindo as botas, peles escuras puxadas para os ombros, quase disformes , escondidas. Os restaurantes não têm mesas nas calçadas , o movimento é pequeno , sonolento. Penso que teria de sobreviver ali por alguns meses, decido não antecipar esse sofrimento e saímos de Amsterdam manhã bem cedo , regresso a Louvain, talvez uma visita a Antuérpia , uma parada em Bruxelas naquelas Galeries Saint – Hubert para reconfortar os espíritos .
A chegada a Antuérpia era uma festa para os amantes do volante ! A estrada que vinha da fronteira , a alguns quilômetros da cidade dava lugar a um conjunto de oito faixas de rodagem , quase linhas retas, ao longo das quais os belgas nos seus Mercedes, Porches, Volvos, Citroens , atingiam velocidades loucas ! O meu Kadett se esforçava nos 150 , 160, mas tinha que sofrer as continuadas deslocações do ar provocadas por aqueles Fangios, eu me apertando no volante , tomado de susto !
A cidade de Antuérpia, Anvers, Hantwerpen, situada à beira do Rio Escalda , tinha um ar cosmopolita que advinha do trânsito no seu grande porto de mar, embora a 88 Km do mar aberto , o segundo depois de Rotterdam ; por ele , a partir do século XIV , a cidade se tornou um dos principais centros comerciais e financeiros da Europa.
Entramos na cidade , melhor nos orientarmos pelos trilhos do trem, paramos na Estação para seguir a pé , não obstante o tempo frio e aquele vento marítimo empurrando a chuva para o interior .
Entramos na Central Station , a área das bilheterias impressiona pelos seus mármores por toda a parte. Saímos , alcançamos pouco depois um bairro em que é visível a predominância de judeus e indianos , trajes característicos de ambos - estamos no maior centro internacional de lapidação e comércio de diamantes ! Este local transaciona 85 % dos diamantes brutos do Mundo e 40 % dos industrializados , 1500 empresas locais com tradições nesse negócio desde o século XV. Sabemos que esta pedra está ligada a muitos dos infortúnios de África, principalmente às condições dramáticas de opressão na África do Sul e Angola , todavia o seu fascínio é hipnótico pela sua incomparável beleza , « não possuindo nenhuma cor, poder assumi- -las todas, inclusivamente de uma só vez .... » ! Seguimos até à zona histórica , cheia de antigas tavernas , lojas de antiguidades e curiosidades. Deparamos com a Grote Markt, praça principal , em forma de triângulo, num dos lados o Hotel de Ville em estilo renascentista , e a Vrouwekathedraal , com campanário com mais de 120 metros de altura . Andamos por ali , ao acaso , sentindo o encanto de outros tempos naqueles pequenos largos e ruelas . Numa curva, subida pronunciada escondida no meio de vegetação abundante, grande arco colorido em madeira sobre a entrada, deparamos com o Zoológico, onde iríamos gastar o resto da tarde, principalmente na observação dos elegantes movimentos dos golfinhos na sua piscina.
Vamos para o carro começo da noite, início de efervescente movimento noturno ali pela Grote Markt, inúmeras boates de néons faiscantes , também ali pela região da Central Station onde deixáramos o carro.
Em Louvain vamos ter uma surpresa ! A esposa do Aragão insistiu em patinar no gelo , no Parque Heysel , demonstração de sua irrequietude . Inexperiente , caiu , quebrou o pulso, teve de engessar ! O Parque Heysel ficava a Norte de Bruxelas, local do Palais du Centenaire , do Heysel Stadium e da realização de grandes exposições e feiras internacionais. A última tinha sido a Expo´58 , de que restava apenas o Atomium - símbolo da era atômica , reproduzindo uma molécula de ferro aumentada 165.000 milhões de vezes ! 8 esferas exteriores se ligam por tubos a uma esfera central , cada esfera com 18 metros de diâmetro ; os tubos tem 35 metros de comprimento, com escadas no seu interior ; a 103 metros de altura , a última esfera oferece uma vista panorâmica de toda a cidade , além de restaurante .
As aulas na Universidade se aproximam do fim , estamos em março , de menos frio, os finais de semana têm as viagens substituídas pelo estudo das matérias do Prof. De Clerck . Mais tempo no Hotel, finais de semana de quase nenhum movimento, as conversas com a Madame aumentam, ela nos conta das dificuldades que os belgas passaram , e ela , durante a 2 ª Guerra Mundial , com a Bélgica invadida pelos alemães, invernos sem aquecimento , tendo que queimar cadeiras , mesas e o que tivessem de madeira, procurando alimentos nas matas , não mais que raízes, o risco dos encontros com os soldados inimigos . Me dou conta da sorte de Portugal em ter podido se manter afastado desse cruel conflito , nos primeiros anos da minha infância.
Esforços recompensados , telefono a Monsieur S. informando – o da minha aprovação e de que seguiria para Portugal a fim de passar a Páscoa com os Filhos e logo depois estaria em Rotterdam para iniciar o estágio na Fábrica.
Em Louvain as informações de alguém viajando corriam fácil , e um outro estudante português nos pede para ir conosco , coincidência ele é da região de Pombal . Manhã do dia de partida , despedida afetuosa da Madame do Hotel, companheira daqueles quase 6 meses , nossa salvadora em muitos situações de difícil entendimento do françês . Também da família Aragão e dos outros colegas que não mais veríamos , cada um saindo dali para a continuação da vida profissional , cheios de estórias e de momentos inesquecíveis , reconfortantes lembranças . Aquele colega se atrasa , saímos de Louvain quase ao meio-dia , vai complicar a viagem . Mas seria pior !
Chegamos na fronteira com a França, policiais belgas mal humorados nos pedem os documentos, penso que o excesso de nossas bagagens enchendo o pequeno Kadett lhes criou alguma suspeita . Levam os documentos, voltam , nos perguntam donde vínhamos, o que fazíamos, para onde vamos, não revistam bagagens, voltam para a casa da guarda, telefonam, conversam, de novo nos perguntam alguma coisa, ficamos ali no carro duas horas, só nos devolvem os documentos na mudança de turno deles , são 5 da tarde ! Seguimos a viagem , tentando entender o que pode ter complicado a decisão daqueles policiais, talvez o muito tempo de nossa permanência na Bélgica, três meses depois do último visto de entrada , outra estadia grande anteriormente ; a noite cai rápido, vamos seguir para Tours , tem aquele hotel simpático na saída da cidade , aquele da experiência das rãs .
Chegamos no hotel , quase meia - noite, porta fechada , tocamos a campainha , ninguém atende . Vamos seguindo, ali já é campo aberto, não tem hotéis, só desviando da rota, melhor continuar , ninguém tem sono, as estórias da vida daquele colega confinado lá no centro de estudantes de Louvain ajudam a passar o tempo .
Sol da manhã clareando o dia, estamos em Irun , saída da França. A Alfândega está fechada , só abre pelas 7 horas, ficamos ali no carro aguardando. Estamos na Espanha, vamos para Vitória, talvez seja melhor descansar num hotel , mas vão ser duas diárias, a conta fecha ao meio – dia, melhor não, vamos para a frente .
Cedo da manhã as estradas estão mais livres, o Kadett vai mais fácil , agora não há como parar , só em Pombal . Chegamos para o abraço nos Filhos são 3 da tarde , 28 horas de viagem , umas 23 de condução , teve aquelas 2 na Alfândega e umas 3 de paradas , experiência para não repetir !
As amêndoas da Páscoa vão ser mais gostosas ! Os Filhos e os Sogros estão bem , o Pedrinho está quase com 3 anos, corre atrás das brincadeiras do Irmão entre as pilhas de madeira e caixotes da Fábrica ; as Filhas, quase iguais na idade, ocupam o tempo da Avó e das moças de costura . A Escola em Pombal é boa , vila pequena , familiar , o João faz a sua 2 ªClasse , comportado e interessado .
A nova viagem para a Holanda estava já ali , só tempo de matar saudades .

Um comentário:

  1. Caro Carlos,
    na refazer de memórias esparsas (o FB está a ser fenomenal), deparei com fotos e, depois, com este blogue seu. Andava à procura de Vila Cabral, que já nem vem no mapa com este nome. Estive ali com os meus pais (ainda miúda) de 1963/1966. Gostava de um dia, mais tarde, de lhe pedir algumas informações mais detalhadas. Nada de muito especial, por exemplo, o nome da Pousada onde vivemos largos meses até arranjar casa.
    FElicidades e obrigada pelas fotografias que tão generosamente colocou na net.

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