janeiro 31, 2009

06 FABRICANDO SONHOS

Em Angola

Voltávamos a Portugal, tinham sido dez meses de afastamento , as viagens de Natal e Páscoa tinham apenas mitigado um pouco as saudades , os meus Sogros adoravam os Netos , as condições da casa de Pombal eram ótimas, os Filhos podiam brincar por ela livremente , com o cuidado vigilante das moças que lá trabalhavam, mas tudo isso não substituía o estar perto , ver crescer e abraçar, cuidar.
Achava que esse sacrifício valera a pena , tinha tido uma oportunidade única de conhecer outras culturas , outra atividade profissional , o que iria possibilitar uma melhor condição financeira , embora longe de Portugal .Mas estava também convicto que a situação política de Angola se encaminharia para uma solução pacífica, que ao final era por todos desejada, pelos portugueses colonizadores e pelos naturais africanos, o potencial econômico de Angola permitia antever um futuro País de bem estar social para a maioria da população. A magia de África era grande e maravilhosa, iria concretizar o sonho de participar daquela transformação, os Filhos poderiam crescer ali em situação excelente até aos 15 , 16 anos e eu poderia em 5 ou 6 anos conquistar um desafogo financeiro que me possibilitasse trabalhar em Portugal em outras condições, quem sabe na indústria da Cerveja mesmo , ou voltar à Siderurgia .
O João António tinha 8 anos , mais alguns meses , completara a 2ª Classe, se mostrava um menino inteligente, correto e cuidadoso com os Irmãos ; a Paula , com 6 anos agora , iria começar a Escola logo que chegasse a Angola, iria certamente vencer a sua timidez , a amplitude daquelas terras a ajudaria ; a Olga e o Pedro ainda brincavam , só, muitas vezes as vontades de ambos não combinavam , a Olga se manifestava impulsiva e irrequieta ; Angola os ajudaria a crescer, a todos , no confronto de culturas e na generosidade do povo .
A ligação aérea Luanda - Lisboa era agora feita pelos Boeing 707 , 10 horas de viagem , possibilitava estar em Portugal rapidamente em caso de necessidade de apoio a meus Pais ou meus Sogros , todos ainda trabalhando , embora as aposentadorias próximas.
A relação com meus Pais se mantinha um pouco distante , a impetuosidade de meu Pai era a mesma, a relação dele com minha Mãe talvez menos agressiva , os Netos não tinham vindo atenuar essas situações.

Em Angola teria casa própria, em conjunto de residências da Fábrica para os cargos de direção, mas a construção estava atrasada , eu teria que ir primeiro, ficar em hotel , a Tininha ficaria com os Filhos em Pombal , mais um ou dois meses.
O Kadett seguiria de barco , alguns documentos a tratar em Lisboa, visita ao Escritório ali da Empresa , o Sr. Quintas de uma gentileza ímpar, estórias de Angola e da vida dele , da situação atual por lá , Luanda crescendo muito , praticamente afastada a guerra para algumas áreas nas fronteiras , o desejo que a Fábrica do Dondo fosse um êxito , a sua construção se aproximava do final , algumas dificuldades entre a Direção em Luanda e as equipas no Dondo, de holandeses .

Em alguns desses dias a Tininha e os Filhos me acompanham , estadia em casa de meus Pais, passeio com todos pelas ruas do centro de Lisboa. Entramos no Café Nicola, Praça do Rossio, centro vital de Lisboa, local de passagem e parada para todos os turistas . Vamos almoçar , mesa grande , toalha de linho branco, muitos pratos e talheres sobre a mesa .
Meus Filhos se sentam naturalmente, o Pedro mais pequeno , pouco mais de três anos , ajudado pelo João António ; as pessoas ao redor observam , o almoço decorre sem incidentes, comportamento adulto de gente pequena, eu , Pai , de enorme orgulho , recordação para não mais apagar da memória !

Quase final de agosto , embarco para Luanda , dez anos depois do meu embarque para Moçambique, outras condições e outras esperanças.

Angola, na costa ocidental de África ,tinha sido alcançada pelos navegadores portugueses, Diogo Cão , ao final do Século XV .
Apresenta uma faixa costeira árida , do Sul até quase Luanda , um planalto interior úmido , uma savana seca no interior Sul e Sueste , floresta tropical ao Norte. A faixa costeira tem clima temperado, com uma estação de chuvas que vai de outubro a maio . A região do Dondo , onde se implantava a Fábrica , estava dentro dessa faixa , distante 190 Km de Luanda , ligação por estrada asfaltada .

Desembarco em Luanda , é manhã, estou com o português – Sr. E - que trabalha em Kinghasa , em Fábrica também da Heinehen e que vai efetuar a posta em marcha da Fábrica do Dondo , o outro holandês Monsieur SL virá depois. O colega Sr. E é pouco mais velho do que eu , simpático, conversador, toda a vida profissional ligada à fabricação de cerveja, casado , a mulher dele virá depois, não tem filhos .

Um carro nos espera em Luanda , vamos diretos para o Dondo , rápido passeio pelas ruas apinhadas da cidade , que eu mal conhecia daquela passagem do navio em 1961 .

Capital de Angola, 500.000 habitantes, tinha sido fundada em 1575 por Paulo Dias de Novais, na ilha em frente que delimitava a baía , e depois transferida para o continente , um Forte no Morro de S. Miguel , a partir do qual cresceria , entre os Rios Bengo e Kuanza .
A cidade desenvolveu-se rapidamente , no Século XVII possuía quatro Fortalezas, seis Igrejas , Conventos dos Jesuítas e dos Franciscanos, Hospital da Misericórdia , a Ermida da N. Sra da Nazaré e muitas habitações ; no Século XVIII foram construídos o Forte de S.Pedro da Barra, o Palácio do Governo, a Alfândega ; depois o Mercado da Quitanda, o Cemitério do Alto das Cruzes, o Hospital de D.Maria Pia, o Banco de Angola, os Liceus Salvador Correia e D. Guiomar de Lencastre, o Porto de Mar, o Aeroporto Craveiro Lopes, os cinemas Restauração e Miramar, o Seminário, o Colégio de S. José de Cluny, muitos prédios de envergadura e arranha – céus , o belíssimo Hotel Trópico .
Vista do Mar Atlântico, a cidade parecia como que disposta em anfiteatro, em escadaria. No primeiro plano a Avenida Paulo Dias de Novais, ladeada de palmeiras e com prédios de cinco e mais andares. E , em planos sucessivos, avistava-se uma amálgama de prédios modernos , a par de outros de dezenas de anos.
Duas partes se distinguiam na cidade : a Baixa e a Alta .
Na Baixa , de traçado antigo , coração da cidade , encontrava-se a área de comércio , modernos e antigos prédios, de séculos, casas comerciais , armazéns, cafés, restaurantes, cinemas , prédios de apartamentos.
Na Alta, de traçado moderno, encontravam-se largas avenidas arborizadas, de acácias e palmeiras , como as dos Combatentes, Paiva Couceiro e Brasil, ladeadas umas por monstros de concreto, outras por graciosas moradias térreas , na sua maioria ajardinadas.
Tinha bairros operários, de funcionários, para africanos pobres , populares –- Sambizanga, Rangel , Marçal, Lixeira, Bairro Operário , Prenda - e bairros elegantes como o de Miramar , o de Alvalade.
A cidade tinha lindas praias , de areias sem fim , banhadas pelas águas límpidas e calmas do Atlântico - Ilha do Cabo, Samba , Corimba , Tamar, Restinga , Barracuda , Floresta e tantas outras .
Era uma cidade moderna, em efervescente expansão , quase toda asfaltada , bem melhor do que aquela que eu vira em 1961 , embora muito houvesse para fazer , principalmente nos bairros mais pobres .

A economia de Angola era predominantemente agrícola, sendo o café a sua principal cultura , além da de cana de açúcar, sisal, milho, amendoim , algodão ,tabaco, borracha, cacau e banana. Muito rica em minerais, especialmente diamantes , na região da Lunda , centro Norte , petróleo ( tinham sido descobertas enormes jazidas ao longo de Cabinda , no Norte , em 1966, que permitiriam a auto- suficiência ) , minério de ferro ( que exportava para Portugal - para aquela Siderúrgica em que eu estivera - e para o Brasil ), cobre , manganês , fosfatos, mica, chumbo, estanho , ouro , prata e platina .
O parque fabril - beneficiamento de oleaginosas , cereais, carnes, algodão e tabaco, produção de açúcar , cerveja, cimento , madeira, pneus, fertilizantes, celulose, vidro e aço - era alimentado por cinco usinas hidroelétricas , a maior , de Kambambe , na região do Dondo, Rio Kuanza .

Para próximo dessa Barragem estava então saindo de Luanda, razoável estrada asfaltada, o cheiro das matas misturado com o da terra seca começava a me identificar com África , a que eu conhecia , de Moçambique, de Vila Junqueiro .
Passamos por Viana na saída de Luanda , algumas fábricas , outras em construção, até ao Catete, Zenza, Cassoalala , pequenas localidades , depois ao longo da estrada vários aglomerados de cabanas, aqui e ali, pobres, até duas horas e pouco mais tarde entrarmos na Vila do Dondo, espraiada ao longo da margem direita do Rio Kuanza, largura de quase 100 metros, águas límpidas , caudalosas , bonita avenida com altas palmeiras , várias casas , um Hotel , estilo colonial, varanda térrea coberta ao longo da fachada , entrada com sala de recepção , vários sofás, um bar , depois do Hotel, na continuação da avenida , o edifício da Prefeitura e várias casas , por último o asfalto da estrada saindo em subida pela serra .

A Vila tinha para dentro daquela avenida principal outra avenida paralela, comercial , várias ruas saindo desta , pequenas casas, bastante arvoredo , aspecto de vila organizada , sossegada.

Descansamos no Hotel , aí íamos ficar até conseguir terminar as residências na Fábrica .
O calor, seco, forte , de Sol que castigava tudo e todos , amolecia o corpo , de quem ainda não estava habituado àquela nova condição , tão diferente do Norte da Europa em que eu estivera só alguns dias atrás .

Subimos aquela serra que se avistava da porta do Hotel , 6 Km de alguns pontos íngremes , bastantes curvas, nos levando para mais de 200 metros acima da Vila do Dondo , parando numa larga plataforma batida por vento refrescante , lá para a frente um posto de gasolina , um entroncamento de estradas , sinalizando para a esquerda
Salazar 69 Km
Lucala 107
Malange 230
Uíge 307
e para a direita
Kambambe 9
Quibala 151
Cela 220
Huambo 470

Estávamos então na frente da EKA, Empresa Angolana de Cervejas , meu destino daquela viagem , onde me propunha realizar alguns sonhos .
Estava chegando ali para exercer as funções de Diretor Técnico, mas muito trabalho e dificuldades tinham de ser vencidos primeiro ! Sabia que seria uma aventura !

Saindo da estrada, perpendicularmente a esta uma rua longa de uns 250 metros , largura de cerca de 20 , levava à Portaria da Fábrica a uns 50 metros da estrada e continuava para dentro dela .
Quase logo à entrada , do lado esquerdo , os Escritórios, Vestiários e Refeitório , para a frente , ainda do lado esquerdo , um galpão industrial que seria o Armazém de Matérias Primas .
Do lado direito , a uns 100 metros da Portaria, dois grandes galpões , paralelos, separados por rua estreita, o primeiro subdividido na Ala de Fabricação e na Ala de Máquinas e Oficinas , o outro , para a direita, subdividido nas Alas de Enchimento e Depósito de Cheios e Vazios.
A Ala de Fabricação , na frente do Armazém de Matérias Primas, era parcialmente aberta , sem paredes laterais , 10 grandes cubas cilíndricas , idênticas mas bem menores das que eu conhecera em Den Bosch ; a lateral que dava para a rua que vinha da estrada era envidraçada , com a visão dos Vasos de Fabricação , conjunto esteticamente muito bonito , podendo ser observado logo ao virar da estrada para chegar à Portaria .
Ao fundo da rua , um conjunto de grandes Tanques para Tratamento de Água, Filtros Verticais, Hidrômetro , Oficina de Veículos.
Toda a área estava asfaltada, os equipamentos estavam instalados , os trabalhos de montagem aproximavam-se do seu fim , faltava o acabamento dos escritórios, a instalação de alguns quadros elétricos, os maiores, alguns equipamentos da Sala de Máquinas estavam sendo terminados de montar e de operacionalizar , a rede de tubulações estava sendo instalada , as máquinas do Enchimento estavam em testes – de 5 a 6 semanas a Fábrica estaria operando .
Mas o que se via em tudo era uma completa Babel ! Não havia cerca, carros do pessoal estacionavam junto aos galpões, dentro deles , restos de materiais da montagem estavam por todo o lado , caixotes , madeiras, latas de tinta, lixo . A heterogeneidade do pessoal não era menor – 4 holandeses , 2 belgas, 1 inglês, 1 dinamarquês , eram os técnicos especializados na arquitetura e construção civil, na montagem metalo - mecânica , na instalação de máquinas ! Tinha gente européia, africana , numa confusão de línguas que parecia ser impossível que aquela obra estivesse ali , quase pronta ! E em tempo recorde , menos de 10 meses ! Mas o preço tinha sido alto , no desperdício, na desordem e , principalmente, na indisciplina que se apercebia acontecer , na qualidade de quase trabalhos forçados que se manifestava .
Junto com as equipes estrangeiras, tinha um técnico português , o DS - ele tinha feito estágio na Heineken, estava ali desde o começo, seria o responsável pela Manutenção da Fábrica, a esposa também estava com ele, numa residência já pronta . Assistente de toda a indisciplina ali acontecida, do mau caráter do pessoal estrangeiro, inclusive para com ele, era a personificação do desânimo ! O repertório de estórias era infindável , a acidez e a desesperança não menores .

Do lado esquerdo daquela rua que vinha da estrada para a Portaria, se abria uma área residencial , 4 grandes casas como pontas de quadrilátero, externamente muito bonitas, grandes varandas , portas envidraçadas ; 3 delas estavam prontas , ocupadas pelo DS e pelos estrangeiros, a outra , a minha , maior , estava terminando , faltando vidros na sala, os aparelhos de ar condicionado , parte da pintura , alguma coisa nos banheiros e cozinha . Grandes espaços separavam as casas, uma rua central , um grande terreno de pouca vegetação levava até ao posto de gasolina que se avistava na bifurcação da estrada .
Em frente a este conjunto , para o outro lado da estrada, ocupando um terreno levemente inclinado , estava um conjunto de 6 pares de casas , geminadas , uma ala de 3 na frente , mais próximas da estrada, outra ala para baixo , mais afastada . Todas as casas tinham pequeno jardim , embora pequenas eram funcionais , bem acabadas, o conjunto estético muito bonito.
Seria o bairro para os funcionários de chefia intermédia , estava praticamente concluído .

A Fábrica tinha instalação de rádio , com a qual se comunicava ao longo do dia com Luanda , a sede da Empresa , onde estavam um Diretor Geral e pessoal de suprimentos , para suporte financeiro e compras gerais necessárias à montagem .Todos os equipamentos tinham sido importados , bem como grande parte dos materiais para eles necessários, mas para a construção civil e as instalações gerais as aquisições eram feitas em Luanda . Dessa relação , as queixas dos técnicos estrangeiros e do DS eram quilométricas !

O desafio estava ali , naquela confusão de que teria que nascer uma Fábrica, em harmonia com as pessoas, as raças, e com os melhores parâmetros operacionais – as instalações eram ótimas, extremamente funcionais, a tecnologia da Heineken era diferenciada das demais, mais simples e mais controlável – era a tecnologia de Den Bosch ; tecnicamente eu me sentia capacitado, certamente que as presenças do Sr.E ali comigo e a do técnico holandês que viria , Monsieur SL, dariam o suporte à implantação dos processos , a que eu não tinha tido acesso no estágio na Holanda .
Mas tinha um enorme trabalho humano a ser feito para que a harmonia virasse uma realidade consistente , saísse da minha imaginação para aquele planalto ali no topo do Dondo que agora só era um amontoado de coisas e de gentes , maltratadas e desapaixonadas .

Faltava analizar as condições de fornecimento de água , cada litro de cerveja iria precisar de 10 de água, tinha ainda o abastecimento das casas , o consumo nos Vestiários, no Refeitório , nos jardins .
Saído da Barragem de Kambambe , uns 5 Km de percurso caudaloso , rápido, o Rio Kuanza passava num vale cavado a cerca de 200 metros para baixo do planalto em que estava a Fábrica . Para alcançar esse ponto - a descida direta do topo para o Rio era tormentosa , a grande inclinação fazia dela uma aventura , a subida seria ainda pior ! - era preciso ir de Jeep ( só ele ! ) pela estrada que levava até Kambambe, na metade do percurso entrar na mata e descer por uma vereda aberta por trator no terreno escarpado , alguns pontões e passagens sobre rochas, para alcançar o Rio , cerca de 4 Km depois , 200 metros de descida . Esta viagem era uma aventura, enfim estava em África ! mas para um insumo de tão grande importância era um risco imenso !
A Heineken , com a experiência no domínio das águas dos holandeses , tinha decidido abrir um enorme poço a alguns metros da margem do Rio , a água dele se infiltraria pelo solo arenoso e entraria no poço , filtrada portanto , quase própria para consumo , as análises efetuadas da água do Rio tinham indicado uma água excelente para a fabricação de cerveja . Os técnicos holandeses que tinham efetuado a montagem não tinham dúvidas , a tecnologia era segura.
Daquele poço , a água era bombeada para a Fábrica por enorme bomba submersa , 200 metros lá no topo , a instalação dos tubos de ferro ao longo da encosta tinha sido um trabalho de Hércules ! Todos os comandos elétricos estavam num grande armário de dispositivos situado ao lado do poço , casa fechada , com comando automático a partir da Fábrica .
Ao chegar na Fábrica a água caía dentro de um grande tanque de decantação , passava para outro , daqui para um conjunto de dois filtros de areia , com aeração , finalmente para um tanque acimentado , superfície revestida , semi - esférico , 200 m ³, enterrado no solo , coberto , donde abastecia todos os pontos de consumo passando por um Hidróforo para receber pressão ( tanque vertical com entrada de água , mantido sob pressão por compressores de ar ) . Nesse tanque seria feito tratamento com cloro , adição manual , se necessário ( inconveniente para a cerveja) .
A instalação assustava, a proteção e manutenção de tudo aquilo desprotegido fora da Fábrica e em tão difícil acesso pareciam enormes problemas , o tratamento da água era uma operação complexa , condução manual .
Seria certamente o ponto estratégico e mais fraco da Empresa . Que não, opinião dos holandeses ali , seguro, sem riscos , só operar !

Voltamos ao Hotel , o dia tinha sido por demais extenuante . As instalações do Hotel eram confortáveis , conhecemos o dono , era o próprio Perfeito, educado, interessado .
O Dondo estava no Distrito de Kuanza Norte, a capital era Salazar , estava lá naquela placa de bifurcação - 69 Km - , tinha linha de trem para Luanda , se estendendo por cerca de 350 Km dentro do Distrito .
Além da Eka , o Dondo tinha já em operação desde 1967 uma grande indústria têxtil , a Satec , de origem italiana , utilizando o algodão da região , mais de 1500 teares, a maior indústria têxtil mesmo de todo o Portugal ; tinha ainda a Vinelo , de produção de vinhos por destilação de frutas, e a Banangol , para produção de farinhas de banana .
O Dondo se beneficiava da localização , na bifurcação para o Norte e Sul de Angola, estradas asfaltadas , tinha boa oferta de mão de obra ,tinha energia elétrica ali de Kambambe, que abastecia Luanda e o Norte , Escolas , Hospital , Mercado , comércio diversificado , uma população européia significativa . E se beneficiava da proximidade com Kambambe, que tinha um magnífico Clube, Pousada, Cinema e da de Luanda a 190 Km , por razoável estrada asfaltada , pouco mais de 2 horas de carro.
Tudo confirmava o que o Sr.Quintas me tinha informado em Lisboa, na contratação e depois nas conversas com ele - o Dondo era uma vila que se projetava com boa qualidade de vida , tinha excelentes condições de desenvolvimento .

Decidi que a Tininha e os Filhos viessem de imediato, poderiam ficar no Hotel enquanto a residência não estivesse pronta, uma ou duas semanas , a Tininha tinha vaga de professora no Colégio, as aulas iam começar em outubro , para o João e a Paula .
O Sr. E resolveu também trazer a esposa de imediato , ficariam no Hotel .
Ele e eu passamos horas da noite traçando o quadro de pessoal , organograma , perfil das funções, faixas de salário , ele com a experiência de Kinghasa, tínhamos os valores dos salários durante a montagem e uma perspectiva do que as indústrias locais pagavam .
A distribuição das casas para as chefias intermédias podia resultar em futuro problema , representava grande vantagem, precisava ficar fixada claramente no organograma logo no início das primeiras contratações ; alguns poderiam já estar morando no Dondo , o que facilitaria .
Seriam cerca de 50 trabalhadores indiferenciados, eu , Diretor Técnico,
3 Chefes de Departamento ( Produção, Manutenção – o DS – e um de Controle Qualidade) , não mais de 20 funcionários qualificados , 12 com direito a casa.
Ele já tinha convidado para a Chefia de Produção um primo dele, técnico – químico, morando em Portugal , acabado de se formar, casado , confiava nele, estava vindo para o Dondo ; eu não tinha como duvidar da escolha , Angola não oferecia muitas facilidades de opção , melhor alguém conhecido.
Na posta em marcha , eu tomaria conta do Controle de Qualidade , junto com o futuro Chefe de Produção , o técnico holandês Monsieur SL e o Sr.E fariam a Produção , até à estabilização , a partir daí eu assumiria .

No dia seguinte íamos começar a trabalhar ! Montamos as nossas mesas no Armazém de Matérias Primas , ainda vazio, só uma instalação de silos , tubulações e compressores para o transporte pneumático do malte (a receber em sacos da Europa ) para o Moinho do outro lado da rua, na Ala de Fabricação , um grande quadro elétrico por montar - aí seria o nosso local de trabalho por algum tempo .

Primeira instrução minha, ao DS , providenciar que não mais entrassem veículos particulares na área da Fábrica , a menos dos nossos ( Diretor, Chefes de Departamento , pessoal estrangeiro de montagem ) e de eventuais visitas , estes poderiam parar em frente ao Escritório que já tinha o parque de acesso terminado , não dali para dentro .
A Fábrica ainda não tinha cerca construída, mas tudo deveria se processar como se uma cerca virtual estivesse instalada. Seria a forma de começar a obter o domínio daquela balbúrdia !

Fomos chamando todo o pessoal especializado que lá trabalhava , europeus e africanos , sabendo de suas experiências, do interesse em permanecer na Fábrica .

Conversando com os técnicos estrangeiros, procuravamos identificar problemas, atividades mais atrasadas, cronograma para o final das montagens , planos de testes, qualidade do pessoal que com eles trabalhava. Tal como com o DS , as estórias vinham inúmeras , de confusões, queixas, da má qualidade de todos , da indolência dos africanos, da pouca destreza do pessoal de suprimentos em Luanda , do desinteresse do Diretor Geral ; o DS falava mal dos holandeses , os holandeses falavam mal do DS !
Na verdade ninguém estava em nada satisfeito, o temperamento do pessoal estrangeiro não era dos melhores , havia estórias de embriaguez, de mau trato aos africanos , de quase rixas entre os dois lados . Era a maneira que os estrangeiros tinham de trabalhar depressa , na verdade aquela obra tinha sido muito rápida para os padrões africanos.

O Dondo tinha um muito razoável restaurante , que logo começamos a conhecer ! Camarão , peixe, leitão , cabrito, ótima carne, o arroz de marisco era maravilhoso ! O atendimento era simpático , a Tininha ia adorar .

O Prefeito nos indica o interesse de um funcionário da Prefeitura, bom conhecedor da mão de obra local, dos trâmites da Folha de Pagamentos, da legislação angolana, poderia ser ótimo Chefe de Pessoal , residia ali no Dondo , casado , a mulher trabalhava na Secretaria do Colégio onde a Tininha iria dar aulas . Dia seguinte iria na Fábrica .

Chegamos à Fábrica , segundo dia de trabalho. Bem ao lado da Portaria, fora do que seria a cerca da Fábrica mas quase encostado, bem na faixa de circulação dos carros que entravam , um carro estacionado ! Entramos para o nosso « Escritório » , pergunto de quem é aquele carro , chamo o dono , Sr. Vinagre , mecânico europeu, dou-lhe 15 minutos para retirar o carro para onde eu não o visse e de seguida me vir dizer ali na minha mesa que já tinha cumprido a ordem ! Não demorou 15 minutos !

O tal amigo do Prefeito vem na Fábrica, tem aspecto sério, parece esforçado, interessado. Admitimos . Primeira tarefa , formar equipa de limpeza , arrumar aquela confusão na Fábrica , junto com o DS, limpar terrenos , providenciar plantação de flores nos canteiros, arrumar o Vestiário e o Refeitório o mais rápido possível.

Tínhamos que ir a Luanda , conhecer o Diretor Geral , a estrutura de Vendas que deveria estar sendo montada , falar de matérias primas, garrafas , cápsulas, engradados, materiais para acabamento da Fábrica que os técnicos da Montagem reclamavam estarem em atraso . Fomos , eu e o Sr. E , com um técnico holandês.

Agora em Luanda menos ansioso, posso observar como a cidade é bonita ! A cidade fica à beira de uma Baía que mais parece uma lagoa, protegida do mar aberto por uma pequena Ilha longa e bastante estreita, ligada ao continente por curta ponte ; ao longo da Baía corria uma avenida com prédios antigos , em magnífico contraste com uma graciosa curva de areias e coqueiros .
Essa Ilha - do Cabo ou de Luanda - era o local de diversão da cidade, com praias extensas , mar límpido , ótimos restaurantes , bares, clubes de luxo .
Ao Sul de Luanda, encontrava - se a Ilha do Mussulo, na realidade uma restinga envolvida por uma série de ilhotas . Chegava-se a essa Ilha por barco , na maré baixa diziam que dava para passar por estreita faixa de areia . No lado continental, de águas calmas, ideais para a prática de desportos náuticos, existiam complexos turísticos, vivendas e uma enorme quantidade de coqueiros. No lado oceânico, com o mar de águas límpidas mas mais agitado, existiam praias de areia branca e quase desertas, habitadas apenas por pescadores nativos.

Luanda é uma das regiões de Angola em que menos chove ; a estação das chuvas vai de outubro a maio, sendo os meses de fevereiro , março e abril os de maiores precipitações . O clima é caracterizado pelo seu elevado grau higrométrico, com média anual de 83 % , sendo os meses de julho e agosto os mais úmidos . Na estação seca, Luanda fica sob a influência do ar marítimo, com neblinas matinais, geralmente mais densas na região costeira e sobre o mar (chamadas de cacimbo ) .

O Diretor Geral era um português que também tinha trabalhado em Kinghasa , já de idade, baixo, pouco motivado . A área de vendas ainda não tinha sido organizada, esperava o Diretor Comercial que estava vindo de Lisboa, admitido por lá . Os funcionários pareciam ter a mesma motivação do Diretor, pouca, motivo das permanentes reclamações dos técnicos da Montagem . As garrafas tinham encomenda colocada, em fábrica de Angola, mas a quantidade nos pareceu pequena para suporte da produção em face do elevado tempo de retorno que as garrafas deveriam ter em distâncias tão grandes como as de Angola - provável problema , insistimos para colocar nova encomenda , os prazos de entrega eram muito longos, de muitos meses.
As matérias primas e outros produtos necessários à fabricação eram responsabilidade dos belgas, aquela empresa Ibecor em Bruxelas, estavam chegando.
Para a Fábrica , tinha de ser formada uma equipa de vigilantes armados , que faria a Portaria e a guarda das instalações e residências, havia Lei do Governo que regulava essas atividades, a admissão para essas equipas era de antigos soldados combatentes , quase sempre africanos . A Fábrica também tinha direito a armamento próprio , para uso individual . O Diretor Geral ficou de tratar no Governo em Luanda .

No almoço ia descobrir mais em pormenor os encantos daquela Ilha do Cabo e de um enorme caranguejo comido num restaurante junto ao mar, uma meia casca cheia de uma pasta feita com a carne do animal , deliciosa , rodeada das patolas para serem quebradas, que me fez entender que realmente Angola precisava de muita cerveja para acompanhar tamanha maravilha !
Por enquanto só tinha duas fábricas , ambas em Luanda , uma delas a Nocal da qual a Heineken também era acionista , majoritária ! A participação da Heineken na sociedade da Eka era por isso escondida, o Governo proibia a formação de cartéis.

No Dondo, a Fábrica começava a apresentar outra cara . A limpeza tinha sido feita, as ruas varridas, o matagal em volta das casas ia desaparecendo. Os trabalhos da Montagem, os testes dos equipamentos , iam terminando.
O técnico holandês responsável pela produção , Monsieur SL , já chegou.

A Tininha e os Filhos também chegam ! O meu carro também , aqueles pneus com pregos fazem sucesso ! A mulher do Sr. E também está no Hotel, o futuro Chefe da Produção e a mulher não demorarão. Tudo se encaminha para o start – up da Fábrica, vamos ter a nossa cerveja para acompanhar aqueles caranguejos !

A Tininha e os Filhos ficam no Hotel, a residência está quase pronta, pintura, aparelhos de ar condicionado , móveis chegando de Luanda. No Dondo os Filhos fazem reconhecimento dos espaços, a margem do Rio é acolhedora para as brincadeiras, o pessoal africano do Hotel ajuda ao entrosamento .
O calor de final de outubro já é grande , a umidade pesada, conselhos repetidos de não beber água se não estiver filtrada , cuidados de comportamento em ambiente diferente daquele casarão da Fábrica em Pombal .
A Tininha e a esposa do Sr. E se dão bem , esta mais velha , faladora , intrometida mas simpática . A Tininha vai dar aulas , o João e a Paula vão para a Escola , só mudar lá para cima , arrumar a casa , a vida começará então em ritmo normal.

Os Quadros de pessoal estão completos, a equipa de Manutenção , os cargos de Chefia da Produção, o pessoal dos Serviços Administrativos – o responsável pelo Refeitório é um europeu , excelente postura, o DS tem uma boa equipa, o Vinagre não coube nela , disse que iria abrir uma Oficina no Dondo, poderia depois prestar serviços para nós . A Equipa de Vigilantes , todos africanos, antigos soldados , gente do Sul de Angola, também já está constituída , postos de guarda 24 horas, ficaram instalados na captação de águas , na margem do Rio , próximo ao poço , a subida íngreme para eles não é problema , estão habituados .

As equipas de trabalhadores não especializados tem os seus horários estabelecidos, todos moram no Dondo , o caminhão da Fábrica tem horários para os ir buscar e levar , carreiras regulares de transporte ; o Refeitório está pronto para funcionar, uma grande câmara de frios e uma excelente cozinha dão - lhe suporte, ele é também o Bar tradicional das fábricas de cerveja, aonde as visitas irão apreciar a cerveja EKA, temos um grande balcão para atendimento , o responsável pelo Refeitório será também o barman.

Aquele bom restaurante no Dondo passou a ser local de nossa reunião de muitos fins de tarde e noites .
A comida é excelente , pretexto para o passar de horas e o contar de estórias, o DS conta das dificuldades por que passou , por lá sózinho com todos os estrangeiros que vinham e iam , ou sobre os problemas de agora do dia à dia da Fábrica, que o pessoal de Luanda e os técnicos estrangeiros teimam em complicar. Ali ficamos , eu , a Tininha, o Sr. E e a esposa , o DS e a esposa , os Filhos se juntam nas suas brincadeiras , O DS tem um filho da idade da Paula .
A amizade se inicia assim como estabilizadora e compensatória para os problemas diários .
Muitas vezes os holandeses e os outros se juntam também ali, no mesmo restaurante, mas quase sempre em outras mesas , bebem muito , ficam até tarde, têm dificuldade depois em voltar para as casas lá na Fábrica !

Os Filhos ficam doentes ! Com o excessivo calor, a não obediência às ordens repetidas da Tininha, a água bebida em qualquer lugar, os organismos novos e ainda não preparados para a investida de diferentes bactérias , todos ficaram com problemas intestinais , alguma febre , coisa simples que o médico rápido identificou e tratou . Valeu o susto !

A minha residência fica finalmente pronta , uma grande sala de dois ambientes , grandes portas envidraçadas em duas laterais em L dando para uma ampla varanda no plano dos jardins e coberta pelo telhado da casa, três grandes quartos, bons banheiros e cozinha, uma ala de quarto , sala e banheiro ligada ao corredor interno mas com porta independente para o jardim ( para visitas ) , bem mobiliada , aparelhos de ar condicionado em todas as divisões , a sala com dois . Mudamos, agora se começa uma rotina , agradável, a Tininha vai dar aulas , dois Filhos na Escola, carro da Fábrica para o ir e vir ao Dondo . As reuniões de fim de tarde e de muitas noites passam a ser feitas aqui, a casa é a maior de todas , a Tininha a mais hábil no agrado do apetite voraz das visitas , o restaurante fica como opção de muitas vezes.

Um jovem empregado africano que trabalha no Hotel aparece na porta , pergunta se tem trabalho para ele , gosta muito das crianças , quer ficar ali – o Manuel será o nosso empregado ! Altivo, boa aparência , de cuidada higiene pessoal, educado e com vontade de aprender , comportamento amigo , será o orgulhoso responsável pela organização da casa, cozinha , servir à mesa , cuidar e brincar com as crianças , ser amigo delas ; terá a ajuda na cozinha do cozinheiro Francisco , também africano , experiente mas às vezes não muito sóbrio , de uma lavadeira africana e , quando o trabalho aumentava , a vinda da Ermelinda , mulher européia do eletricista da Fábrica.

Estamos no início da estação das chuvas, o start - up se aproxima , relógio de ponto instalado , matérias primas e vasilhame nos Armazéns, máquinas prontas , aqui e ali algum problema , os técnicos correm atrás , todo o mundo quer que dê certo , querem regressar à Europa . O Escritório ficou concluído , mudamos nossas mesas , procuro contratar uma secretária , deveria saber francês, não tem ninguém , aparece uma senhora casada com funcionário da Barragem , magra, educada, Maria José, admito.

O Diretor Comercial já chegou , a publicidade está sendo feita , principalmente junto aos bares de Luanda , é tradicional a cedência de vantagens para colocar nova marca .

Mas aquela água que vem lá do Rio Kuanza é péssima ! Na chegada aos tanques de sedimentação o odor é fétido ! As análises surpreendem , nada confere com aquelas que os técnicos holandeses têm, feitas nas amostras colhidas inicialmente e sobre as quais a Heineken fez o projeto. O teor em ferro é altíssimo , a alcalinidade também ! O Sr. E e Monsieur SL acham que é de correr o risco , não há outra alternativa senão usar aquela água, tiram- - se amostras para enviar para a Holanda , eu repito as análises , novas amostras, descemos para o Rio, o poço, tudo normal .

O Sistema de Frio para as cubas de fermentação e para a guarda da cerveja utilizava água alcoolizada , para redução do ponto de congelamento , existia um grande tanque que abastecia um mais pequeno , de controle . A Fábrica tinha recebido vários tambores de álcool - que o pessoal achava que eram para a fabricação da cerveja ! - para formar essa mistura. Toda a instalação pronta, os holandeses mandaram abrir os tambores, jogar no grande depósito, misturar com água.
Dia seguinte recebo a visita do Prefeito . Preocupado, noite anterior tinha havido uma grande festa no Dondo, pessoal africano ali da EKA, todo o mundo embriagado ! O pessoal tinha aproveitado as latas de tinta vazias, obviamente ainda sujas, para roubar álcool daqueles tambores, levar para a festinha ! Eu tinha visto sair as latas , tinham pedido se podiam levá –las, não nos serviam para nada, para eles seriam úteis para água !
Selamos os depósitos de álcool, juntamos fenolftaleína , que deu cor amarelada à mistura e um efeito purgativo horroroso quando ingerido !

Meio de outubro, vamos começar a fabricação !As máquinas de enchimento lá no segundo galpão ainda não estão prontas , mas o processo demora 21 dias até essa operação , vai dar tempo de terminar. A Fábrica enche de gente , o Sr. Quintas veio a Angola, traz a família, convida o Prefeito, que traz outros, uma perturbação para quem naquele momento quer concentração máxima , as primeiras operações dos equipamentos requerem o acompanhamento de manuais, a operação de um conjunto intrincado de sistemas pneumáticos.

« A origem das primeiras bebidas alcoólicas é incerta, mas provavelmente tenham sido feitas de cevada, tâmaras, uvas ou mel, sendo a cerveja uma das bebidas alcoólicas mais antigas do Mundo. Mas foram os gauleses os primeiros a fabricá-la com malte, isto é, cevada germinada.
Há evidências de que a prática da cervejaria originou-se na região da Mesopotâmia onde, como no Egito, a cevada cresce em estado selvagem. No Egito, a cerveja ganhou status de bebida nacional, até com propriedades curativas, especialmente contra picadas de escorpião. Consta que os egípcios gostavam tanto da bebida que seus mortos eram enterrados com algumas jarras cheias de cerveja. Tem-se que a cerveja feita de cevada maltada já era fabricada na Mesopotâmia em 6000 a.C.
Documentos históricos mostram que em 2100 a.C. os sumérios, um dos povos civilizados mais antigos, alegravam-se com uma bebida fermentada, obtida de cereais. Na Suméria, cerca de 40% da produção dos cereais destinava-se às cervejarias chamadas "casas de cerveja", mantidas por mulheres.
A cerveja é tão antiga quanto o pão, pois era obtida a partir da fermentação de cereais como cevada e trigo. Ela era feita por padeiros devido à natureza da matéria-prima utilizada: grãos de cereais e leveduras. A cevada era deixada de molho até germinar e, então, moída grosseiramente, moldada em bolos aos quais se adicionava a levedura. Os bolos, após parcialmente assados e desfeitos, eram colocados em jarras com água e deixados fermentar. Esta cerveja rústica ainda é fabricada no Egito com o nome de Bouza.
O lúpulo, assim como outras ervas aromáticas, tais como zimbro, hortelã e a losna, podia ser adicionado à cerveja para corrigir as diferenças observadas no sabor.
Já 15 séculos antes, um fragmento de cerâmica mesopotâmica, escrito em sumérico-acadiano de 5000 a.C., dizia que fabricar cerveja era uma profissão bem estabelecida e muito respeitada. Os gregos aprenderam a técnica da cervejaria com os egípcios e também usavam lúpulo. Os romanos aprenderam com os gregos e a introduziram na Gália e Espanha ,sem contudo usarem lúpulo até ao século VIII.
Os chineses foram os primeiros a preparar bebidas do tipo cerveja obtida de grãos de cereais. A "Samshu", fabricada a partir dos grãos de arroz, e a "Kin" já eram produzidas cerca de 2300 a.C. Em 500 a.C. e no período subseqüente, gregos e romanos davam preferência ao vinho. A cerveja passou então a ser a bebida das classes menos favorecidas, muito apreciada em regiões sob domínio romano, principalmente pelos germanos e gauleses. Foi nessa época que as palavras cervisia ou cerevisia passaram a ser utilizadas pelos romanos, em homenagem a Ceres, deusa da agricultura e da fertilidade. O professor Paul Haupt, da Universidade de Virgínia, em 1926 d.C., traduzindo uma tábua cuneiforme assíria encontrada nas ruínas de Nínive, afirmou que parte do carregamento da "Arca de Noé" era cerveja !
Na Antiguidade o que caracterizava o processo de fabricação era a experiência e a tradição, a partir do século XIX o fabrico da cerveja é dominado pela ciência e pela técnica. Até o evento de Louis Pasteur, a fermentação do mosto era natural o que, normalmente, trazia prejuízos aos fabricantes. O notável cientista francês convenceu os produtores a utilizarem culturas selecionadas de leveduras para fermentação do mosto, para manter uma padronização na qualidade da cerveja e impedir a formação de fermentação acética. Pasteur descobriu que eram os microorganismos os responsáveis pela deterioração do mosto e que poderiam estar no ar, na água e nos aparelhos, sendo estranhos ao processo. Graças a esse princípio fundamental, limpeza e higiene tornaram-se os mais altos mandamentos da cervejaria. O nome de Louis Pasteur é lembrado através do termo "pasteurização", método pelo qual os microorganismos são inativados através do calor.
Outros dois grandes nomes estão ligados ao desenvolvimento da fabricação da cerveja. Emil Christian Hansen e Carl Von Linde. O primeiro, em função do desenvolvimento do microscópio, descobriu também células de levedura de baixa fermentação, pois antes eram somente conhecidas leveduras de alta fermentação. Ele isolou a célula, que foi multiplicada sob cultura pura. Como a levedura influencia fundamentalmente o sabor, esta descoberta permitiu a constância do sabor e qualidade. Carl Von Linde desenvolveu, através da compressão, a Teoria da Geração de Frio Artificial com sua máquina frigorífica à base de amônia. Com isso, a produção de cerveja pode, desde então, ser feita em qualquer época do ano, sendo possível controlar os processos de fermentação de forma científica exata pelo entendimento da atividade dos microorganismos e reconhecimento de que diversas leveduras, por exemplo, atuam diferentemente e de que as condições do meio afetam de maneira básica a ação de uma mesma cepa.
Com a evolução da técnica industrial, as cervejarias passaram da fase empírica para a científica . O "Mestre Cervejeiro" conta com todos os recursos técnicos e sanitários para a elaboração de um produto tecnicamente perfeito. Um cervejeiro moderno deve ser um engenheiro, químico ou bacteriologista >

Ainda não tínhamos cerveja EKA , mas nesse dia a festa naquele bom restaurante do Dondo foi das mais animadas, gastando cerveja do concorrente !

Chegou o futuro Chefe da Produção , o LF, veio com a esposa, moça nova, está grávida , vão ficar no Hotel , as 4 residências estão todas ocupadas, eu , o DS , Sr. E , uma com os técnicos estrangeiros, mas estes em breve começarão a regressar a seus países .

Vamos conhecer a Barragem de Kambambe . A vista era impressionante , o Rio se espraiava lá em baixo , cavado nas encostas abruptas carregadas de vegetação luxuriante, as águas caudalosas, claras , uma nuvem de umidade cobrindo o local. As instalações sociais eram excelentes, o Bairro , a Pousada, um cinema ao ar livre , sessões nas noites de domingo, assistidas por todo o mundo de Kambambe , do Dondo e agora da EKA.

A nossa casa está pronta , a sala é bem confortável , as grandes portas envidraçadas que abrem para a varanda no quintal precisam de cortinas, a Tininha diz que vai fazê-las , é só ter um tempo , procurar tecido.
O Manuel se afirma como ótimo empregado , está bem instalado , tem o seu quarto com banheiro próprio, começamos a confiar nele , os Filhos levam – no para as brincadeiras, gostam dele .

Os guardas , armados, fazem a vigilância de toda a instalação , também das áreas das residências e do Bairro abaixo, são cuidadosos , ganham o respeito de todos . Controlam a Portaria , são rigorosos mas corretos, a Fábrica começa a ter identidade , excepcionalmente limpa , não se vê um papel no chão .
Os Vestiários impressionam pela limpeza, os africanos tomam banho na entrada ao serviço, depois na saída ! As portas dos sanitários não têm um risco !
Temos Posto Médico , integrado no Edifício dos Escritórios , o Médico vem diáriamente , algumas horas da manhã , tem um auxiliar enfermeiro permanente ,faz exame de todos os funcionários ,faz ficha médica, atende .
O Refeitório está organizado, todos os funcionários têm almoço , feito na própria cozinha , pessoal cuidadoso, o Responsável , europeu , serve as mesas, atende o Bar, tem ajudantes. A limpeza surpreende , o ambiente durante o almoço é alegre, mas calmo , apetece sentar , ficar junto e almoçar.

Eu arranjei uma agenda, o início de todos os dias é pela inspeção às instalações, levo a agenda debaixo do braço , anoto as ordens que dou, entro na Portaria, falo , vou nos Vestiários, Refeitório , vejo os alimentos, a câmara de frio .
O Tratamento de Água me prende , o aspecto da água é ruim , a sedimentação apenas parcial , o cheiro fétido parece ter aumentado . Procuro mudar os parâmetros de tratamento , às vezes horas observando.
O LF me acompanha todos os dias, passo pela sala do DS, vai também comigo. O DS não deixa de ter estórias, alguma tendência para a dramatização , os técnicos estrangeiros ainda estão por lá, decididamente não gosta deles !
As tarefas de produção estão sendo feitas pelos Sr. E e Monsieur SL , treinam o pessoal , supervisionam , às vezes um pouco fechados . Resolveram que os problemas da água não atrapalhariam a qualidade da cerveja, um risco calculado , mas muito grande.
Eu e LF fazemos o Controle de Qualidade, eu decido começar a assumir as tarefas da Produção, ao início auxiliando o pessoal no Armazém de Matérias Primas, ajudo a carregar os sacos para o silo, analiso o desempenho das instalações , explico o funcionamento aos funcionários, aprendo com eles.

As nossas viagens a Luanda começam a acontecer, nos finais de semana dá para ir bem cedo pela manhã e regressar à noite, ou pernoitar no Hotel Continental , o Trópico é muito caro ! As praias na Ilha do Cabo são um bálsamo para as atribulações no Dondo, o Sol muito forte, as areias finíssimas, o mar é calmo , águas tépidas ; dali se avista toda a Baía de Luanda , os grandes edifícios que lhe fazem contorno , a faixa de areia e os coqueiros que a embelezam . Na praia , observamos que as mulheres européias se cobrem do Sol ao máximo , evitam se bronzear , nos dizem que não querem ser confundidas com as mulatas , muitas , que circulam por Luanda !
Os restaurantes são numerosos, cada um oferece a sua especialidade , mas o que não podemos dispensar é o caranguejo ou o arroz de marisco , melhor começar pelo primeiro e depois o segundo !
Pena a EKA ainda não estar sendo vendida aqui !
Os caranguejos são feitos de forma diferente da de Moçambique, lá eram de caril , aqui recheados. São verdadeiramente divinos !

1 caranguejo com 1 Kg
500 gr de natas
3 colheres de sopa de coentros
1 cebola, 2 dentes de alho
2 colheres de sopa de azeite
pão ralado

Lava-se muito bem o caranguejo e põe-se a ferver durante 5 minutos. Depois de ferver, desfia-se a carne toda do caranguejo e põe-se o casco de lado. Refoga-se a cebola com o alho e o azeite, depois junta-se o caranguejo com as natas e o oentro ; encha os cascos com este preparado. Salpique com pão ralado e coloque no forno por uns minutos para alourar no topo. Serve-se quente nas conchas.

Garçon, traz outro caranguejo , olha, mais cerveja !

Decido ser boa idéia alugar uma casa aqui em Luanda , não deve ser caro , poucos móveis resolvem , podemos vir gozar desta praia e dos caranguejos mais vezes.
Toda a cidade é pacífica , sem qualquer vestígio de problemas, mesmo de noite, não há noticias de assaltos, os jornais só relatam casos de operações militares nas fronteiras ; o povo é humilde , mas alegre , procura melhorar as condições de vida nos empregos que não faltam , na construção civil , no comércio, nas muitas fábricas que estão abrindo , principalmente nas regiões vizinhas , Viana , Cacuaco.
A Baía à noite ganha um maravilhoso contraste , toda iluminada , as águas do mar refletem as luzes formando um quadro de atraente beleza .
Em muitos bares por Luanda, lotados, se ouvia a musica nativa , em muitos locais quase sempre mal iluminados , mais para a periferia, as danças as mais variadas tomavam conta de todos , às vezes só um batuque

« A massemba, que se dança em Luanda, em associações populares que a cultivavam, é a forma urbana do caduque, baile "essencialmente rústico, executado ao ar livre, em chão de quintal", natural de Ambaca (Mbaka). Massemba é plural de dissemba, umbigada, do verbo kussemba, requebrar-se. E dança de salão - evidentemente, de salão pobre, nativo. Se desprezarmos uma movimentação em quadrilha, o fogope - os ‘exercícios’, sob o comando de um marcador - que faz parte do baile em Luanda, mas estruturalmente nada tem a ver com ele, os dançarinos se organizam em duas fileiras, como no coco, mas as umbigadas nem sempre se dão entre homem e mulher. Um dos figurantes se destaca da sua fileira e vai dar uma semba (umbigada) num dos componentes da outra: Quem aplica a semba ocupa o lugar de quem a recebe, pois esse, em evolução análoga, logo parte a entrechocar-se com outro elemento da fila contrária. A orquestra desse baile urbano, bem comportado, em que cavalheiros e damas trajam a capricho, muitas vezes na mesma cor, e outrora até mesmo de smoking, compõe-se de uma harmônica e uma dicanza, espécie de reco-reco de cerca de um metro de comprimento. Os presentes fazem coro nas canções »

A nossa cerveja estava fermentando na sua cuba , outras já estavam igualmente cheias, eu tinha passado a operar a Moagem e a Brassagem, procurando entender aquela mesa de operações que teimava em falhar - os controles, os circuitos hidráulicos , temporizadores e registros ora respondiam de um modo ora de outro, obrigando a uma atenção continuada e a passar sempre para o comando manual ; as operações na mesa eram feitas em sequência automática da esquerda para a direta, o ultimo comando a ser inserido encerrava o processo. Passei a dizer que na vez em que a mesa fizesse um processo por inteiro , sem necessidade de intervenção manual, seria ouvido o hino holandês ! Acho que os técnicos holandeses não gostavam , aquela mesa era o projeto mais avançado da Heineken em automação !

A mulher do LF começou a ter problemas com a gravidez, ainda no início, era o primeiro filho. Para maior comodidade e maior assistência , resolvemos que se instalariam na nossa residência, naquela ala para visitas . Mas foi por poucos dias, o médico aconselhou a ir para Luanda , o LF foi também .
Alguns dias depois soubemos que tiveram de seguir para Lisboa, a senhora tinha uma infeção não controlável nos locais das injeções, altamente perigosa, risco de morte.

As primeiras amostras de cerveja logo após filtração já tinham sido bebidas com avidez e orgulho ! Produzida ali , naquele planalto no meio do nada , a quase 200 Km de Luanda, água vinda de tão longe, obra em tempo recorde !
A satisfação foi maior no dia da primeira garrafa ! Para mais naquele calor do final da manhã ! A qualidade não era excelente, o gosto do lúpulo não era puro, a espuma não era boa, ela descia rápido do copo , pouco estável.
Mas, com todas as dúvidas sobre a qualidade da água, pareceu um alívio para o Sr. E e Monsieur SL .
Os equipamentos estavam todos funcionando , os técnicos estrangeiros podiam ir embora , os testes terminavam .

O resto do dia foi de festa, o Bar aberto para todos !

A partir dali todos os funcionários teriam direito mensal a grades de cerveja – via-se o orgulho dos funcionários simples ao receber o seu salário , pago no local de trabalho , religiosamente no último dia do mês , carregando para casa , para a família e os amigos, a sua grade de cerveja ! Poder beber o fruto do trabalho é uma satisfação sem par ! Também , nas refeições do Refeitório passou a ser distribuído um copo de cerveja para todos - era a única permissão para beber cerveja em qualquer ponto da Fábrica, exceto para as visitas que começavam a vir conhecer a EKA, que eu tinha que acompanhar , às vezes manhã bem cedo , terminando invariavelmente no Bar, o garçon sabendo que eu me limitava a fazer encenação com o copo só levemente tocado !

Mas a qualidade da cerveja não era boa . Ao final de alguns dias o sabor ficava mais amargo , adstringente, a cerveja turvava cedo de mais , a espuma quase não se formava . A estabilidade era muito baixa .

As chuvas já começaram , quase sempre pancadas fortes , curtas, mas de muita água. Algumas vezes precedidas de rajadas de vento, que derrubam pequenas árvores e arrastam arbustos , essas chuvas vêm rápidas , destroem , somem . O acesso por Jeep ao Poço na margem do Kuanza ficou mais difícil , em alguns pontos formam-se enxurradas que descem pela montanha em linhas de água já marcadas pela continuidade dos tempos, arrastam pedras e terra, fechando o caminho aberto pelo trator ; depois , em algumas baixas , a água fica retida e só vai baixando devagar, o Jeep precisa parar ali até ao escoamento .
Na Fábrica , essas chuvas tornam-se um desastre ! Conforme o projeto, tinham sido construídas valetas ao longo dos dois lados de todas as ruas, que deveriam ser suficientes para coletar e transportar a água das chuvas para fora da área da Fábrica – logo com as primeiras chuvas, essas valetas se mostravam de seção insuficiente , a água transbordava e alagava a boa altura a Sala de Máquinas e a Sala de Fabricação ! A solução ? Rodo !
Os holandeses tinham usado os parâmetros europeus , desconheciam as características de África !

Talvez provocado pela distância, ou consequência dos atritos durante a Montagem da Fábrica em razão dos prazos curtos dados aos técnicos holandeses e das insuficiências do comércio de Luanda, também porque o apego do pessoal administrativo e comercial aos problemas da Empresa fosse bem menor do que o do pessoal de produção , nós na Fábrica por excesso motivados , o relacionamento entre as duas partes da Empresa – Luanda , Dondo – não vinha sendo harmônico, às vezes pouco amigável .
Com isso , as equipas comerciais desconheciam a Fábrica , não havia visitas delas para conhecimento da forma de produção do que se propunham vender , ao menos fazer conhecimento das pessoas que por ali trabalhavam , o comodismo da vida em Luanda parecia impedir esses esforços ; nem mesmo se verificava participação do pessoal de Luanda nos atos festivos da Fábrica , como tinha sido o da primeira produção, ou de uma festa para os comerciantes do Dondo que foi realizada em um sábado no Refeitório ( na qual podemos verificar a capacidade de beber de alguns deles ! ) .

Teria sido cansaço ? – o Diretor Geral saiu de Angola, sem qualquer aviso, sem sabermos das razões . Apenas que não voltaria mais !
Acumulando funções ficou o Diretor Comercial , pela razão de estar em Luanda , seria lógico .
O relacionamento entre Luanda – Dondo não melhorou, pelo contrário.

Com a continuidade de operações , o vasilhame foi sendo esgotado e precisávamos então do seu retorno regular . Pela razão da quantidade inicial de garrafas ser pequena – nós havíamos avisado ! – ou talvez porque as vendas estavam levando o produto para muito longe de Luanda ( dificuldades de comercialização ? as quantidades eram tão pequenas ! ) , o retorno começou a ser insuficiente e a Fábrica a ter de parar operações . Mais desgaste no relacionamento !

Em Luanda consegui alugar casa , no Bairro de Alvalade, cidade alta,pequena mas suficiente , local excelente, próxima de comércio, do cinema Miramar . Os móveis, poucos, não foram problema, podíamos dispensar o hotel quando viéssemos a Luanda .
Nas visitas ao comércio encontrei algumas boas lojas de aparelhagem de som , discos , minha paixão – comprei um aparelho quadrafônico , caixas de som , um aparelho de eco, um gravador de rolo . O quadrafônico se propõe dividir o som em 4 caixas , com controles individuais, surround , última novidade !
No Dondo , as nossas reuniões ficam melhoradas , agora com som mais pujante , as musicas de James Last e de Ray Coniff mais vivas, animadoras.
O consumo de cerveja o mesmo , puxado pelas sardinhas assadas que a Tininha prepara !

O LF voltou de Lisboa, sem a esposa ! Segundo ele , ela está muito mal, praticamente sem esperança de recuperação , a infeção incontrolável , ele não teve coragem de acompanhar o desenlace !

Continuo o treinamento de funcionário para aquela mesa de comando da Brassagem , um africano parece se adaptar , tem formação mecânica, trabalhou na Montagem .
A qualidade da água parece ter piorado, o cheiro agora é mais fétido, com as chuvas que caem quase diariamente a visita ao poço ficou muito problemática , o esforço dos mecânicos, do DS , é grande . A bomba submersa que faz o bombeamento para a Fábrica começa a dar problemas, superaquecimentos, travamentos , disparos , o rearme não funciona cá de cima da Fábrica .
O Sr. E começa a preparar relatórios para a Heineken , são mensais , valores de consumos, parâmetros de produtividade , de qualidade , informações padronizadas que a Heineken exige de todas as suas fábricas .
Eu preparo grandes gráficos de acompanhamento de todos esses parâmetros, coloridos, que disponho como um livro que se abre folha a folha, pendurado em parede da Sala de Reuniões, ao lado da minha.
A secretária, a Maria José, não sabe francês , copia os relatórios letra a letra, mas é extremamente cuidadosa , os trabalhos dela saem impecáveis.
O relacionamento com o Diretor Comercial não melhora, mandamos várias cartas para a Heineken com cópia para ele, problemas que se arrastam , interpretações errôneas feitas por ele e de que também ele envia cópia pra a Heineken . Os holandeses , os belgas, devem adorar !
Mas mantemos a Fábrica na capacidade máxima , corremos atrás do retorno de vasilhame , mudamos a programação, o espírito de todos é o de obter a perfeição, não se verificam faltas ao trabalho – faltas que em África são habituais, muitas ! - , a limpeza das ruas é notável , os Vestiários e o Refeitório são motivo de apresentação às visitas da Fábrica como demonstrativos da nossa organização !
Continuo diariamente , manhã cedo, agenda debaixo do braço, fazendo a inspeção a toda a Fábrica, o LF vai comigo , junto o DS, conversamos com o Sr. E , ele é também rigoroso, agora se dedica mais ao Enchimento , ao desempenho das máquinas e ao treinamento de pessoal desse setor.
A qualidade da água nos desagrada cada vez mais , a estabilidade da cerveja é muito baixa, ao fim de poucos dias o sabor é ruim, a espuma sumiu ! As mudanças no tratamento da água não resultam em melhorias desse panorama .

Entre surpreso e encantado , descubro que no Refeitório o pessoal africano encontrou a demonstração máxima de amor ao produto que fabricam ! O copo de cerveja é cuidadosamente mantido tapado com o guardanapo de papel ! Invenção deles, não há moscas para tanto !
Mas em contrapartida , no Bairro do pessoal de chefia acontece alguma coisa anormal. Uma das regras que havíamos imposto era a de as casas serem ocupadas na sequência, independente da cor do funcionário. Isso tinha sido bem aceito , mas agora estávamos tendo problemas - um pouco constrangido , o Chefe de Pessoal vem – me contar que nas casas ocupadas pelos africanos a cozinha e até o banheiro tinham passado para os quintais ao ar livre ! As africanas não tinham o hábito de utilizar espaços fechados, mesmo aquelas de melhor educação como seriam ( ? ) as casadas com africanos mais evoluídos ! A ordem foi a de voltarem de imediato à situação normal ou de perderem a casa – ninguém perdeu , o problema não voltou a se repetir !

A mulher do LF volta de Lisboa, saúde boa, refeita do susto. Conta que a infeção tinha sido provocada em Luanda nos locais das injeções , incontrolável , teve um médico em Lisboa, Hospital do Câncer , que a tinha tratado com imenso desvelo, lhe tinha salvo a vida.

Chega o Natal , 1971 !

Primeira grande festa no Refeitório para todo o pessoal , mesas colocadas em U , eu tinha dado autorização para alguns funcionários irem à caça, dias antes, levaram o Jeep, trouxeram uma bela peça , estava assada . Cerveja à vontade, comida distribuída na mesa, pessoal alegre.
A Tininha , as senhoras, têm alguma dúvida se devem ir à festa, afinal são muitos homens, educação pouco aprimorada , muita cerveja.
Vão , os Filhos também ! Quase logo à entrada , pouco tempo de sentados , um africano vem trazer uma revista de quadrinhos para os garotos se entreterem , ato simples, voltou para beber com os amigos . Todo o tempo não houve uma palavra destoante , mal educada , riam , brincavam , bebiam , nós podíamos estar ali , as senhoras conversando , normalmente como naquele restaurante do Dondo ! Já noite , vi que alguns africanos rodeavam um deles, devia estar mais entrado na cerveja, o retiravam da festa, não fosse atrapalhar .
Tive aí a melhor demonstração que o meu sonho era possivel , as desigualdades sociais que existiam não demonstravam menor valor humano , o respeito mutúo podia ser ganho , a continuidade daquela convivência seria um fato .

Dessa festa , ganhei a cabeça embalsamada da peça de caça que serviu ao repasto , para adorno da parede da sala !

Os Filhos tiveram duas bicicletas , uma pista de carrinhos de corrida ; o João e a Paula iam bem na Escola, gostavam da liberdade , a Olga e o Pedro se divertiam nos espaços ajardinados entre as residências , com o filho do DS, mais endiabrado, sob os cuidados do Manuel. Às vezes esses cuidados não chegavam para evitar algum desastre , como uma cadeira quebrada - na volta a casa , terminadas as aulas da tarde, a Tininha encontra o Manuel , as crianças atrás dele, protegidas , « a senhora não bata nos meninos, eles não tiveram culpa » ! Ou se revelavam imaginativos , como para fazer a Paula comer , difícil , enjoada , o Manuel corria atrás de grilos para pôr numa caixa e com eles meter medo à Paula ! As crianças tinham um amigo , nós uma pessoa de confiança .

A minha Sogra decide vir passar uns tempos em Angola , acompanhar os Netos, matar saudades . Se admira com a convivência naquele restaurante no Dondo, a alegria simples com a boa comida, o dividir da conta , cada um paga o que comeu ! Nos acompanha nas visitas que fazemos , não só a Luanda , a Kambambe ao cinema, mas agora a localidades por ali em volta, Salazar , Lucala , Duque de Bragança .
Salazar era a capital do Distrito, pequena cidade com um parque magnífico, belíssimas palmeiras de leque em meio a um lago , árvores tropicais ladeando as veredas onde os Filhos corriam .
Duque de Bragança tinha umas enormes Quedas de Água no Rio Lucala , 405 metros de largura , 105 de altura de queda livre , um barulho ensurdecedor na época das chuvas , a água parecia brotar debaixo das árvores entre as fragas, escorrendo em centenas de cascatas , tons vários de azul e verde , uma nuvem de vapor de água parecendo querer encobrir esse espetáculo admirável da Natureza .
Diziam que Angola era riquíssima em belezas naturais, pouco exploradas , vontade de as percorrer ao nos deslumbrarmos com estas Quedas de Água !

A grandiosa FLORESTA do MAIOMBE em Cabinda, com árvores com mais de 50 metros de altura, onde predominam madeiras de expressivo valor econômico, tais como: o PAU-PRETO, o ÉBANO, PAU-RARO, PAU-FERRO e até o afamado PAU de CABINDA...
Todo o Norte do território com lindas matas, incluindo os lindíssimos IMBONDEIROS.
No Deserto de Moçâmedes, a espécie rara "WELWITCHIA MIRABILIS" e " ACANTOCICIOS HORRIDUS ( NARA ), espécies únicas no mundo.
No Muquitixe, centenas e centenas de hectares plantados com rico ABACAXI...
Os BANANAIS e CANA SACARINA do Lobito, Benguela e outras zonas...
As ricas fazendas de SISAL e TABACO... do Cubal e outras zonas...
As famosas roças de CAFÉ... Sendo a cidade do Uíge considerada a Capital do CAFÉ...
Os seus PALMARES e COQUEIROS do Norte...
Chitacas com frutas variadas...
As Fazendas de CAFÉ da zona do Andulo...
As lindíssimas MULEMBAS, os EUCALIPTOS e os BAMBÚS...
As lindas ACÁCIAS da cidade de S. Filipe de Benguela...
As extensas e lindas plantações de ALGODÃO da Baixa de Cassange ( Malange)...
As " TERRAS do FIM DO MUNDO " ( Kuangar )...
O "PÔR DO SOL NO MUXIMA"... Espectacular...
A ILHA do MUSSULO em Luanda...
A RESTINGA do LOBITO...
A BAÍA AZUL em Benguela...
A FENDA do TUNDAVALA na Huíla...
A fantástica SERRA da LEBA na Huíla...
A imponente SERRA da CHELA - com um desnível de 1.000 metros
As PEDRAS NEGRAS em Pungo Andongo.. .
A PEDRA do FEITIÇO em Santo António do Zaire...
A famosa PEGADA da RAINHA JINGA no Norte...
A também famosa Falésia MESA da RAINHA JINGA...
As GRUTAS de Cangalongue...
As CASCATAS da Unguéria...
As lindíssimas CACHOEIRAS de Novo Redondo...
A PEDRA do ALEMÃO da Vila Nova...
O ROCHEDO do CANDUMBO da Vila Nova...
As PEDRAS da Caota na Baía Farta..
Os ROCHEDOS de IELALA em Nóqui...
A FONTE dos PASSARINHOS no Norte
O MORRO SAGRADO dos Mukuissos em Moçâmedes, com gravuras rupestres...

Com uma área de mais de um milhão e duzentos mil quilômetros quadrados, 13 vezes maior do que a de Portugal, 1650 Km de costa, belezas naturais , riquezas minerais e potencial agrícola, uma população européia de mais de 300.000 habitantes e um total que não chegaria a 6 milhões, Angola podia aspirar a ser em futuro próximo um País proporcionador de boa qualidade de vida para todos os seus habitantes .

Para melhorar a imagem da cerveja , o Diretor Comercial tem a idéia de um programa radiofônico com a descrição das atividades da Fábrica , os seus sons, pequena entrevista minha , de alguns funcionários. O programa vai ao ar , eu ganho uma cópia e um presente da empresa que o elaborou – uma "WELWITCHIA MIRABILIS" em porcelana , lindo adorno para a mesa da sala !
Esta planta só existe nos Desertos do Namibe ( na Namíbia ) e de Moçamedes ( em Angola ) e é a melhor adaptada de toda a Flora às agruras do deserto – rasteira, formada por um caule que não cresce, uma enorme raiz aprumada e duas folhas apenas , em forma de fita larga, que continuam a crescer durante toda a vida da planta e tornam – se esfarrapadas nas extremidades , podendo atingir mais de dois metros de comprimento e que permitem à planta absorver o orvalho ; é difícil avaliar a idade que estas plantas atingem, mas pensa-se que possam viver mais de 1000 anos.


Não obstante a deficiente qualidade da cerveja e as dificuldades de uma produção regular por falta de vasilhame, esta indicativa de vendas comprometidas , foi decidido efetuar a festa de inauguração da Empresa, na Fábrica, com a participação do Governador Geral de Angola e Autoridades próximas , suas famílias, do Sr. Quintas e familiares, Monsieur S , o Adjunto do Diretor Comercial ( Diretor que mais uma vez mostrava o seu desinteresse , também sem outros funcionários da Sede em Luanda ! ), Autoridades locais, Imprensa , etc, todo um grupo de visitantes que se juntou na Portaria , viu a fita simbólica ser cortada pelo Governador com a Paula orgulhosa portadora da tesoura , que visitou as Instalações, viu descerrar uma placa comemorativa , com os discursos da praxe , e que ao final se dirigiu para o Depósito de Vasilhame onde enormes mesas apresentavam um buffet caprichosamente servido por casa de Luanda , aberto a todos os visitantes e ao pessoal da Empresa sem distinção.
Visitas retiradas , regressando cedo a Luanda , a festa continuou ali, os africanos mais à vontade , e mais tarde na minha casa , para onde a Tininha e senhoras levaram o que sobrava de doces e iguarias, o grupo ali da Fábrica e o Adjunto Comercial e esposa ; ele era sobrinho do Sr. Quintas, pessoa agradável, distinto , mulato , como a esposa , elegante , bonita .
Musica alta, alguns passos de dança desajeitados por alguns, um grupo se reúne em torno da esposa do Adjunto Comercial , que conta anedotas sem cuidado algum de linguagem , anedotas que fariam o Bocage corar, mas que com a habilidade discreta dela não envergonham , fazem rir e querer ouvir mais. Marcou a festa de inauguração ! Sem incidentes, correta , mais um motivo de orgulho para todos.

O Sr. Quintas era um comerciante que havia dado certo em Luanda .Ele e irmãos tinham um bom comércio de tecidos e com alguma influência conseguiram a aproximação com a Heineken , que já tinha uma Fábrica em Luanda , que produzia a Nocal . Na sociedade da Eka a Heineken tinha 75% e assim o Sr . Quintas era um espectador das decisões da Empresa , o que o incomodava na sua vaidade mas que na realidade supria a sua total incapacidade para gerir aquele tipo de negócio; obviamente que a sua ingerência acabava por se sentir na Sede , nas decisões comerciais, até por ter aí o seu sobrinho . Com isso , o entendimento com a Fábrica era difícil e parecia criar dois lados antagônicos , portugueses – holandeses .

Poucos dias depois, o Sr. E vai embora , vai para Kinshasa provavelmente , terminava a tarefa de colocar a Eka a produzir cerveja. Mais um pretexto para uma festa no Refeitório, toda a Fábrica , discurso de homenagem pelo seu trabalho e dedicação , a Eka bastante lhe ficava devendo . Eu tinha aprendido muito com ele, me tinha passado informações que a Heineken me não tinha dado , com ele eu tinha obtido um ótimo treinamento em complemento ao de Louvain e até herdado um pouco da sua agressividade , a se juntar à minha , sempre só dirigida à área comercial !

Dessa festa , ganhei mais uma cabeça embalsamada para a parede da sala.

A Empresa admite novo Diretor Geral , um antigo Coronel Aviador , solene e empertigado, sempre esperando receber obediência militar, nada parecido com o estilo da Fábrica e que mais vem aguçar os meus problemas com a Sede .
De cerveja não sabe nada , não bebe, prefere vinho de boa qualidade ! Mas tem uma vantagem , como piloto aviador se desloca à Fábrica em pequeno avião monomotor, quatro lugares apertados , alugado , que às vezes ele mesmo pilota .
Numa das suas primeiras visitas, eu e o LF aproveitamos para sobrevoar a região do Dondo e da Fábrica , tirar fotografias e filmar. Não sem alguns sustos , conseguimos fotografar a tomada de água no Kuanza , o Rio , o poço, a área de subida da canalização para a Fábrica . O LF saiu do avião enjoado , eu quase , mas tinha valido a pena porque visto do alto o conjunto das instalações era muito bonito .

Com a saída do Sr. E , eu amplio as minhas inspeções diárias , manhã e tarde , agenda me acompanhando , anotando , conversando com os LF e DS, analisando os equipamentos , esmiuçando o processo e procurando que os funcionários soubessem as razões do que faziam . Para o Controle de Qualidade estávamos formando um funcionário africano que tinha trabalhado no Armazém de Matérias Primas, eu e ele tínhamos carregado sacos de malte ; excelente moço , compenetrado, começava a saber tirar as amostras e a fazer análises.
Mas precisávamos de um responsável, pelo menos com formação de técnico - químico, até para auxiliar o LF e poder substituí - lo em caso de ausência ;também, para auxiliar o DS seria preciso contratar um técnico – mecânico .

Mando os relatórios mensais para a Holanda , incremento com informações , faço comentários sobre a qualidade da água , os esforços feitos ; junto algumas fotografias aéreas , em particular uma muito feliz que mostrava claramente a razão dos nossos problemas ! Seria um choque para o orgulho dos holandeses mas eu tinha que enviá-la ! Ela mostrava as linhas de água das chuvas que escorriam da montanha , cá de cima da Fábrica , e iam no sentido da baixa em que se encontrava o poço – essa pressão de águas poluídas , densas de matéria orgânica e metais dissolvidos, era exercida sobre o poço, essas águas entravam nele e impediam que a água do Kuansa – aquela que seria boa ! – pudesse entrar !

A minha secretária , Maria José, era casada , morava em Kambambe. Era hábito o marido vir buscá –la , à tarde , final do expediente . Numa dessas tardes , nos encontramos na porta dos Escritórios, ele tem um Ford Taunus, quase novo, verde , 1700 cilindrada , V 4 , produzido em Koln , Alemanha , diz que quer vender , precisa de dinheiro. Eu entro com ele no carro, conduzindo , vou para a estrada que levava a Kambambe, acelero , o carro é muito bom, por quanto vende ? - comprei ! Troquei os pneus, fiquei com um carro novo, maior e mais cômodo do que o Kadett , que eu acabaria de vender depois a um mecânico europeu das Oficinas , que adorava aqueles pneus de pregos !

Nem sempre o treinamento de um funcionário , que achamos com possibilidades, tem êxito – era o caso daquele africano que eu tinha treinado para a operação de Brassagem , se revelava pouco sagaz, passivo, até desinteressado.
Tentei novamente o treinamento , fiquei com ele em várias operações, aproveitei para melhor entender os conflitos daquela mesa de operações que teimava em não cantar o hino holandês e que eu agora chamava de « piano » . Sem resultados, pedi ao Chefe de Pessoal , aquele amigo do Prefeito, que conhecia muito bem a região, para o dispensar .
Mas Sr. Engenheiro , esse africano é irmão do chefe do MPLA aqui da região !
O MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola – era o grupo militarizado, influência comunista, que tinha estado na base do Levantamento de 1961, continuava organizado em toda a Angola como partido político ilegal e só mantinha conflitos armados nas zonas de fronteira . O Governo conhecia os participantes, ou parte deles, mantinha controle . Eu estaria criando um inimigo !
Para mim não havia diferenças entre os funcionários da Fábrica, brancos , negros, mulatos, políticos ou não , todos tinham que saber esperar o mesmo tipo de cobrança e de prêmios – mandei efetuar a demissão , com informação clara que era decisão minha .

Uma noite , já hora avançada, o DS irrompe em minha casa , a Kombi da Fábrica tinha tido um acidente no regresso de Luanda , já próximo ao Dondo . Vou no Jeep com ele , chegamos no local , felizmente o condutor, um mecânico, não tinha ferimentos , só atordoado . A Kombi tinha entrado na mata , as portas travadas pelo arvoredo ; para entrar nela, tirar as chaves, precisava entrar pela porta de trás, passar a perna sobre o banco traseiro. Quando fiz isso , senti como um estalo na virilha esquerda , um incómodo. Deixamos a Kombi ali , de manhã viria um reboque . Na viagem , sentado no Jeep, com os movimentos do veículo, não me sinto bem , algo como uma sensação febril.
Dois ou três dias depois vou ao médico , na Fábrica , sinto como se fosse uma distensão na virilha esquerda , o médico receita pomada , descanso. Dia seguinte me sinto pior , o médico insiste, é distensão , vai passar. Mais alguns dias , o problema não passa , não posso andar , começo com febre . A Tininha telefona para o médico , que não é nada , só distensão ! Resolvemos vir para Luanda , é de manhã , a Tininha conduz, eu me deito no carro no banco de trás, é só um problema muscular, nada de grave , mas melhor ouvir a opinião de outro médico . A minha Sogra fica tomando conta das crianças, achamos que não precisamos de mais ninguém na viagem , em Luanda temos a casa que havíamos alugado , podemos descansar lá se preciso .
Chegamos a Luanda , eu estou pior , fico na casa , deitado , a Tininha vai procurar um médico , antes vai passar pela casa daquele sobrinho do Sr. Quintas , procurar ajuda . A senhora é prestativa, correm os médicos de Luanda , só tem dois urologistas, um está nos Estados Unidos, um curso qualquer , procuram o outro .
Entretanto , eu , deitado , espero , a febre sobe , muito , acho que adormeço . Quando a Tininha chega com o médico já são umas quatro da tarde , estou ali deitado desde o meio – dia ! O médico analisa , receita injeções, manda fazer exames de sangue , urgente .
A febre baixa , mas eu não posso me mexer , dói bastante , está inchado.
A minha Sogra vem para Luanda , a Tininha tem que dar aulas , é só esperar que a inflamação ceda, o inchaço passa logo de seguida.
O médico volta , analiza os exames, pede descanço absoluto , mais injeções.
Recebo visitas do pessoal da Sede , da Fábrica, a Tininha volta no final de semana , com os Filhos .
Fico de novo só com a minha Sogra, prestimosa, eu começo a melhorar , já não dói, o inchaço desapareceu , quero voltar para a Fábrica, não precisamos dizer nada ao médico. Ligo para a Sede , peço um carro , vamos para o Dondo.

Aqueles problemas com a água estavam piores, plena época das chuvas , o DS tem problemas de manutenção , me pede para ir ver, descer ao Kuanza , de Jeep , era só o que conseguia passar , cada vez com mais dificuldade . Claro que eu vou , estou bom !

Dia seguinte, acordo , estou ardendo em febre, as dores voltaram , o inchaço já é grande . De novo para Luanda !
Claro , o médico olhou para mim irado, eu tinha desobedecido às instruções que ele tinha dado, tive que ouvir. E ficar de novo sem me poder mexer, o inchaço era grande , dor, febre , mais injeções, Wintomylon, pelo menos o enfermeiro , africano, era excelente , eu quase nada sentia. A minha Sogra ficou de novo comigo, agora não vou desobedecer ao médico !
A Tininha vem a Luanda sempre que pode . Numa das viagens, saída de Luanda , um dos pneus novos do Taunus estourou , ela consegue segurar o carro !
Melhoro, relativamente rápido , mas obedeço ao médico. Mais Wintomylon !
Faço exame de Raios X aos rins , ao sistema urinário. Estou bom , convenço a minha Sogra a irmos ao cinema, ali próximo o Miramar, um cinema ao ar livre, as paredes laterais e o teto podiam fechar em caso de mau tempo, canteiros de plantas frondosas em todo o contorno e nas áreas do café durante o intervalo , vista panorâmica sobre a Baía , belíssimo.
Faço mais outro exame de sangue, o médico fica sentado ao lado da cama olhando para os papéis, me pergunta – não sente mal estar nenhum, nenhuma dor ? - é que pela análise de sangue, o senhor devia estar morto !
Mais de duas semanas , a Tininha sabe que o outro médico chegou dos Estados Unidos, marca consulta , levamos os exames, ele analisa cuidadosamente, suspende toda a medicamentação , só um comprimido pequeno , posso ir para o Dondo , bom fazer repouso durante mais alguns dias.

Sei depois que o primeiro médico pensava que eu tivesse tuberculose renal , muito grave, o Sr. Quintas se ofereceu para eu ir para a África do Sul , avião , na farmácia onde minha Sogra comprava o Wintomylon achavam que devia ser muito grave porque as doses eram enormes !
Eu tinha tido uma orquite , por torsão – só!

Posso então voltar à rotina de atividades, ir ao cinema em Kambambe assistir a filmes do Trinity , com Terence Hill e Bud Spencer , ouvir os meus discos e descobrir que o LF gostava de cantar e tocar violão . Tínhamos mais um motivo para reunião , em torno do gravador de fita ,tentando obter em som estéreo o LF cantando e os outros fazendo coro. Eu não cantava !

Íamos ter mais uma surpresa, o João António começa a apresentar os olhos e a pele com coloração amarelada , fadiga, mal estar , o médico diagnostica hepatite, talvez por contágio na Escola . Por cuidado de contágio com os irmãos seria melhor isolar , em Luanda teria melhor assistência, assim o João António vai ficar naquela casa alugada durante algum tempo, com a Avó, que acabava por ter vindo nos visitar em Angola para ser útil como enfermeira ! A hepatite não era grave, a cura rápida, o João volta para o Dondo em duas semanas e pouco tempo depois a minha Sogra voltava para Pombal.

Na Fábrica , recebo uma carta da Holanda informando que viria para o Dondo um técnico belga para assumir o Controle de Qualidade . Acho estranho , não vislumbro o que vem fazer alguém só para o Controle, penso que dos holandeses tudo se espera, fico insatisfeito, penso em rescindir contrato , vou esperar.

Logo após a carta , vêm dois holandeses visitar a Fábrica – o SL que estivera lá na posta em marcha ( responsável por termos começado a fabricar com aquela água ! ) e o VR que era o responsável pela parte dos equipamentos e ainda não conhecia a Fábrica. Ficam no Hotel do Dondo , primeiro dia na Fábrica vejo-os com muitos papéis na mão , a maioria deles eram as minha cartas para a Holanda com informações técnicas.
Digo-lhes que podem estar à vontade , podem ver o que quiserem , a Fábrica era deles , deixo – os sozinhos , a cara deles manifestava um pouco de constrangimento .
Terceiro dia , final de tarde , os dois vêm falar comigo . Sem preâmbulos, me dão os parabéns pela qualidade da Fábrica , que tinham achado na Holanda que eu mentia nas cartas , os resultados que eu indicava não podiam ser verdade , eu tinha resultados muito superiores aos que eram os padrões da Heineken ! Assim , direto, característica dos holandeses ! Claro , fico satisfeito , mas surpreso pela situação – os resultados podiam ser bons mas havia muitas coisas a melhorar , a qualidade da água influía em muitos aspectos, não só na qualidade da cerveja , alguns equipamentos precisavam de ajustes , eu achava que ainda não era oportuno , a Heineken não me parecia muito consciente tecnicamente ! O elogio tinha sido ótimo mas estava-se revelando uma fragilidade que eu não esperava e me mantinha pensando em rescindir o contrato , afinal Luanda era cheia de boas oportunidades.

Dia seguinte , nova surpresa , Monsieur S chega na Fábrica ! Vai para a sala de reuniões - que a Maria José mantém impecavelmente limpa, chão luzindo , como todos os Escritórios - e chama os holandeses e a mim , cara amarrada. Também agora rapidamente os holandeses abrem a reunião , que todos os meus dados técnicos informados nas cartas se confirmaram , que a Fábrica é a melhor do Grupo em África, que já haviam me dado os parabéns , que talvez eu não estivesse apto para administrar a Fábrica de Den Bosh - a 2ª maior do Mundo ! – mas que ali , na Eka, eles não tinham nenhuma duvida da minha competência . Eu assisto a tudo , estou mesmo pensando em procurar melhor emprego ! Monsieur S pede para eu chamar a Maria José , redige um telegrama , pede para ser enviado de imediato .
Monsieur S me lê o telegrama , dava ordem para que aquele técnico belga desfizesse a viagem , não precisava vir para o Dondo ! Monsieur S me pede desculpas, me parabeniza !
Bom, melhor assim , mas aquela sensação incomoda de sonho de que bruscamente se acorda persistia comigo. Lá na Holanda alguém não gostava de mim !
Falamos na reunião sobre os problemas da Eka, a questão da qualidade da água, eu explico os problemas, os erros de projeto – começo a gostar de evidenciar as falhas dos holandeses ! Monsieur S dá liberdade a mim e a VR para decidirmos o que deveria ser feito. Dá autorização para a aquisição de uma lancha a motor , pequena , para podermos alcançar o poço saindo do Dondo , subindo o Kuansa. Autoriza a construção da cerca da Fábrica , com iluminação . Falamos dos problemas comerciais , da dicotomia com a Sede .

Depois , a sós , falamos do pessoal da Fábrica , de aumentos de salário para alguns cargos . E eu falo da minha insatisfação com o que se tinha passado – ganho substancial aumento de salário !

As relações da Heineken com a Eka eram complexas .Monsieur S era o Vice- presidente da Ibecor, belga , que administrava a parte comercial e geria os suprimentos para todas as Fábricas ; nesta Ibecor , a Heinehen detinha 51% das ações e o Banque Lambert , belga , 49% . Na composição acionária da Eka , o Sr. Quintas detinha 25% , a Ibecor 25% , a Heineken 25% e a Withebread, inglesa , os restantes 25% - nesta Whithebread , a Heineken era majoritária ! Ou seja, quem mandava mesmo na Eka era a Heineken , Monsieur S era porta voz . A Heineken teria dois sócios majoritários, já de certa idade , que delegavam bastante as ações executivas , dentro de planos de objetivos.

Com VR desço no poço , analizamos a área , não resta o que fazer senão ir buscar a água direto do meio do Rio através de bomba e canalização externa para dentro do poço, evitando a entrada daquela água que escorria da montanha , talvez com o aumento de nível dentro do poço a pressão interna impedisse a entrada dessa péssima água . A obra é pesada , o local é inóspito, mas parece ser a única solução de curto prazo. Tiramos amostras , o VR vai levar para a Holanda.

Mais à vontade , os holandeses aproveitam a estadia para irmos conhecer as Quedas de Água em Duque de Bragança , a cidade de Salazar .
E para aproveitar de almoço em minha casa , a Tininha faz encomenda no Restaurante do Dondo , o DS e o LF, esposas , uma reunião alegre , vinhos , cerveja . Almoço a mais do meio, o Manuel se aproxima , chama a Tininha , tem de ir na cozinha – o nosso cozinheiro, africano , tinha aproveitado todos os restos de bebida dos copos , estava embriagado , caindo !

O problema de vasilhame começa a resolver - se , chegou a 2 ª encomenda . E o Diretor Comercial foi embora ! Continua o Diretor Geral , aquele ex – militar empertigado, a Sede não tem bom astral, a equipa de vendas se mantém isolada da Fábrica .

Em Luanda tento encontrar livros sobre tratamento de água, não tem muita coisa , mas encontro uma enciclopédia – « Le Livre de L´Eau » , francês , 7 volumes , não é recente , compro.

Aqueles restaurantes na Ilha são mesmo excelentes , a Tininha descobre a galinha de cabidela , prato típico angolano , que passa a alternar com o arroz de marisco os nossos almoços de praia com os Filhos, o João António já bem à vontade no mar , a Olga querendo se aventurar , a Paula fugindo da água e o Pedro mais agarrado à Mãe.
O prato típico de Angola é o funge, uma espécie de polenta cremosa feita com farinha de mandioca ou de milho. O acompanhamento pode ter : a quizaca (folhas do pé de mandioca maceradas, cozidas e temperadas) ; o peixe fresco cozido (ensopado) ; o peixe seco cozido ou assado ; a galinha de cabidela (ao molho pardo) ; a muamba (prato à base de galinha, jinguba - amendoim - , quiabos e outros temperos); ou o feijão preparado no óleo de palma (tipo de azeite de dendê), entre outros.

Galinha de Cabidela
1 galinha
3 colheres sopa de vinagre
4 tomates
1 cebola
2 dentes de alho
1 folha de louro
óleo q.b.
sal e pimenta branca a gosto
Mate a galinha e aproveite o sangue, ao qual se deve misturar o vinagre para não coagular. Corte a galinha em pedaços pequenos e lave-a bem . Leve ao fogo a galinha com o tomate, a cebola cortada em rodelas, a folha de louro, o óleo, o alho picado com um pouco de sal e leva-se a cozer em fogo brando. Depois de cozida a galinha, junte o sangue e leve novamente ao fogo , para deixar cozer durante alguns minutos, até apurar o molho. Sirva com arroz branco.

Faço uma outra compra que vai alegrar o nosso lazer – um jogo de pebolim , matraquilhos como o chamamos em Portugal ! Todo o mundo vai jogar , até as crianças pequenas , em partidas de gritaria, apaixonadas , ficamos craques !
Consigo admitir um técnico – químico para o Controle de Qualidade , africano , formado em Luanda , eu acho uma oportunidade de miscigenar a Chefia , o treinamento não será difícil , já tenho aquele africano que veio do Armazém de Malte, é um orgulhoso analista, bata branca, responsável, mostra alguma ascendência sobre os demais. Esse técnico traz a mãe com ele , africana escura, vão ocupar uma residência , a distribuição já estava prevista.
Mas não dura muito tempo ! Insisto no treinamento , é muito deficiente , desinteressado , o Controle exige o cumprimento de tarefas diárias, cuidadosas , delas dependem algumas etapas da fabricação. Um dia de manhã , minha volta rotineira, agenda debaixo do braço, passo no Laboratório, pergunto o resultado de algumas amostras, não sabe , pergunto porque ainda não mandou arrumar o Laboratório , tinha caixas , frascaria, que desde o início se encontravam por arrumar, o nosso tempo era pouco – me responde, já encontrei assim quando entrei ! Bom , não valia a pena insistir , digo para o Chefe de Pessoal dispensar.
Saiem da casa , peço ao DS para ver se precisa alguma pintura , reparação, me pedem para ir vê – la , insistem ! A mãe daquele sujeito nunca tinha saído da casa , vivia como escondida , ele também não participava de qualquer encontro entre nós , fosse no Bar ou nos jardins das residências , menos nas nossas reuniões de lazer. A casa tinha as paredes imundas , sujeira preta em todos os cômodos, os banheiros e a cozinha estavam nojentos, não se explicava o que tinha acontecido ali dentro ! Podia ser vingança, talvez só modo de vida !
Esse Laboratório tinha mau olhado ! Pouco tempo depois daquele infeliz caso com o técnico africano, passa pela Fábrica um técnico – químico , europeu, casado , entrevisto , acho capaz, admito. Claro , vai ocupar a residência , a esposa é européia , simpática , duas filhas .
Treinamento iniciado , tarefas diárias, cobrança minha , maior ainda do LF porque a Produção precisa de análises, o moço começa a apresentar sinais de estresse extremo , não aguenta , um mês e pouco , demito!
Decido, o Laboratório não precisa de ninguém , aquele africano de bata branca dá conta de tudo, a parte microbiológica , mais difícil, eu e o LF fazemos , aumento o salário do moço, admitimos ajudantes para as coletas de amostras, vai ficar assim !
Melhor admitir um técnico – mecânico para auxiliar o DS, sobrecarregado com toda a Manutenção, vai precisar entrar de férias , temos aquela obra no Rio , o treinamento nessas funções é bem mais demorado do que para o Laboratório - encontramos um europeu, casado , um filho recém nascido, tinha feito o serviço militar na Guiné, outra colônia portuguesa em guerra , era originário da região do Porto.
A esposa contava estórias dele , voltando da Guiné, na rua ao ouvir o estrondo do escape de um carro se jogava para o chão , reação instintiva que tinha adquirido ao longo dos meses sobre fogo sistemático do inimigo ! A guerra na Guiné se caracterizava por entrincheiramento dos militares portugueses , as excursões para ataque direto eram muito dificultadas pelas chuvas contínuas que deixavam o solo intransitável mesmo para os Jeeps . Ele não falava muito sobre essas experiências , o que era comum em todos os ex - militares que tinham enfrentado esse tipo de guerra , em qualquer das colônias , selvagem e destruidora .
Felizmente , em Angola a guerra se restringia ao Norte, mais na região petrolífera de Cabinda . O crescimento era de 7,8 % do PIB ao ano , desde 1960, a cidade de Luanda era a que mais crescia no Mundo depois da de São Paulo, no Brasil, Angola era o 4º maior exportador mundial de café e de diamantes , grande exportadora de minério de ferro , as exportações de petróleo já ultrapassavam as de café, em termos agrícolas Angola era quase auto – suficiente, dispondo ainda de excedentes para exportação . Em Luanda construía-se o que seria o maior hipermercado de Portugal, o Jumbo , 13.000 m², resultado da associação entre o Grupo CUF português e o Grupo Ipiranga brasileiro, que detinha o Pão de Açúcar .
Só as vendas da Eka não iam bem ! Porque a qualidade não era das melhores, as vendas eram feitas mais para o interior, em Luanda era pouco encontrada pelos bares e restaurantes – isso mesmo depois de uma erótica ( ?) campanha de cartazes de uma loira, sueca , saindo da água do mar , maiô escorrendo , mais do que insinuando ! Essa loira tinha estado na Fábrica, dia que eu tinha vindo a Luanda, o sobrinho do Sr.Quintas a acompanhou ; a campanha de publicidade previa fotos e filmes da loira , mini - saia , blusinha de nada, nas instalações, sobre as máquinas, com o pessoal ! Foi uma farra !
A qualidade da água me ocupava boa parte do tempo, indo no poço, ficando a observar os tanques de decantação , fazendo análises, procurando mudar os parâmetros de controle químico , mas sem êxito . Num domingo de tarde , vamos todos para o poço, de Jeep , meio dependurados , mas vai a Tininha, o DS ( ele sempre conduzia ) e a esposa , o LF e a esposa , o PT ( aquele técnico – mecânico auxiliar do DS ) , as senhoras ainda não conheciam as instalações lá em baixo. Já estávamos na estação seca, um calor enorme , pedimos ao guarda que jogasse uma granada para o Rio, a fim de assustar os crocodilos, que ficasse de olho em qualquer movimentação da água, entramos no Rio, tomamos banho nas águas claras que deslizavam lá da Barragem a montante . Voltando para as residências, ainda muito calor , usamos as mangueiras para completar o banho . Alguém fala, podíamos ter um tanque de água para as crianças brincarem , eu acho boa idéia, raso que fosse podiam - se divertir. Olhamos para os quintais , a melhor área é ao pé da minha casa , fica mais protegida, marcamos algumas referências no chão, amanhã o DS manda o pessoal cavar.
Almoço do dia seguinte , passo pelo buraco , o terreno é muito duro, quase rocha, o pessoal tem dificuldades em cavar , lembro do trator que anda preparando o terreno em torno da Fábrica para a instalação da cerca, peço para que – sem fugir do orçamento ! – desse ali uma ajuda. Volto à tarde , o buraco já era uma enorme cratera , largo , fundo ! Eu e os outros olhamos para aquele desastre – como ficaria bem aqui uma piscina !
O desafio estava ali, como pagar a despesa ? Fazemos algumas contas, dividimos entre todos, a piscina vai ser simples – uns 15 metros por 5 , funda de 3 metros para podermos saltar, só uma pequena área para as crianças – logo vão aprender a nadar – toda acimentada , um pouco de ferro para sustentação das paredes , sem esgoto , sem entrada de água , faremos isso com a bomba elétrica , trazemos água até ali, dá para fazer chuveiros, o esgoto vai ser direto para a montanha que começava descendo logo na frente !
O calor era muito forte, batemos recorde de construção ! A dificuldade foi a de encher , a pequena bomba ficava dois dias ligada . Mas a piscina era linda ! Não tínhamos filtração , aspirador de fundo, mas nada impedia o brincar na água com aquele calor. O João e a Paula vinham da Escola, já tinham as roupas de banho por baixo da bata, nem entravam em casa ; a Olga e o Pedro não saíam da água ! Os adultos ficavam ali à noite, conversando , bebendo cerveja , o Manuel se apressava a substituir os pratos das tapas, vazios.
A cerca estava concluída , a iluminação dava maior segurança aos guardas e a todos nós , o terreno por fora da cerca tinha sido desmatado , jogou – se sal sobre o terreno para não deixar crescer as plantas.
Esperávamos o material para fazer a obra no Rio , antes de começar a época das chuvas. Na piscina , eu começava a observar que as roupas ficavam fortemente manchadas , marrons, as crianças se queixavam de dores de ouvidos , principalmente o Pedro . Procuro naquela Enciclopédia comprada em Luanda o que podia estar acontecendo , pequenas referências falavam em quelatos de ferro , compostos organo – ferrosos solúveis na água , muito instáveis , de difícil filtração , cor marrom – no nosso caso podiam ser compostos desse tipo , que a decantação não conseguia eliminar e que a seguir também não eram apanhados pelos grandes filtros de várias camadas de pedras com granulometria controlada, com ventilação forçada ; seguiam assim para a Brassagem , prejudicando a qualidade da cerveja , o ferro interferia na fermentação , prejudicava a formação de espuma , o aroma e o sabor. Como resolver ?
Começamos a instalação da captação direta da água do Rio para o poço, difícil pelo tipo de terreno , ao lado do Rio, alagado , as valas precisavam ser fundas para a tubulação poder ficar nivelada com o braço que entrava no Rio e fazia a captação , munido de sistema de filtração grossa contra ramos, folhas , que viessem arrastadas pela correnteza . Na abertura das valas apareciam grandes lagartos , levantados nas patas dianteiras, felizmente fugiam rapidamente. O terreno ficava uma papa , só lama , tinha que ser consolidado com pedras , até profundidade firme , a obra era mais difícil e demorava mais do que esperávamos. Falo com os africanos, aceitam ficar a noite toda, havia risco de chover e impedir a obra . As senhoras vêm no Rio , no Jeep , trazem – nos o almoço , vem o João , a Paula e a Olga , o Pedro, seria uma festa se o inesperado ( e não tanto! ) não acontecesse - chover . Como era costume , chuva curta, mas muito forte , alagando tudo. Felizmente os tubos estavam assentados , faltava fazer as ligações da bomba, colocada na parte externa do poço, em pequena plataforma , isso poderia ser feito no dia seguinte , era já início da noite . Colocamos as senhoras e as crianças no Jeep , vamos iniciar a subida por aquele caminho de trator. Mas as águas que vinham da montanha tinham cortado a passagem , um dos pontos mais baixos estava alagado , tentamos forçar a passagem , o Jeep afunda as rodas na lama, fica ali . Não há outra solução do que vir a pé, subir aquela montanha em frente à Fábrica, 200 metros de desnível em menos de 1500 metros !
Essa aventura ia ficar nos anais da EKA ! O Pedro veio todo o tempo às costas de um mecânico ! A Tininha e as outras senhoras sofreram, ajudadas pelos africanos , parando e parando . As crianças vieram meio andando, meio nas costas de alguém . Eu tentei chegar mais rápido , procurar trazer os veículos disponíveis para iluminar aquele barranco , ajudar na subida , noite já fechada ! Nunca mais quis experimentar !
O barco a motor veio ajudar a resolver o acesso ao poço, embora a viagem do Dondo para lá fosse perigosa, muitos troncos de árvores eram arrastados pela correnteza do Rio, muito forte ali , próximo da Barragem. Mas era emocionante subir o Rio naquele percurso e descobrir nas margens escondidas antigas casas, destruídas , que deveriam ter servido para armazéns de mercadorias na saga dos primeiros tempos da colonização em que o Kuanza era utilizado para a ligação com Luanda , parando ali porque as quedas de água no local que agora era a Barragem seriam intransponíveis.
Com o novo sistema de captação , a qualidade da água que chegava à Fábrica teve uma significativa melhoria, principalmente no odor ; a quantidade de ferro na água também baixou um pouco , mas , com o período das chuvas que se iniciava , o problema ainda não tinha sido resolvido.
As aulas começavam novamente, a Tininha dava aulas no Colégio , Matemática, Ciências, Organização Política ; o João entrava já na 4ª Classe, a Paula na 2ª e a Olga fazia a sua estréia, na 1ª . A piscina perdia um pouco do movimento, em compensação tínhamos colocado uma prancha de saltos, trampolim, que era pretexto para mais brincadeiras e começávamos a construção de um campo de badminton, ao lado dela . As roupas ficavam agora menos manchadas , se observava a água mais límpida , o não termos ali sistema de filtração e de limpeza do fundo obrigava a esvaziar de vez em quando toda a água , lavar as paredes e tornar a encher , quatro dias de descanso para os usuários.
Mas essa água jogada fora para o barranco abaixo das casas ia ter uma utilização : um dos funcionários europeus pensou encontrar ali um bom negócio, começou uma horta ! Ele mesmo , sem ajudante, passava algum tempo cuidando do local, canalizando a água, semeando . Vendia toda a produção ali para as casas , não sei se chegava a vender no Dondo. O contraste do trabalho desse europeu com o que acontecia na área do poço junto ao Rio era demonstrativo de um dos problemas de Angola e de África! Os guardas da Fábrica tinham optado por morar ali , mais isolados dos outros africanos , tinham feito serviço militar nas forças portuguesas , combatido as guerrilhas , temiam alguma represália , eram ovimbundus . Durante toda a colonização , os portugueses usaram as diferenças tribais entre os africanos para manterem o policiamento das populações, tinha sido assim em Moçambique, era assim em Angola . Em Angola , a população africana se compunha de cerca de 40 % de Ovimbundu , que habitava a região Sul , 25% de Kimbundu que ficava ao Norte , outros 35 % de Bakongos, Mestiços, Europeus – a estratégia portuguesa trazia os africanos do Sul para policiarem os do Norte e vice – versa , o antagonismo era muito forte , a convivência muito difícil ! Os Ovimbundu eram uma etnia banta, falavam a sua própria língua, além do português, se distinguiam pela sua beleza e capacidade artística ( no ano de 1971 a Miss Portugal foi uma moça mulata da região Sul , que ficou em 4º lugar no Miss Mundo ! ) . O nosso Manuel era ovimbundu . Os guardas estavam então instalados junto ao poço , com as famílias , uma área plana , onde eu mandei o DS com o seu pessoal ajudar na construção das casas, acimentadas, portas e janelas, telhados de chapas de cimento. As áreas externas eram excelentes , pensei que ali eles pudessem ter uma boa plantação , hortaliças , legumes, seria fácil com a água do rio ali ao lado. Os canteiros foram abertos , demos sementes. Mas com tudo facilitado , só exigindo pequena manutenção , aquela gente não se interessou , nada vingou, nos terrenos cresceu mato, nem capinavam !
Durante os meus tempos observando o que se passava nos tanques de decantação da água, às tantas me dei conta que naquela região para baixo em direção ao Rio se começava a fixar gente , naturalmente trabalhadores da Fábrica que assim ficavam mais perto. As mulheres vinham de manhã desses barracos , lata na cabeça, subindo o barranco, difícil ali na chegada à plataforma da Fábrica , até às casas do outro lado da estrada para ir buscar água, depois fazer o caminho inverso, mais difícil. Mandei instalar ali , na parte de fora da cerca da Fábrica , um pequeno fontanário ! Na manhã em que ficou pronto , fiquei ali de lado, ao pé dos tanques de decantação para ter o prazer de ver a felicidade nos rostos daquelas mulheres ao descobrirem a torneira de água tão próxima dos barracos. Acho que não ficaram tão felizes assim , ninguém agradeceu , nem os maridos , depois !
A Fábrica começava a ser bastante conhecida , a cerveja já não era tão má, aquela sueca saíndo do mar mexia com o imaginário, a estrada passava ao lado das instalações, obrigatória para quem saía de Luanda se dirigindo ao Norte ou ao Sul. Com mais freqüência eu tinha de ir até ao Bar, fingir que bebia cerveja !

Uma manhã das últimas semanas do ano recebemos uma visita ilustre, o Governador de Luanda e seu séquito , esposas , que fez a Tininha se desdobrar para preparar o almoço , na nossa casa , o Manuel de farda branca , impecável e orgulhoso , servindo à mesa como um garçon inglês. O restaurante no Dondo ajudou com o arroz de marisco , como sempre os doces tiveram as receitas cobiçadas !
Aquele Chefe de Pessoal era cuidadoso, a folha de pagamentos era minuciosa , os cartões de ponto vistos um por um , entradas , saídas , faltas. Tanto trabalho me chamou um dia a atenção , perguntei quais as vantagens se nós não tínhamos faltas de ninguém , era uma conferência que ocupava mão de obra , podia ser utilizada noutra coisa .Tive uma repentina idéia, surgida do nada , simples intuição – o que aconteceria sem relógio de ponto ? Mandei tirar , o guarda da Portaria ficaria encarregado de registrar se alguém entrasse tarde, os setores de fabricação se tivessem atrasos ou faltas.
Algum tempo mais tarde , o Chefe de Pessoal me trazia uma nota escrita por um dos guardas – Sr. Engenheiro , peço desculpas porque hoje me atrasei 8 minutos, ............! Tive a certeza que tinha tido uma das minhas melhores decisões !
Provavelmente estaria sendo criada uma utopia naquele alto do Dondo ! Estávamos em plena « Primavera Marcelista », poucas notícias nos chegavam ali, eu também não tinha tempo para as procurar , o LF cantava algumas canções interrogativas do sistema político, brasileiras, ouvíamos Juca Chaves , que tinha estado exilado em Portugal, crítico de Salazar . E algumas coisas que aconteciam me faziam lembrar do Mundo exterior – a minha secretária me vem dizer que o Prefeito do Dondo havia informado de uma manifestação pró Governo em Salazar, que a Fábrica tinha de mandar gente , faixas . A reação imediata foi a de lhe dizer que a Fábrica não era meio de manifestações políticas , não iria ninguém enviado pela Fábrica . Não sei como o Prefeito soube, me telefona, me aconselha a obedecer « tenha cuidado com as implicações dos atos que podem chegar ao conhecimento da Policia » . Claro , mandei , até com faixas !

« Em 1968 , para substituir o Dr. Oliveira Salazar, o Presidente da República escolheu o Professor Doutor Marcello Caetano. Era Professor de Direito, reitor da Universidade de Lisboa, considerado um democrata e um homem de inteligência e honestidade invulgares.
Imediatamente acaba com a polícia política, a PIDE. Mais tarde substituída pela DGS, para defesa do Estado.
Abre-se a esperança para a oposição. Agora, com Marcello Caetano, liberal, avesso a violências e pacificador, que abria a porta e os braços aos exilados, tudo parecia ir correr bem. Mas ainda em 1968 é preso o padre Felicidade Alves, pároco de Belém e em 1970 o padre Mário de Oliveira da Lixa, por contestarem a política Ultramarina. Neste ano, morre Salazar.
A Primavera Marcelista, como ficaram conhecidos os primeiros anos do Professor Marcello Caetano, saldou-se pelo progresso, uma melhoria social com a atribuição de pensões aos trabalhadores rurais e às profissões mais modestas.
Através das "Conversas em Família" na RTP – Rádio Televisão Portuguesa - , o Prof. Marcello Caetano, explicava ao País as medidas que o Governo tomava e tudo parecia sossegado.
Os planos quinquenais de fomento continuaram. O desenvolvimento do País era uma realidade. Mas havia necessidade de uma abertura política que permitisse a formação de partidos políticos. Marcello Caetano sabia-o e tentou tudo para o conseguir.
Em 15 de Maio de 1972, o jornal de "Economia e Finanças" advoga a não entrada na CEE – Comunidade Econômica Européia - , em virtude de, ao fazê-lo, sermos obrigados a abandonar o Ultramar. A 12 de Outubro é morto pela DGS o estudante José António Ribeiro dos Santos. A 30 de Dezembro, um grupo de católicos ocupa a capela do Rato e aprova uma moção contra a guerra colonial. A DGS invade o templo; muitos são presos e o padre Alberto Neto, responsável pela capela, é exonerado das suas funções »

Decididamente, naquele alto do Dondo as coisas tinham cores diferentes, o Natal estava ali , mais um motivo de confraternização entre todos. Um funcionário do Setor de Pessoal, mulato, solícito , me prometeu fazer lá na cozinha , no dia do almoço com o pessoal, um ensopado de quiabo . Não sabia nem o que era quiabo, aceitei !
Dia da festa, mesas preparadas , vem todo o pessoal, senhoras , crianças, aquele funcionário me apresenta ao ensopado de quiabo – mal olhei , reclamei que não comia aquela baba , de jeito nenhum ! Deus me livrasse !
Nas muitas conversas de mesa, se falou de futebol de salão , jogado em quadras de hóquei em patins, com o uso das tabelas . Eles vinham brincando num campo do Dondo, formaram uma equipa da EKA, informal, perdiam por muitos, a rivalidade com Kambambe começava a aparecer , estes muito superiores. Pensei que a diversão podia ser boa , oficializei a equipa, ia ter patrocínio da Empresa , mas com a obrigação de ganhar ! Estavam autorizadas contratações de funcionários que fossem bons nesse jogo , dito mais como brincadeira, alguns copos de cerveja já !
Não se passou muito tempo , dois africanos que em tempos tinham estado na Fábrica, época da Montagem, aparecem dizendo simplesmente que estavam ali para fazer parte da equipa , estavam no Sul , vinham para isso ! Tive que os admitir, as informações eram de que jogavam mesmo muito bem !
Nesse ano, 1973 , tivemos mais um pretexto para abrir o Bar à noite ! A equipa era mesmo boa, aqueles dois eram endiabrados, o LF jogava de goleiro, tinha mais uns mulatos do Setor de Pessoal , um Adjunto, europeu . Os resultados começaram a chegar, íamos todos assistir aos jogos, famílias, depois da vitória o Bar era aberto . Ganhamos de Kambambe, fomos campeões !

A qualidade da água continuava a ser a minha obsessão . Passo horas de lanterna na mão , olhando para as partículas que se formavam no tanque de decantação , de noite o reflexo permitia ver melhor a floculação. Penso que uma chapa ondulada , de cimento , colocada com leve inclinação dentro do tanque , na parte da saída, poderia deter os flocos que se formavam mas não tinham tempo para decantação . Eu e o LF fazemos tentativas , maior ou menor regulação , as partículas pareciam ficar retidas. Fazemos análises da água, tinha melhorado ! Tiramos amostras da água à entrada dos filtros de areia, depois na saída , não havia melhoras ; nessa tentativas , observamos que a amostra de água tirada antes do filtro de areia se fosse filtrada com papel de filtro melhorava enormemente ! Repetimos os ensaios, tínhamos encontrado um novo vilão !
Aqueles dois filtros de areia , na verdade várias camadas horizontais de pedras , cada uma com uma granulometria diferente , até à ultima , de areia fina, tinham instruções rigorosas dos fabricantes, holandeses . Trabalhavam com injeção de ar , que em princípio facilitaria a filtração, até provocando maior oxidação e coagulação. A primeira solução seria não ligar as bombas que injetavam o ar, fazer o filtro funcionar o mais parecido com um papel de filtro. Pedi para o LF fazer tentativas, ele me vinha contar que todas eram infrutíferas porque sem a injeção de ar os filtros não funcionavam . Seguiam – se as instruções do Manual , não se ligavam as bombas de ar, a água não atravessava o filtro, entupia !
Várias tentativas, resolvo eu mesmo ir operar os filtros . Não quero ler os Manuais, identifico as ligações que deveriam ser feitas, ligo as bombas de água, deixo as de ar desligadas e ....funciona ! Tínhamos finalmente resolvido o problema da qualidade da água, que quase ia levando ao fracasso o início de vendas da cerveja e a Empresa !

A água na piscina era outra, clara , sem manchar as roupas, a cerveja tinha espuma, o sabor bem diferente , estável ! Mandei relatórios para a Holanda, descrevi todas as experiências, mandei amostras . Finalmente podia arquivar aquela enciclopédia « Le Livre de L´Eau » !

Finalmente , a Empresa admite novo Diretor Comercial . Mal chegado a Luanda , ele vem na Fábrica , me procura. À primeira vista me assusto – ele mais parece um toureiro , calças apertadas, jeans, botas altas por cima das calças , português ! Se apresenta - RT - , quer falar comigo, se revela simpático. Vamos para minha casa , ficamos bebendo cerveja junto à piscina , falando dele e da EKA .
Ele era de família abastada , propriedades agrícolas, tinha inicialmente trabalhado em empresa de venda de produtos petrolíferos, grandes contratos, viagens na Europa, estava vindo para a EKA porque queria trabalhar em empresa de varejo , ligada ao grande público , solteiro . Um pouco insinuado , me conta que tinha tido problemas em Portugal , mulher !
Pretende incrementar as vendas em Luanda, visitar restaurantes , bares, clubes, onde a EKA não consegue entrar ; quer trazer os vendedores para conhecerem a Fábrica , acha que precisamos aumentar a produção , fazer expansões, enfim , ficamos amigos, agora a EKA tem o Diretor Comercial que precisava !
Volta de novo no final de semana , fica na área de hóspedes, a Tininha simpatiza com ele ( não na primeira vez que o viu ! ) , brinca com os Filhos , faz amigos . Salta para a piscina , mergulha, vai no impulso , bate de nariz na quebra que a piscina tinha entre a área de profundidade pequena e a grande, aí tinha parede caindo reto , esquina viva ! Quase quebrou !
Dois ou três finais de semana se passaram assim , até que ele se adaptou a Luanda , jogava poker , frequentava os lugares movimentados da noite . Depois seria visto entrando num Clube , abraçado a duas moças, o LF perguntava , como ?! tão rápido ! ? Íamos continuar amigos , a área de vendas se desenvolveria , fortalecendo a Empresa . Não seguia regras ortodoxas mas conseguia colocar cerveja onde quisesse ! Com alguns problemas ! Tempos mais tarde , ele me diria que quando o contrataram lhe disseram que era indispensável ter o meu apoio , ser meu amigo ! Antes assim !

O pessoal da Heineken queria conhecer a Fábrica , saber como aqueles bons resultados dos Relatórios eram possíveis, conhecer o Rio e o poço , ver como a qualidade da água tinha sido mudada ! O St , responsável da Heineken pela EKA , superior hierárquico do VR e do SL, técnicos responsáveis da Manutenção e da Produção, tinha também de vir . Com esse holandês eu tinha sentido ao final do meu estágio (?) que a aprovação dele para comigo era baixa, era um sujeito fechado , autoritário , tanto o VR como o SL não simpatizavam com ele . Eu também não !
Chegou de manhã bem cedo , lhe mostrei todos os pormenores da organização da Fábrica , começando pela ausência do relógio de ponto, os Vestiários que luziam , o sistema de gráficos de controle que tínhamos na Sala de Reuniões , as metodologias que o Controle de Qualidade usava, todo o tratamento de água, o que eu tinha implementado , foi no Rio , viu as dificuldades de trabalho ali , passou por todas as instalações , terminou entrando no Refeitório onde os funcionários já almoçavam , copos de cerveja tapados , pessoal africano e europeu, indistintamente , ambiente sereno . Levo-o para almoçar em minha casa , a Tininha estava avisada, tinha sardinhas assadas , costela de porco , uma tarte de amêndoas , cerveja , vinho branco e tinto, licores, café . Voltamos para os Escritórios, o senhor me confessa que aquela tarte estava divina , só não tinha comido mais por vergonha , queria levar a receita para a esposa dele tentar fazer ! Telefono para casa , peço que a Tininha me dê a receita , entrego -lha , ele volta para Luanda , não falou muito mais . O motorista que o levou me disse depois que mal entrou no carro adormeceu , a viagem toda !

Eu já conhecia a cidade do Lobito, superficialmente claro, pela parada na viagem do navio « Príncipe Perfeito » para Moçambique . A cidade estava a 750 Km de Luanda , era o porto de mar mais importante da costa ocidental de África , bem abrigado por uma Baía de 5 Km de extensão , que formava uma linda restinga com largura média de 1 Km . Tinha lindas praias , com águas mansas do lado da Baía e águas batidas em toda a extensão do Oceano Atlântico , que com o vôo de milhares de flamingos formava panoramas deslumbrantes , que se avistavam dos miradouros sobre a cidade – Lobito era chamada a cidade dos flamingos, a casa de visitas de Angola.

« O Carnaval que era realizado na cidade do Lobito chegou a ser considerado pela crítica nacional e internacional como a segunda melhor festa do género no Mundo, logo a seguir à do Rio de Janeiro, no Brasil .
De fato, os festejos carnavalescos se tornaram uma grande atração turística, atraindo visitantes de outras províncias angolanas e até mesmo do exterior..
A festa movimentava quase toda a população da cidade que participava animadamente tanto do desfile como dos vários bailes promovidos pelos clubes locais, com destaque para os promovidos pelo Atlético do Lobito , uma associação recreativa e desportiva daquele município.
Outro fato marcante do Carnaval do Lobito , era a intensa participação das empresas locais, e não só, que ajudavam na organização e nos preparativos da festa. Os empresários apoiavam sobretudo na confecção dos carros alegóricos que participavam do desfile, motivo pelo qual, de ano para ano, eles se tornavam cada vez melhor elaborados, sofisticados e atrativos »

Nesse ano de 1973 resolvi que faria parte do Carnaval do Lobito – bom pretexto para um descanso das atividades da Fábrica , para as aulas da Tininha e dos Filhos . Saímos de carro , naquele bom Ford Taunus, para uma viagem agradável , só estradas asfaltadas , passando por Cela , Alto Hama , Norton de Matos , pequenas localidades . Ficamos em Hotel , tempo de descansar, para no dia seguinte , manhã bem cedo , irmos para a praia e assistir ao desfile dos carros e dos grupos de Carnaval . Tudo isso se as duas Filhas não começassem com fortes dores de garganta, febre, gripe ! Pouco vi do Carnaval , ainda filmei alguns carros, grupos dançando, enquanto as Filhas ficavam quietas na praia, aos cuidados da Mãe . Melhor regressar para o Dondo, tratar daquelas gripes !
A Heineken de anos a anos fazia uma reunião de pessoal técnico das suas Fábricas, por regiões . Fui convidado para ir à reunião desse ano , Fábricas da costa ocidental de África, em hotel de praia preparado para o efeito, vazio porque na Europa se estava no final do Inverno, bastante frio ainda , pequena localidade holandesa que não tinha o que fazer – Rockanje . Era domingo na minha chegada ao Aeroporto do Schiphol , Amsterdam, o VR muito simpático está à minha espera no seu carro , um Volvo, me leva até à casa dele, no caminho entre Amsterdam e Rotterdam. Casa pequena , dois andares, ficamos na sala conversando , ele me demonstra a qualidade da aparelhagem de som – pena que a sala tinha o sofá quase encostado à estante ! – , falamos do carro dele , excelente , ele tinha comprado porque , embora mais caro no valor inicial , ao longo de 6 a 7 anos de uso compensava pela mínima manutenção . Me apresenta a esposa , senhora holandesa típica , meia idade como ele , não têm filhos ( eu sabia , claro que eles não falavam , estavam na Malásia na independência desta , 1957 , tinham uma filha que viram ser morta , na frente deles , pelas forças rebeldes ! ) . Jantamos ali em casa, em seguida me levou para o hotel , onde também ficaria . Felizmente que estão também dois portugueses da Fábrica da Nocal, em Luanda, isso amenizou aqueles dias de nenhum lazer depois das sessões diárias de apresentações técnicas , palestras e debates . Jantar de encerramento , convidativa mesa que compensava da simplicidade das refeições holandesas daqueles dias, fico sentado à direita de Monsieur St. , aquele da tarte de amêndoas . Intervalo de discursos de elogio à capacidade e força da Heineken , ouço do Monsieur St. « o senhor pode fazer o que quizer na Fábrica da EKA , só não pode vender » ! Assim , simplesmente , ele não era de falar muito , talvez que a frase em francês não tivesse saído como ele queria – eu tinha ouvido, não conseguia agradecer, achei que já começava a gostar daquele holandês !
Dessa reunião ganharia uma caneca em prata , fundo de vidro , da Reed & Darton , com a inscrição « 4e Technische Conferentie Ibecor – Rockanje – April 1973 » , para nunca esquecer o jantar de seu encerramento.

A reunião anual do Conselho da EKA era realizada em maio , em Luanda . Tenho então na Fábrica as visitas dos técnicos VR e SL , depois a de Monsieur S no último dia da daqueles dois.
Para o SL a solução do problema da qualidade da água tinha sido oportuna - Monsieur S lhe diria na minha frente que eu tinha salvo o emprego dele ! VR me perguntava como eu tinha chegado à solução dos filtros, eu respondia que fazendo tudo ao contrário do que os manuais holandeses diziam para ser feito !
Aquela chapa ondulada que estava lá trabalhando na saída do tanque de decantação, VR dizia ser o « método de Monsieur Graca » !
Nessa reunião do Conselho ficaria decidida a primeira expansão da EKA, mais 10 cubas , o que duplicaria a produção , a ser realizada no último trimestre do ano , todo o equipamento teria de vir da Holanda .
Mas na visita à Fábrica , Monsieur S não tinha ficado muito contente com a obra da piscina – que eu não lhe tinha pedido autorização ! Me perguntou quanto tínhamos gasto, a EKA ia reembolsar !
O DS tinha agora direito a férias de dois meses, na Europa - ao final daquele difícil período de Montagem e dos primeiros tempos de Produção, essas férias eram um repouso merecido e necessário . Logo que ele regressasse eu iria também, meses de agosto e setembro . O meu Taunus era um carro excelente , tive a idéia de comprar um igual direto da fábrica em Koln, que seria colocado em Lisboa , me permitiria viajar durante as férias e depois trazê-lo para Angola , onde o legalizaria .
Na ausência do DS eu ia tentar me entrosar mais com os problemas de manutenção dos equipamentos , agora responsabilidade daquele ex- militar da Guiné .
Um dos problemas que tinha evidência mais notória acontecia na bomba que fazia o transporte pneumático das drêches , as cascas que sobravam da operação de Brassagem , elas seguiam por ação dessa bomba para um pequeno silo, alguns 20 metros depois, e daí eram transportadas por caminhão para a mata, não tinham aproveitamento e porque ainda tinham restos de açúcar atraíam muitas moscas . Sempre que essa bomba era ligada se ouvia um estampido enorme , que depois se repetia várias vezes ! Com o VR, o responsável técnico da Heineken pelos equipamentos , já tinha discutido isso, ele dizia que na Holanda tinham concluído tratar-se de barulho normal , golpe de aríete ( provocado por deslocação brusca de ar na canalização ) . Eu não estava certo disso , mas o VR me explicava que em fábrica no Zaire com bomba igual o estampido também ocorria . Várias vezes eu tinha pedido ao DS que desmontasse aquela bomba, enorme , em local difícil, mas tudo ficava igual. Como nunca me tinha convencido por inteiro , aproveitei a ausência do DS , chamei o LF e o técnico ex - combatente e pedi para desmontarem a bomba e me chamassem antes de montar. Quando ia começar a montagem , eles com os Manuais e desenhos na mão , pedi que a montagem fosse feita apenas com o bom senso, peça a peça, sem consultar documentos. Montamos a bomba, pomos a trabalhar e ....não tinha estampidos ! Esperamos que uma Brassagem fosse feita, ligamos e ....não tinha nada ! Procuramos encontrar a razão - nos desenhos de montagem, uma peça estava invertida ! Escrevi para a Holanda , disse para fazer a mesma coisa lá naquela fábrica do Zaire, nunca tive resposta .
Aquele Refeitório era realmente motivo de orgulho ! Tinha ido almoçar lá, ficamos conversando na mesa, achei que aqueles africanos mereciam uma surpresa - mandei comprar toalhas e guardanapos brancos para todas as mesas , tinha a certeza que gostariam !
Mas nem tudo corria bem naquele 1973 : recebo comunicado urgente para ir a Luanda , os jornais traziam a notícia alarmante de que o órgão do Governo responsável pela fiscalização sanitária dos alimentos tinha encontrado altas doses de ácido acético na nossa cerveja ! Eu estava com fortíssima gripe , reuni todos os livros e documentação que falassem sobre o assunto e fui para Luanda . Passei pela Sede , acalmei o RT – a cerveja não podia ter de forma alguma ácido acético , era incompatível com a fermentação ! – marcamos análise de contraprova para a manhã do dia seguinte , pedi para o LF estar em Luanda para me acompanhar como nossa testemunha nessa análise , e fui para o Hotel Continental trabalhar . Li , rebusquei , nariz pingando , febre, fiz um relatório, manual, sobre as impossibilidades daquela presença. Dia seguinte estamos no Laboratório do Governo, eu , o LF, o sobrinho do Sr.Quintas. A responsável era uma engenheira, tinha feito estágio na França, estava certa dos métodos de análise que utilizava. Entreguei o meu relatório , conferimos a contraprova, a engenheira começou a análise. Eu e o LF quase dávamos uma gargalhada ! Mas não deixamos continuar a análise, aquela engenheira achava que cerveja era igual a vinho ! Tinha esquecido de agitar a amostra para retirar todo o gás carbônico CO ²da cerveja , sem o que esse gás iria aparecer nos resultados da análise como um ácido ( dissolvido na água , na análise o CO² dá CO³H ² , um ácido fraco , que ela ainda achava que era ácido acético , CH³ COOH ! ) .
Deixei o sobrinho do Sr. Quintas cuidando dos problemas burocráticos do desmentido à Imprensa e voltei para o Dondo para curar a minha gripe.

O hipermercado Jumbo tinha a sua inauguração , o RT me prometia que conseguiria colocar cerveja por lá, as relações da EKA com a empresa proprietária não eram boas . Um dia me disse para passar pelo Jumbo, na entrada de Luanda chegando do Dondo – tinha cerveja EKA em gôndolas espalhadas por todo o lado ! Bom , ele me disse que esgotou todas as possibilidades, a última foi namorar uma das filhas dos proprietários , estes ele conhecia dos jogos de poker !
Um dos problemas de manutenção mais sérios , pelos riscos de parada da Fábrica , estava nas bombas que aspiravam a água do poço junto ao Rio e a atiravam para os tanques de decantação , quase 200 metros acima , na Fábrica – essas bombas eram submersas, múltiplos estágios . Com o forte atrito em razão da grande quantidade de matérias em suspensão na água e com a qualidade muito ácida desta , as bombas apresentavam corrosão anormal e , pior, acabavam por entrar em curto – circuito . A reparação mecânica não era difícil mas a rebobinagem dos motores não dava certo , embora seguíssemos a par e passo as instruções da Heineken , obtidas do fornecedor . Com isso o nosso estoque de motores corria riscos de zerar, o suprimento só podia vir da Holanda , em Luanda não eram encontrados.
O DS tinha levado como atribuição , entre outras na visita obrigatória à Heineken , final de férias, a análise desse problema e busca de formas de solução , levava fotografias das diferentes fases, anotações .
Aquele clima do Dondo era realmente difícil , justificando os aparelhos de ar condicionado da sala e quartos sempre ligados, os Filhos sempre dentro da piscina , o elevadíssimo consumo de cerveja ! Uma tarde de sábado , espero deitado no sofá da sala , aparelhos de ar no máximo, a visita de um casal que estava de passagem no Dondo , repórteres , diziam . Adormeço, eles chegam , alguém avisa , levanto , abro as portas de vidro, saio para o quintal , eles vinham chegando , poucos metros ali na frente. De repente, sem eu falar uma palavra, desmaio ! Felizmente o visitante é forte, alto , está já ao pé de mim , me agarra na queda , me traz para a sala ! Tinha sido um choque térmico . Pouco tempo depois , recebo na Fábrica a visita de dois representantes de produtos quimicos , um suíço , coordenador internacional, o outro da representada em Luanda . Volta à Fábrica , já é tarde para almoço no Refeitório, ligo para a Tininha , está de saída para o Colégio, posso ir almoçar em casa , o Manuel prepara . Eles são simpáticos, bebemos , comemos e de repente .....o suiço se sente mal, desmaia ! Fica claramente mal , levo-o para a cama do quarto de visitas, chamo o médico – estresse de viagem ,complicações estomacais , tudo agravado pelo calor daquele Dondo !
Estava então no tempo de ter férias . Os Filhos tinham passado na Escola , para o próximo ano escolar , outubro, o João António já iria para o Colégio , o mesmo em que a Tininha dava aulas.
O DS chegava, as primeiras informações são sobre aquelas bombas submersas, na Heineken o VR tinha confirmado todas as instruções , mandava – as de novo , bem detalhadas , tinha visitado a fábrica do fornecedor, não cabiam quaisquer dúvidas. Eu analizo, decido que tínhamos de aumentar o estoque de motores, o mais rápido possível , a manutenção não ia dar certo ! Coloco encomenda urgente, por avião .
Durante as minhas férias , a Heineken queria a minha substituição por um técnico português que trabalhava em Kinghasa , o chefe daquele Sr. E que tinha vindo para a posta em marcha . Ele chegava , podia então ir de férias, aquele Taunus estava à minha espera em Lisboa .
Lisboa em agosto sempre era festiva ! O Sol , as férias escolares, os turistas que vinham de todo o Mundo, enchiam as praias e as ruas comerciais do centro da cidade , a Avenida da Liberdade , os Restauradores, o Rossio . Os meus Pais já não moravam naquele casarão da minha janela para os carros elétricos e para os pregões da rua, tinham feito acordo com os proprietários , recebido dinheiro para saírem – o aluguel era insignificante – e com ele compraram um apartamento na Póvoa de Santo Adrião, freguesia do Concelho de Odivelas , próxima a Lisboa . O carro continuava o mesmo , preservado , proibido para peso maior do que o de dois passageiros !

« Portugal era um País em adiantada fase de integração na comunidade dos países democráticos. Mau grado a persistência de um regime não democrático, os sinais de mudança estavam em todos os setores da vida portuguesa, tão expressivos e imparáveis que determinariam uma ruptura a breve trecho. Importa lembrar que Portugal era membro de pleno direito da OTAN e da EFTA e acabara de assinar a candidatura de adesão à CEE, requisitos fundamentais para o reconhecimento como parceiro ocidental.
Com uma economia quase liberta da interferência estatal – há muito que o condicionamento e o dirigismo se haviam diluído ante a pujante iniciativa do investimento privado, nacional como internacional – Portugal era uma país capitalista, na orla da Europa do Sul em rápido desenvolvimento. Em 1973 , a prestigiosa Time Magazine acenava com a iminência de um "milagre económico português". Quais eram os indicadores de tal milagre ? Taxas de crescimento anual nunca inferiores a 7%, surgimento de indústrias metalomecânica e petroquímica de relevo, sucesso da indústria pesada portuguesa - sobretudo de construção naval - forte movimento acionista, grande investimento estrangeiro, com fixação das principais multinacionais em Portugal, consolidação de uma classe média empresarial não dependente do Estado e mudança acelerada do perfil da população: escolarização, diversificação das competências técnicas e científicas, proliferação de universidades e institutos superiores.
Tudo isso se sentia na vida social, nos hábitos e modas, no gosto de viajar, nas atividades lúdicas e na descompressão que se ia instalando. Portugal era, em 1973, um País muito estimado pelos turistas e pelos investidores, mas também pela elite européia. Em 1973, acolheu o maior número de seminários e congressos profissionais realizados em solo europeu, atestando o crescente interesse por este País que, sendo uma ditadura branda, era encarado com quase benévola transigência pelos seus parceiros europeus »

O Ford Taunus já estava na alfândega em Lisboa, tão cheio de massa protetora que era irreconhecível ! Mas depois de lavado - que lindo ! Branco, interior em couro preto, motor 1700 , pedia para conhecer as estradas da Europa – íamos começar por acampar com todos os Filhos na Praia de Dona Ana, Lagos, onde tínhamos estado também acampados , eu e a Tininha, antes de irmos para Louvain. Duas barracas , uma pequena para o João e o Pedro , comprada , outra grande , dois quartos, para nós e para as Filhas, emprestada pelo casal amigo dos meus Sogros, aí estamos naquela cidade magnífica, um bom parque de campismo , cheio de turistas que vinham principalmente da França e da Alemanha , alguns espanhóis e portugueses. A praia é um sonho , águas claras , batendo nas rochas que se apresentam a poucos metros da areia, só um pouco frias para quem vinha do Dondo , não que assustasse os Filhos, principalmente a Olga que não quer sair da água, mais a Paula que sempre foge dela . A cidade é muito bem dotada de restaurantes, bares, cafés , o próprio parque de campismo tem um clube com piscina e restaurante onde passamos as tardes . Depois de dois anos em Angola, das dificuldades iniciais de adaptação , das contingências passadas na Fábrica, o poder esquecer de tudo no deslumbramento do mar , na alegria saudável dos Filhos e com aquele delicioso vinho de Lagos, vinha como um bálsamo recompensador .

No regresso a Pombal íamos passar por Tróia, um pouco de descanso , não fora a presença da piscina chamando os Filhos e de uma torre de dez metros de altura da qual o João , primeiro , e depois a Olga , teimaram em querer saltar , para susto das pessoas por ali .

Os caracóis sempre estavam na minha imaginação de lazer – agora todos os Filhos me ajudavam , o Pedro mais novo já tinha 5 anos, os terrenos em torno da Fábrica em Pombal estavam cheios nesse ano. A cozinha ficava mais bagunçada , as crianças queriam todas participar , até os caracóis chegarem na mesa e aí a Paula abandonar a brincadeira – experiências novas não a motivavam ! - e o Pedro também não participar muito. Sobravam mais caracóis !

Nas minhas viagens pela Europa estava ficando um sonho ainda não realizado - conhecer a Itália, principalmente Roma , que traduzia um apelo irresistível por estar nas origens da civilização européia e assim fazer parte de todos os meus livros de História . O Coliseu , a Via Appia , depois as Catacumbas , enchiam esses livros !

Fomos então , os Filhos ficavam com os Avós ! Direção de Elvas, « Rainha da Fronteira » em razão da sua praça - forte , 15 Km até Badajoz, espanhola . Daí , cerca de 400 Km até Madrid , onde paramos em hotel nas proximidades da cidade , para jantar e dormir, depois mais 650 até Barcelona , outra parada . O Sol de Verão faz a viagem pelo interior de Espanha ser difícil , cansativa, o ar muito quente seca as gargantas, os corpos transpiram , mas estávamos agora na Costa Brava, Mar Mediterrâneo .

Barcelona é encantadora, de um movimento alegre, jovial, permanente, na Plaza Cataluña , na La Rambla , pelo Barrio Gotico , magnífico passeio da manhã , apetite para o almoço.
La Rambla sai da Plaza Cataluña , centro nevrálgico da cidade , até ao porto antigo ; cheia de gente que se movimenta ao longo dela e nas ruas laterais, entre os quiosques de jornais, flores e pássaros, cafés, restaurantes , atores de rua, pintores , passando pelo Palacio de la Virraina , o mercado de La Boquería, o Teatro de El Liceo , entrando na Plaza Real de palmeiras e arcadas que abrigam uma multiplicidade de cervejarias e restaurantes, de bancadas de colecionadores de selos e de moedas. Almoçamos por ali , pequeno restaurante de mesas encostadas na parede, uns mexilhões deliciosos.

Saímos de Barcelona para o Norte, Gerona, ao longo da costa de belas praias, abarrotadas de turistas ; a estrada ao nosso lado , sentido contrário , para o Sul de Espanha – a Costa Dourada – só mostrava carros parados, longas filas de franceses e alemães que queriam ter o seu agosto. Pensamos que no regresso seria melhor fugir daquela estrada !
Entramos em França, Perpignan , nos Pirinéus orientais, a estrada de retorno está ainda mais cheia , nós estamos indo na contramão de toda a Europa !
Vamos para Montpellier , Marseille, Cannes , Monte Carlo .
Passamos na estrada que segue os cumes da cordilheira, as cidades estão lá em baixo , banhadas pelo mar azul do Mediterrâneo , límpido, cruzado de iates de todos os tamanhos , marinas, magníficas vivendas e hoteis pontilhando nas encostas, às vezes escondidos em recônditos nas praias, é o Sul da Europa dos priviligeados, dos nobres, das estrelas de cinema e do seu mundo de beleza e fantasia . O Mar é um atrativo, apetece descer, entrar nas sumptuosas localidades que avistamos, fazer parte ao menos por instantes daquelas élites. Mas o nosso destino é a Itália , chegar a Roma, vamos para a fronteira , o Túnel Monte Bianco, 11600 metros, que atravessa a mais alta montanha da Europa Ocidental ( 4800 metros, de histórica polémica entre franceses e italianos , os dois Países o incorporam ao seu territorio ! ) .
Sempre ao longo da costa , chegamos a Génova, é noite , paramos ,cansados , mas com os olhos repletos dos amplos e belos panoramas que se avistam na passagem da estrada pelo alto daquelas magníficas regiões turísticas .

Génova é um importante porto do Mediterrâneo, centro industrial . Aqui provavelmente nasceu o Jeans , primeiro usado por marinheiros genoveses .

« A raiz da palavra jeans foi notada pela primeira vez em 1567 como Genoese ou Genes, um termo usado na descrição das calças dos marinheiros da cidade de Gênova/Itália. Os rebites de reforço foram patenteados em 1873 por Levi Strauss e Jacob Davis. Tachinhas de cobre foram utilizadas para dar uma maior resistência aos bolsos que não estavam resistindo aos pesos colocados neles. Os pontos críticos das calças foram reforçados, tornando-as mais duráveis.
No auge da corrida do ouro e conquista do oeste americano, por volta de 1850, muitos comerciantes aproveitavam para vender os produtos usados na mineração e exploração, como ferramentas, mantimentos, roupas e lonas.
A lona era o produto mais lucrativo e logo todos passaram a comercializá-la.
Foi aí que Levi Strauss, um mercadante com um grande estoque de lonas,sem conseguir vendê-las procurou outra aplicação para o produto.
Ele observou que devido à grande exigência física no trabalho das minas, os mineradores tinham que substituir freqüentemente as roupas utilizadas, e isso lhes custava caro.
No início foi tudo uma experiência. Levi Strauss confeccionou duas ou três peças reforçadas com a lona que possuía, deu-as aos mineradores e o sucesso foi imediato. Altamente resistente, as peças não estragaram com facilidade.

Estava criado o Jeanswear , o estilo reforçado de confecção, o qual foi originalmente destinado a roupas de trabalho.

A partir de então, cada vez mais os trabalhadores utilizavam o jeans para exercer suas tarefas mais árduas e de exigência física. Entretanto, o jeans só passou a ser utilizado no dia-a-dia, já no século XX.
Com o surgimento no cinema, encabeçado por James Dean e Marlon Brando, a roupa começou a associar-se ao conceito de juventude rebelde, conquistando este público.
Cawboys do asfalto com suas Harley-Davidsons aterrorizavam a Califórnia. Elvis Presley em 1957 já usava seu jeans, e desde então rock e jeans são inseparáveis.
Novas modelos como Marilyn Monroe e Jayne Mansfield também usavam jeans apertado para mostrar como uma trabalhadora tradicional poderia ser sexy.
Há o aparecimento do movimento hippie e eles adoravam o jeans, pois não era caro e era funcional. Jaquetas e calças jeans viraram febre para uma juventude independente que se reunia e celebrava seu estilo de vida em festivais de rock como Woodstock e Monterey .
O jeans só chegou a conquistar o restante da população após a proliferação social do seu conceito como roupa despojada e do cotidiano, sem perder seu charme e elegância. Consagravam-se os gigantes do Jeans, como Levi´s , Lee e Mustang »

Maior porto da Itália, local por onde passaram os imigrantes italianos que foram "fazer a América" no Século XIX , Génova se projetou já no Século XII, vencendo os piratas sarracenos que agiam na costa da Ligúria.
Mas a cidade moldou sua identidade ao se tornar uma república independente, alcunhada "La Superba" , controlando o comércio em locais como Argélia e Síria.
Nessa época, quando os mercadores locais fizeram fama e fortuna atuando seja em Bizâncio ou em Bruges , Génova rivalizou até com Veneza, então chamada de "La Serenissima".
Cristóvão Colombo, o navegador que sem saber descobriu a América em 1492, a soldo dos Reis de Espanha, deve ter nascido aqui, numa casa localizada na Porta Soprana, antigo portão leste da cidade, na Piazza Dante .
Subimos pelos becos que convergiam até ao Porto ,em direção à Piazza de Ferrari , até ao Duomo , Catedral do século XIII . Atrás da fachada monumental e algo espartana, ornamentada por listas de mármore cinza e rosado, se escondia a Capela dedicada a São João Batista, Padroeiro da cidade.
Deixando os becos que levavam ao Porto , já no alto, passando pela Piazza de Ferrari , chegamos ao Palazzo Ducale, antiga casa dos doges genoveses, que funcionava como centro cultural, abrigando pátios internos emoldurados por arcadas.
A partir daqui a cidade ganhava ares de metrópole , na Via 20 Settembre , onde as lojas estavam protegidas por galerias . Na Via Garibaldi, localizavam-se os palácios que foram erguidos pelas famílias que controlaram a cidade, como os Doria, os Grimaldi, os Spinola e os Di Negro.

Rivalizando com os pescados, as massas com molho pesto, feito de manjericão, queijo pecorino (de cabra) e pinólis, são a especialidade regional.
A Tininha começava a engordar !

Saímos dali em direção de Portofino , depois para Pisa , por estrada que acompanhava o litoral.

Portofino a 35 Km de Génova era uma pequena baía de uma beleza surpreendente ! Uma muito pequena praia de pescadores, cercada por casas coloridas, aristocráticas, estilo genovês , algumas construídas diretamente sobre o mar de azul esverdeado , que se preenche de barcos , iates ; subindo da praia , cafés , restaurantes , a maioria de luxo , requintados ; as encostas são cobertas de pinheiros , de oliveiras , de uma enorme variedade de arbustos . Tudo parecia transplantado da tela de um pintor !

As placas na direção de Pisa nos levaram diretamente até à Piazza del Duomo , a Praça dos Milagres , com os seus monumentos que lembravam a grandeza histórica da cidade , obras de três séculos de artistas , ressaltadas pelo azul claro do céu e o brilho intenso do Sol, uma multidão de turistas em torno . Estava ali a Torre Inclinada , um dos monumentos mais famosos do Mundo , com os seus 8 andares, 6 deles com arcadas em mármore, uma inclinação de 5 graus , 58,5 metros de altura ! Ressaltando a sua beleza, e não menos fantásticos, na sua frente a Catedral como um grande navio pousado num tapete de grama e o Batistério , cilíndrico e projetado para os céus, da mesma altura da Torre , para trás, o Camposanto , Cemitério, com terra santa trazida do Gólgota pelas naus das Cruzadas.

Pisa estava no estuário do Rio Arno, há vinte séculos apenas a 4Km do mar, o que fazia dela um dos mais importantes portos romanos, rivalizando com o Porto de Ostia, perto de Roma . Com a contínua deposição de sedimentos arrastados pelo Rio, Pisa estava agora a 17 Km do Mar !

Terá sido no Porto de Pisa que São Pedro desembarcou para pregar o Evangelho, seguindo depois para Roma.

A construção da Torre em terreno que anteriormente era o estuário, explicaria a sua inclinação – iniciada em 1174 para abrigar o sino da catedral da cidade , notou-se uma ligeira inclinação quando se concluía o 3º andar ; em razão disso, os outros andares foram construídos um pouco maiores do lado mais baixo, só que a estrutura ainda mais afundou em razão do peso. Por uma escadaria interior de 284 degraus, atingia-se a Sala do Sino , onde Galileu Galilei ( « Eppur si muove ! » Contudo ela se move ! ) fez as suas experiências da gravidade - infelizmente o acesso estava proibido ao público por razões de segurança .

Tirar fotografias tendo no fundo a inclinação da Torre era obrigatório ! Correr aquelas lojinhas de comércio que esperavam os turistas , também ! Passando pela vitrine de uma delas, deparamos com um belo jogo de xadrez , mesa em mármore , peças metálicas . O preço em liras, muitos milhares, parecia caríssimo . Um pouco à frente, contas melhores feitas, não , o preço era excelente - voltamos à loja para comprar.

De Pisa para Roma , sempre pela costa , admirando aquele esplendoroso Mar Tirreno que separava a Itália da Córsega e mais abaixo da Sardenha e da Sicília . Todos os caminhos levam a Roma ! E nós aí estávamos entrando, quase noite, sem mapa para nos orientarmos, um trânsito pesado, desordenado , de italianos apressados, não muito dispostos a entender as dificuldades de um turista . Seguimos os grandes volumes de trânsito, deviam ir para o centro da cidade ! A noite já caía , o movimento ficava mais aloucado, os carros não obedeciam à sinalização, entravam na contramão, meu Deus ! tinha carro andando em sentido contrário na Praça !
Corro para procurar um hotel , me livrar do carro !, estou próximo da Estação Central , de trens - paro na Via Gioberti , tem um pequeno Hotel, simpático, ficamos aqui, não ando mais de carro em Roma !

Estávamos na Cidade Eterna , na origem da civilização ocidental , primeira forma do português falado, uma mistura de séculos de história , uma cidade em que tudo remetia ao passado de glórias da antiga capital do Mundo. Mas também uma metrópole pulsando de frenético movimento , de uma alegria contagiante, de beleza exteriorizada das pessoas, de arte moderna , de moda , e de uma culinária excitante. Essa culinária era o que podíamos descobrir naquela primeira noite em Roma , e também a alegria da cidade em qualquer pequeno grupo de pessoas cantando em mesa de bar ou nas escadarias de qualquer praça , vivenciada por turistas que pululavam por todo o lado .

Decidimos que em Roma só andaríamos a pé, com o auxilio dos táxis, o trânsito era por demais perturbador , melhor deixar o carro em segurança no Hotel . Com a câmara de filmar na mão, muitos filmes super 8 para gastar, o desejo de absorver toda a história que estava presente em cada pedaço da cidade , saímos pela manhã , cedo , aqui o café da manhã não convidava ao relaxamento como em Paris , não tinha os magníficos croissants. Mas tinha a algazarra dos italianos, o falar e rir alto , a alegria que se manifestava logo cedo !

Saímos do Hotel , passando pela Estação de Trem , Estação Termini , que tinha sido a nossa referência e chegamos na Piazza dei Cinquecento , denominada assim em homenagem ao massacre de 500 soldados italianos em Dogali , na Abissínia . Um obelisco em pedra de granito vermelho recorda o triste episódio , meio escondido por uma série de edículas com lojas de velhos livros, talvez raras edições a baixo custo . Antes da homenagem aos caídos de guerra, a praça era denominada de Piazza Termini , nome derivado da vizinha Termas de Diocleziano, as maiores construídas em Roma e cujas ruínas emolduram a Praça .
À esquerda tinhamos a Piazza Esedra ou Piazza della Repubblica, de colunato semi-circular, com uma fonte monumental , a Fontana delle Naiadi . Dessa praça saía a elegantíssima Via Nazionale , que lá para o fundo terminava na Piazza Venezia . Seguindo pela Via Nazionale passamos pelo Teatro dell´Opera , entramos à esquerda pela Via dei Serpenti , estreita e longa , de cafés e restaurantes - e estavamos defronte do Coliseu , ícone da Itália e o mais famoso e antigo monumento de Roma ! Construído pelo Imperador Vespasiano e inaugurado no ano 80 DC , a sua forma elíptica de 188 metros de comprimento e 156 de largura impressionava ! As cenas de « Quo Vadis » vêm na memória, as lutas ferozes dos gladiadores , os leões , os cristãos . É uma referência da Humanidade , um ponto de reflexão na sua História , estar ali dentro , agora olhando para aquelas ruinas esventradas dos compartimentos debaixo da arena , traduzia uma sensação de humildade e de indefectível respeito pelo Passado.

Roma foi fundada por Rómulo e seu irmão Remo , em 753 AC e se tornou uma República em 509 AC ( tradição ?! ) . Após ter amplo domínio da Península Itálica , os romanos foram em busca de outros territórios - com um exército bem preparado venceram os cartagineses nas Guerras Púnicas ( Século III AC ) e garantiram a supremacia no Mar Mediterrâneo , que chamaram de Mare Nostrum . A seguir , Roma ampliou as suas fronteiras , dominando a Grécia, o Egito, a Macedônia, a Gália, a Germânia, a Trácia, a Síria, a Palestina , a Península Ibérica .
Com as conquistas, a vida e a estrutura de Roma passaram por significativas mudanças. O Império Romano passou a ser muito mais comercial que agrário, os povos conquistados foram escravizados ou passaram a pagar impostos para o Império , Roma enriqueceu .
Com o crescimento urbano vieram também os problemas sociais para Roma . A escravidão gerou muito desemprego na área rural e uma massa de desempregados migrou para a cidade – é criada a politica do Pão e Circo, lutas de gladiadores no Coliseu, onde eram distribuidos alimentos.
No Século II , a cidade chegou a ter 45.000 casas , 1.600.000 habitantes - era a capital de um vasto Império em volta do Mar Mediterrâneo.
Por volta do Século III o Império Romano passa por enorme crise econômica e politica. A corrupção no governo e os gastos com luxo retiraram recursos para o investimento no exército romano . Com o fim das conquistas territoriais, diminuíu o número de escravos, provocando uma queda na produção agrícola , caiu também o pagamento de tributos originados das províncias . Em crise e com o exército enfranquecido, as fronteiras ficavam desprotegidas , os povos germânicos forçavam a penetração pelas fronteiras do Norte do Império.
A partir de meados do Século III, com o começo das migrações dos povos bárbaros para o interior das fronteiras do Império e com a invasão da cidade por várias vezes , registou-se um fluxo de habitantes da cidade para o campo .
Com o fortalecimento do Cristianismo na cidade , o Bispo de Roma – depois Papa - tornou-se a maior autoridade religiosa na Europa Ocidental .
No ano de 395 , o Imperador Teodósio divide o Império em dois : Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla .
Quando o Império entrou em colapso ao final do Século V, havia pouco mais de 50.000 habitantes restando na cidade de Roma.
Com Giuseppe Garibaldi, Roma passaria em 1871 a ser a capital da nova Itália ; em 1929 , Benito Mussolini estabeleceria o Estado independente do Vaticano , 0,44Km² de área cedida da cidade ao Papado.

Daquele passado milenar , Roma estava cheia de remanescências , tinha acumulado inúmeros e notáveis tesouros de arte e um património arqueológico sem igual no resto do Mundo .

Já no Século VI AC , sob influência etrusca , foram realizadas grandes obras públicas – o Templo de Júpiter, no Capitólio , o santuário arcaico da área de San Omobono e a construção da Cloaca Máxima , um dos primeiros sistemas de esgotos alguma vez construídos.
Durante a Invasão Gálica , final do Século IV AC, foi construída uma grande cinta muralhada , da qual ainda se conservam algumas partes. A cidade seria então rapidamente reconstruída , o que se terá traduzido pelo aspeto urbanístico desorganizado.
Na Idade Republicana, assiste-se à construção de vários edifícios públicos e templos, sobretudo na área do Fórum Romano , e criam-se as primeiras estradas consulares , as pontes sobre o Rio Tibre e os primeiros aquedutos.
Seria apenas a partir do Século II AC que se efetuariam as primeiras transformações monumentais, inseridas num plano urbanístico coerente . Pela primeira vez foi aplicada a técnica edificadora do cementizio , um material característico das construções da Roma Antiga , que dotou a arquitetura romana com um desenvolvimento particular e original . É também aí que se iniciou a importação de mármore e a sua utilização como ornamento nos edifícios.
No entanto, o maior desenvolvimento urbanístico deu-se na época imperial - - com Augusto, a cidade foi dividida em 14 regiões e iniciam – se novos grandes projetos urbanísticos ao lado da praça do Fórum Romano ; o processo de monumentalização da cidade continuou com os sucessores de Augusto, até ao grande incêndio durante o reinado de Nero – 64 DC – que quase destruíu a cidade inteira. Para favorecer uma reconstrução ordenada e corrigir as condições que permitiram o alastrar do incêndio, foi criado um novo plano regulamentar.
Após a morte de Nero , foram construídas as Termas de Tito, o Coliseu , o Arco de Tito, o Templo da Paz, o Estádio de Domiciano, o Palácio Imperial no Palatino , o Forum de Trajano, o Panteão, o Castelo de Santo Ângelo .
No Século III foi erigida a Muralha Aureliana, posteriormente reforçada ; a partir de Constantino I deu-se início à construção das primeiras grandes igrejas cristãs , as Basílicas de São João de Latrão, de Santa Cruz de Jerusalém , Santa Maria Maior , São Paulo Fora de Muros .

« Ave, Caesar , Morituri te salutant » , Avé César, os que vão morrer te saudam ! com que angústia esta frase se espalharia pelas arquibancadas do Coliseu , com que avidez de cenas sangrentas , de morte , aqueles 60.000 romanos ali reunidos , esfomeados e desesperados, a escutariam ? A glória de Roma estava ali demonstrada no absurdo da natureza humana, capaz dos extremos da mais magnificente obra prima da arquitetura e da presença divertida ao espetáculo inglório da morte provocada .

Na saída do Coliseu se encontra a Via Sacra, um caminho de procissão levando ao Fórum Romano , e o cruzando , um conjunto de ruínas do que foi o principal centro de comércio na Roma Imperial , lojas , praças de mercado e de reunião estão ali apenas em alguns restos magníficos de mármore .

« Ao princípio - no século VI AC - o Fórum Romano funcionava como mercado mas , passado pouco tempo, erigiram-se aí lugares de culto. Um dos primeiros foi o templo de Vesta, onde ardia perenemente o fogo sagrado em honra da divindade local. Ao lado estava a Regia, o palácio real que, segundo a lenda, foi construído por Numa, segundo rei de Roma.
Com a República aumentou a atividade política e o Foro foi-se enchendo de construções destinadas ao governo e à administração. Ainda hoje se conserva em bom estado o da Cúria, onde o Senado deliberava. Em contrapartida resta muito pouco do Comitium, a praça circular onde se reuniam as assembléias para eleger os magistrados. Também são escassos os restos da tribuna dos rostra ou paredões – de onde se discursava para o povo. Os episódios mais cruciais da história de Roma durante a República tiveram lugar nesta zona do Foro: os discursos dos Gracos para melhorar a situação da plebe; a polêmica entre Mário e Silas; as diatribes de Cícero contra Catilina ; a decisão do Senado exigindo a Júlio César que abandonasse o comando militar, ordem a que este desobedeceu cruzando o Rubicão e conquistando a Urbe; e ainda a concessão do título de Augusto a Octávio em 29 AC .
Nova mudança de regime trouxe consigo ampliações e melhoramentos dos fóruns , cada vez mais espetaculares . Junto do antigo Fórum Romano, foram surgindo os chamados Foros Imperiais, construídos por César Augusto, Trajano, Nerva e Vespasiano. Tudo era espantoso nesses espaços públicos: as ruas amplas tinham pavimento de mármore travertino, sucedia o mesmo com as praças, que costumavam estar presididas por enormes estátuas; nos edifícios o brilho dos bronzes alternava com os tons cinzentos, brancos e ocres dos mármores.
Entre estas últimas, distinguiam-se pela sua elegância as basílicas, onde se celebravam os julgamentos e se realizavam transações comerciais. O seu interior era muito amplo, com o espaço distribuído em naves separadas por colunas. No exterior havia pórticos laterais sob os quais se distribuíam, em fila, numerosas bancas que vendiam todo o tipo de produtos. Os restos da basílica de Maxêncio e a de Constantino dão uma ideia das enormes dimensões que chegavam a atingir estes edifícios. .
Os monumentos comemorativos e as estátuas que ornamentavam os foros, não tinham, em contrapartida, nenhuma finalidade prática, ao menos imediata. Os mais vistosos eram as colunas, como a de Trajano, e os arcos de triunfo, como os de Tito, Septímio Severo, Constantino . Em relevos lavrados, representavam-se graficamente as campanhas militares vitoriosas, para deixar memória para os séculos vindouros dos momentos de glória protagonizados por cada imperador que desfilava também com as suas tropas pela Via Sacra, entre aplausos e aclamações do povo »

O Fórum Romano localiza-se numa das encostas do Palatino , uma das 7 colinas de Roma , 70 metros de altura , onde se encontram os resquícios mais antigos de Roma – aí Rómulo e Remo teriam sido criados por uma loba ( lenda ? ) - e , para o outro lada da encosta , descobríamos o Circo Massimo , apenas as ruínas – o gramado ! - de um exuberante estádio de 621 por 118 metros , que acomodava 250.000 pessoas apaixonadas pelas corridas de quadrigas e onde a maioria dos cristãos terá sido morta .

Caminhando pelo Circo Massimo , deparamos em um dos extremos com a Piazza della Bocca della Veritá e a Igreja Santa Maria in Cosmedin , às margens do Rio Tibre ( Tevere ), fundada no Século VI sobre as ruinas de um antigo edifício , exterior simples em tijolo, com um vestibulo de dois andares e um alto campanário, escondendo um interior riquissimo , a um canto a famosa Bocca della Veritá , máscara de Tritão feita em mármore com a boca aberta – a quem a lenda medieval atribui o poder de morder os dedos da mão de um mentiroso que ouse inseri-la na sua boca !

No Tibre, ligada à cidade pela Ponte Fabricio , para pedestres , a Ilha Tiberina , em forma de barco , única ilha desse rio , dedicada a Esculápio, deus grego da Medicina .

Seguindo pela Via del Teatro di Marcello , mais um belissimo local arqueológico, chegavamos à Piazza Venezia , no sopé da colina do Capitólio , a mais famosa colina de Roma ( Monte Capitolino , Campidoglio ) . Era o centro do tráfego urbano, retangular , a seu lado o imponente Vittoriano , o monumento nacional a Vítor Emanuel II, de um branco imaculado contrastando com o branco sujo das ruinas. No lado ocidental, a fachada do Palazzo Venezia, a primeira obra da Renascença em Roma , agora um museu, onde das suas varandas Benito Mussolini fazia os seus discursos nos anos do fascismo .
À direita , uma escadaria conduzindo à Piazza do Capitolio , trapezoidal, pavimento em mármore branco . Projetada na forma atual por Miguel Ângelo, tinha no centro uma estátua equestre do Imperador Marco Aurélio , por três lados era circundada por palácios renacentistas e na frente uma grande escadaria , a Cordonatta, tendo no alto duas grandes estátuas – Castor e Pólux , filhos gémeos de deuses da Mitologia Grega .
A Piazza Venezia é o epicentro da cidade e um cruzamento de ruas que se estendem pelos quatro pontos cardeais : Via del Corso, Corso Vittorio Emanuele, Via dei Fori Imperialli e a Via Nazionale.

À imponência deste conjunto se contrapunha a visão, lá em baixo , das ruinas do Fórum Romano, no cair da tarde de luz avermelhada , um deslumbrante olhar sobre a História , que nos convidava a um descanso em alguma das tantas Trattorias e Bistros do centro da cidade , uma parada também para a máquina de filmar e um agrado para outros sentidos .

« A Itália é considerada o berço da cozinha ocidental por ter sido palco de dois grandes episódios da nossa história : o Império Romano e o Renascimento.
O intenso comércio de alimentos na região durante o Império, centrado no suntuoso mercado circular da cidade de Roma, fez transitar pelo local caravanas recheadas de alimentos vindos de toda a Europa, África e Oriente : cereais, pão, vinho, azeitona, legumes e frutas secas e frescas, amêndoas, nozes, avelãs, pinhões, leite, queijo, ovo, arroz, especiarias, massa seca, porco, carneiro, faisão, galinha, avestruz, peixes, moréia, moluscos, lebre, javali e antílope.
A conquista de Sicília, Sardenha e Córsega levou o gosto pela abundância e pelo luxo dos gregos para as cozinhas e os salões italianos, onde passa a imperar a gula, saciada pelo excesso de carnes regadas a molhos concentrados, especiarias e ervas aromáticas, acompanhadas de muito pão e vinho.
Por sua vez, o Renascimento trouxe novo brilho às artes e à gastronomia local. Entre os séculos XIV e XVI , cidades como Veneza e Florença se converteram em centros de refinamento cultural e artístico. Foi nessa época que os banquetes e os exageros da Idade Média cederam lugar ao requinte, à sobriedade e à moderação da nova corte européia. Surgia a alta gastronomia, que prezava a moderação no cozimento e no uso de especiarias, assim como os bons modos à mesa.
Os italianos dispensam preparos sofisticados, valorizam o sabor e o perfume natural dos ingredientes de suas terras, considerados alguns dos melhores da Europa e complementam com molho e tempero. À mesa, os melhores momentos são oferecidos pelas pastas, peixes, frutos do mar e cortes especiais de carne, como o ossobuco e o escalope de vitela. Estes pratos são preparados com azeite de oliva e recebem generosas doses de ervas frescas, como alecrim, estragão, salsa, sálvia, tomilho, manjerona, orégano, manjericão e folhas de louro. São também amplamente utilizados na cozinha italiana alho, cebola, atum, presunto, bottarga, funghi porcini, anchova, mussarela de búfala, tomate e alcaparra. Como complemento , estão sempre presentes pães e excelentes vinhos produzidos no país »

A Tininha vinha engordando , demasiado apreciadora das pastas e queijos que nos perseguiam ! Além dos excelentes vinhos !

Outra manhã , sempre a pé, agora passando pela Piazza Esedra , seguindo a Via Barberini até à Piazza Barberini , com a Fontana del Tritone de quatro golfinhos suportando duas conchas , nelas Tristão jorrava água de um vaso seguro nas suas mãos, e alcançando a Via Vittorio Veneto . Estava no mais famoso ponto moderno de Roma , o seu mundano centro comercial imortalizado na « Dolce Vita » de Fellini, das belíssimas mulheres nos seus casacos de peles, dos deslumbrantes carros que passavam com grupos alegres de jovens , mulheres se exibindo , chamando a atenção , poucas roupas , às vezes nenhumas ! Das grandes lojas de costureiros de griffe , das Embaixadas e cafés famosos – Café de Paris - , do Palazzo Margherita até à Porta Pinciana , na Muralha Aureliana , construída para defesa das invasões bárbaras .

Da Piazza Barberini em direção ao Tibre , pela Via Sistina , encontrávamos a Igreja de Trinità dei Monti , com uma escadaria monumental em três seções conduzindo, em baixo, à Piazza di Spagna , com uma fonte em forma de barco , La Barcaccia . Este local era o centro de reunião dos turistas , um dos mais deslumbrantes de Roma ; daqui saíam ruas famosas, a Via dei Condotti , de boutiques de griffe, a Via Margutta , de artistas, e a Via del Babuíno até à Piazza del Popolo , antiga entrada na cidade pela Porta Flaminia , um arco romano ornado pela parte de fora por antigas colunas e as imagens de São Pedro e São Paulo , ao lado a Igreja de Santa Maria del Popolo - local onde Nero morreu e foi sepultado.
A praça é um vasto local de reunião de pedestres , saindo dela o Tridente – três antigas estradas que adentravam a cidade , a Via del Babuíno, por onde chegamos, e a Via Ripetta , que levava à Piazza Navona e ao Panthéon , e a Via Del Corso , caminho para a Piazza Venezia, com as lojas mais caras de Roma.

A Piazza Navona tinha sido local de corridas de carros, com um lado direito e o outro curvo, forma longa e retangular, 240 por 65 metros ; nela, um trio de fontes monumentais – a Fontana dei Quattro Fiumi ( central, representando os quatro Continentes , atravessados pelos seu maiores Rios como eram então conhecidos ) , a Fontana del Nettuno e a Fontana del Moro. É um local de intenso movimento, alegre, divertido, com artistas de rua, pintores, artesanato, elegantes cafés ao longo das imensas arcadas.

Na direção do Tibre, atravessamos a Ponte Garibaldi , passamos para o outro lado , para o Trastevere , bairro judeu.

« Roupas penduradas nas vielas entre um prédio e outro, pessoas conversando aos berros pelas janelas, ruas estreitas que mais parecem labirintos, lambretas que insistem em trafegar em velocidade maior do que a permitida...

Essa parte da cidade abriga algumas das cenas mais tipicamente romanas sem fazer com que elas pareçam artificiais. Tudo isso misturado a ótimos restaurantes, bares, pubs e lojas de roupas e de decoração.

Não é a toa que os habitantes desse bairro se consideram os verdadeiros romanos.

Lá está a principal sinagoga de Roma, tendo ao lado o Museu da História dos Judeus Italianos. Essa é uma das mais grandiosas e charmosas sinagogas de toda a Europa, podendo mesmo ser confundida com um teatro de ópera.

É em suas ruas que está localizada uma das mais antigas e belas igrejas de Roma: a Basílica de Santa Maria in Trastevere. Segundo a lenda, no ano de 38 a.C. brotou no local uma fonte de azeite, fenômeno que foi interpretado pelos habitantes locais como um sinal de que Cristo estava por vir. Alguns anos depois os fiéis resolveram construir a igreja.

É na praça de mesmo nome que, nas noites mais quentes, principalmente na quinta, na sexta e no sábado, os freqüentadores do bairro se reúnem para beber, conversar ou assistir aos artistas de rua que se apresentam no local.

Como se fosse o centro nervoso do bairro, ela concentra a agitação que, aos poucos, ao longo da noite, se espalha por toda a região.

Andando por todas as ruas labirínticas encontram-se grupos de pessoas indo e vindo, a procura de um restaurante, um bar, uma boate ou apenas em busca da sensação de estar em Roma ».

« As coisas ficam diferentes quando vistas da margem de Trastevere . No começo a área parece ser normal, mais pitoresca e medieval do que clássica. Aqui os antipasti se proliferam no lugar de cryptoportici, as adegas tomam o lugar dos mausoléus e as ruínas são poucas.

Você pode se sentar ao sol sem se sentir culpado por não ter ido ver aquela última catacumba. Afinal de contas, você está de férias, certo? Trastevere - uma corruptela da trans tiberim, ‘do outro lado do rio Tibre’ – se parece bem com a imagem idílica da ‘típica Roma’ que você tinha em mente antes de vir para a Cidade Eterna: palazzi de cor ocre descascada e telhados beges, adegas onde o vinho branco da casa tem o gosto do néctar dos deuses, e modestas trattorias que servem o que estiver cozinhando em fogo brando na panela da mamma.
Pode parecer mais pobre, mais genuíno e mais apelativo que a outra margem. Na verdade, muitos estrangeiros desenvolvem uma paixão pelo local – os mais ricos a ponto de obterem um pequeno pied-à-terre e uma mesa cativa em algum bar.
Este mesmo fato fez com que os preços subissem e os moradores locais se retirassem do que hoje se pode considerar uma área de aluguéis caros da cidade. Adegas e restaurantes badalados cresceram rapidamente entre açougues, padarias, lojas de lustres e vários outros comércios medievais que ainda existem no térreo das oficinas.
Ainda assim, Trastevere guarda muito de seu charme vulgar. Os moradores que ainda moram aqui têm um charme peculiar, embora outros romanos digam que, desde épocas antigas, os trasteverini tenham um problema de comportamento .
Nos últimos cem anos mais ou menos, desenvolveu-se uma forte segregação no festival Noiantri (‘nós, os outros’), que acontece nas duas últimas semanas de julho, celebrando as características que marcam as diferenças dos trasteverini – sob o ponto de vista deles, superiores aos romanos que moram nas sete colinas do outro lado do rio Tibre.
Estes romanos de verdade – como os trasteverini gostam de se denominar – são orgulhosos e rígidos, notavelmente inteligentes e ágeis. Eles se alegram com um saudável senso de humor e defendem com firmeza seu dialeto da homogeneização e do italiano da TV nacional. Seus poetas favoritos, Trilussa e Bella, combinam esses atributos em divertidos versos burlescos. Os trasteverini clamam descendência da dinastia de escravos, incluindo os marinheiros do século 1 DC. atraídos para a parte de cima do rio, no porto em Ostia, com a promessa de maiores salários como operadores da grande lona que protegia os espectadores do sol no Coliseu. Durante o período imperial, uma grande parte da trans Tiberim era agrícola, com fazendas, vinhedos, chácaras e jardins que existiam para o prazer dos Césares.
Mais tarde, comunidades de comércio sírias e judaicas se estabeleceram nesta área antes de se mudarem, na Idade Média, para a área do Ghetto , do outro lado do rio.
Trastevere era um distrito de trabalhadores na Roma papal e continuou assim até depois da Unificação »

Terceiro dia em Roma , tinha de conhecer o Vaticano, não podia correr o risco de vir a Roma e não conhecer o Papa, pelo menos a casa dele . A pé , de novo, já conhecia a Via Nazionale até ao início da Via del Corso , elegante , exclusiva, aí passando ao lado direito pelo Quirinale , a maior das sete colinas de Roma, com a Fontana di Trevi , a mais célebre das fontes romanas , e o Palazzo del Quirinale , antigo palácio Papal e agora residência oficial do Presidente da Itália .
A Fontana di Trevi , projetada no Século XVIII no ponto final de um aqueduto que abastecia a cidade , simboliza as Deusas da Salubridade e da Abundância , ornada pela figura de Neptuno , com uma grandeza que parece oprimida pelas pequenas dimensões da praça em que se encontra . De rara beleza , exaltação da água como símbolo da Vida, permanecia cheia de turistas que procuravam se beneficiar da lenda da boa sorte e do retorno um dia a Roma, jogando uma moeda para as águas, de costas para a fonte , mão direita sobre o ombro esquerdo .
Jogamos as nossas . Mas eu imaginava Anita Ekberg tomando banho ali , acompanhada do jornalista Marcelo Rubini ! magnífica cena do inesquecível La Dolce Vitta !

Entrando ao lado esquerdo da Via del Corso , passando pelo Palazzo del Parlamento , chegava - se ao Panteon , um edifício consagrado a todas as divindades das religiões antigas e que foi transformado numa igreja cristã no Século VII – é o único monumento do mundo antigo greco-romano que chegou aos nossos dias praticamente intacto , além disso está coberto pela maior cúpula construída na Antiguidade .

« O Panteon é um dos edifícios mais marcantes de todos os tempos - iniciada no ano de 118 DC, a sua construção só terminou no ano 125, e exigiu um formidável sistema de suporte, com fundações de mais de 7 metros de profundidade . Sobre essas fundações, erguem-se, formando um cilindro, as paredes que sustentam a cúpula. Essas paredes possuem em seu interior um complexo sistema de arcos e abóbadas . Além disso, possuem arcos nas aberturas , entre os quais localizam-se os altares, que transmitem os esforços verticais da cúpula a uma série de 8 pilares maciços .
Mas o que realmente impressiona é a cúpula do Panteon, com seus 43,5 m de diâmetro culminando numa abertura de 8 m de diâmetro, que fica a também 43,5 m de altura em relação ao piso. Dessa forma, se a cúpula, que tem a forma de um hemisfério, fosse prolongada até completar uma esfera, esta tocaria o piso. Além disso, a estrutura da cúpula, que na parte interna parece uma espécie de grelha reduzindo o peso da estrutura, também chama bastante a atenção.
A abertura no topo da cúpula, garante iluminação natural ao interior da construção, e faz do Panteon um marco na história da arquitetura ao transpor para o interior das edificações o principal foco de atenção dos construtores. A maioria das estruturas erguidas antes dos romanos eram monumentos para serem apreciados pelo lado externo, internamente eram quase sempre ocupadas por séries de colunas. No Panteon, o efeito conseguido foi justamente o oposto, garantindo um espaço interno de grandes proporções totalmente livre de interferências. Isso só foi possível graças à utilização dos arcos, abóbadas , e principalmente da grande cúpula central.
Tudo isso, foi construído com concreto natural, feito com cimentos pozolânicos , e agregados leves. Através da escolha e combinação desses agregados, os construtores romanos eram capazes de obter concretos menos ou mais densos conforme suas necessidades para cada construção »

No interior do Panteon são conservados os túmulos dos Reis de Itália e o do grande pintor Raphaël .

Continuando até à Via Corso Vitório Emanuele II e por esta para o Tibre, atravessando a Ponte Vittor entrava-se na Via Conciliazione – para a frente , no Vaticano , eu tinha a Praça de São Pedro ( Piazza di San Pietro ) , em frente à Basílica !
A Praça foi desenhada por Bernini no Século XVII , uma das melhores criações de Bernini, que o romancista francês Stendhal chamou « a arte da perfeição ». Quando em 1656 Bernini recebeu o encargo do Papa Alexandre VII de aperfeiçoar a Praça diante da Basílica de São Pedro, esta era enorme, retangular, com piso de terra . Levava ao bairro vizinho do Borgo e não tinha adornos, exceto uma fonte e o obelisco egípcio instalado em 1586 por Domenico Fontana, incluídos na remodelação. Por exigência do Papa, os peregrinos deveriam ser capazes de entrar e olhar o balcão central do qual o Papa dava sua bênção «urbi et orbi» (à cidade e ao mundo) .
Bernini desenhou sua obra-prima imaginando dois espaços abertos conjuntos. O primeiro, a Piazza Obliqua, tem forma de uma elipse rodeada por colunatas (quatro enormes fileiras de altas colunas dóricas) que se abrem como num grande abraço maternal e simbolizam a Igreja Mãe. Há um corredor largo, entre elas, pelas quais passam automóveis, e duas aberturas mais estreitas para pedestres. O pavimento tem pedras brancas que marcam caminho até o obelisco central, montado sobre quatro leões de bronze. Tradicionalmente, o obelisco representa o elo entre a Antiguidade e a Cristandade, pois se diz que as cinzas de César descansam em sua base e uma relíquia da Santa Cruz está escondida no topo. Dos dois lados, há duas fontes em bronze, com bases de granito. O segundo espaço, a Piazza Retta, imediatamente a seguir e bem frontal à Basílica de São Pedro, é um espaço trapezoidal que aumenta ao encostar na Praça, diminuindo assim numa ilusão de ótica a amplitude da fachada. O edifício à direita abriga o Palácio Apostólico, que leva à «Scala Regia», a escadaria cerimonial desenhada por Bernini.
Na Praça , o Papa celebra Missa Pontifícia nas maiores festas da Igreja : 140 estátuas - santos e mártires, papas e fundadores de ordens religiosas - saúdam os peregrinos da balaustrada das colunas . O brasão e as inscrições evocam o Papa Alexandre VII , que encomendou a obra.

« No Século I, funcionava no local o circo de Calígula, um dos mais depravados Césares pagãos. Esse circo servia para corridas de quadrigas e os mais torpes espetáculos. Quantas vezes São Pedro teria fitado com horror aquele local, que exaltava o oposto da cultura e da civilização desejada pelo Divino Mestre!
Sua fé ardente e inabalável fazia-lhe prelibar o dia em que Roma, a capital do mundo, prosternar-se-ia convertida aos pés do Redentor. Mas os fatos pareciam contradizer essa certeza. São Pedro viu aquele circo ser restaurado, engrandecido e enriquecido pelo criminoso imperador Nero. O próprio São Pedro foi ali crucificado no ano 67, de cabeça para abaixo, após Nero desatar em 64 a primeira grande perseguição contra os cristãos.
O corpo do Apóstolo foi depositado num esquálido túmulo ao lado do circo; e os fiéis, nos interstícios das perseguições, o iam venerar. Podemos imaginá-los cheios de fé, iludindo a vigilância da soldadesca e talvez ouvindo os bramidos das multidões no circo, aproximando-se cautelosamente para elevar uma prece naquele túmulo sagrado e revigorar sua certeza no triunfo da Igreja.
Tem-se notícia de um singelo templo erguido sobre o túmulo de São Pedro pelos primeiros cristãos. Nada dele restou, pois em seu lugar, no ano 325, Constantino, à testa de um Império cristianizado, mandou construir uma magnífica basílica em estilo romano, em honra do Príncipe dos Apóstolos. Não se tinham completado três séculos do martírio do Pescador, e ele triunfava no ápice do mundo civilizado, como firmemente acreditara.
Ao longo dos séculos esta basílica constantiniana sofreu sucessivas reformas e acréscimos, e também toda espécie de calamidades. Em 847, os sarracenos a pilharam. Para protegê-la dos maometanos, o Papa Leão IV a rodeou com um muro e torres fortificadas. A área assim protegida foi chamada de Cidade Leonina, que foi o embrião da hodierna Cidade do Vaticano. Em volta da basílica surgiram igrejas e mosteiros. Os Papas construíram um dos seus melhores palácios. No interior, o venerando templo albergava quanto havia de mais precioso ofertado por gerações de peregrinos.
Quando o Papa Martinho V retornou a Roma, encerrando mais de um século de cisma, a velha basílica semi-abandonada ameaçava ruir. Nicolau V quis edificar uma nova, mas faleceu em 1455, tendo completado apenas alguns alicerces.
Era o tempo da Renascença, do inebriamento intemperante pelo retorno aos estilos clássicos greco-romanos e pelas realizações artísticas exuberantes. Desse ponto de vista, críticas fundadas se poderiam fazer ao edifício. O Papa Júlio II confiou o plano da Basílica e a sua execução ao famoso arquiteto Bramante. Júlio II em pessoa, na presença de 35 cardeais, colocou a pedra fundamental há 500 anos, em 18 de abril de 1506.A construção da Basílica durou mais de um século, tendo sido consagrada em 18 de novembro de 1626 por Urbano VIII. Bramante fora sucedido por artistas como Rafael e Michelangelo — este concebeu a majestosa cúpula, que se ergue a 136,50 metros; Maderna é o autor da fachada ; e Bernini, do famoso baldaquino sobre o túmulo do Apóstolo e da conhecida colunata que abraça a praça. Enquanto Lutero e seus asseclas rugiam de ódio, o Papa Paulo V dispôs que a Basílica tivesse forma de cruz latina, para melhor se adequar ao espírito da Contra-Reforma.
Vistas do alto, a Praça e a Basílica formam o desenho de uma chave. Pois, efetivamente, o sucessor de Pedro exerce o poder das chaves: a chave de ouro (o poder supremo na esfera eclesiástica e no tocante à fé e aos costumes) e a chave de prata (o poder indireto sobre a esfera temporal) »

Cinco portas dão acesso ao interior da Basílica , guardadas pelas estátuas equestres de Carloman e Constantino. A última à direita é a Porta Santa, aberta e fechada pelo Papa apenas durante o ano do jubileu. No centro da fachada abre- se o grande salão destinado à benção “urbi et orbi” . No centro da Basilica fica o baldaquino de Bernini, uma enorme abóbada de bronze que sai da parte sagrada da Basílica e o túmulo de São Pedro, localizado embaixo da igreja, no centro do necrotério que guarda os túmulos de vários Papas. Emoldurada pelo baldaquino, aparece a Cattedra Petra, obra de Bernini. Essa cadeira de madeira, banhada em ouro, passa nas mãos de quatro patronos da igreja abaixo da figura da Santa Trindade. Do lado direito da varanda fica a entrada para a cúpula.

A guarita cercada de pilastras guarda relíquias veneradas como o famoso Veronica, um tecido com a imagem gravada de Cristo. Os fabulosos jardins do Vaticano podem ser admirados de lá. Neles, há inúmeras fontes, como a Gelleon e a Eagle e pequenas construções, como por exemplo a Casina di Pio IV, que hospeda a Academia Pontifícia de Ciências, e alguns bosques artificiais.

« São tantas e tais as relíquias e tesouros que encerra a Basílica, que a simples descrição preencheria um livro. Peregrinemos, ao menos espiritualmente, por ela. Beijemos o pé da multissecular estátua de bronze do Apóstolo São Pedro , gasta por incontáveis ósculos dos peregrinos; ajoelhemo-nos piedosamente diante do Altar da Confissão, sobre o túmulo do Pescador; veneremos a cátedra de Pedro no Altar do Trono; rezemos a Nossa Senhora diante da famosa Pietà de Michelangelo; veneremos os túmulos dos Apóstolos São Simeão e São Judas Tadeu ; admiremos agradecidos a pedra sobre a qual Leão III coroou Carlos Magno, lançando os fundamentos do Sacro Império; consideremos a maternalidade da Igreja dando sepultura, na Basílica, aos remanescentes da casa real da Escócia; à Rainha Cristina da Suécia, convertida à fé católica; à condessa Matilde de Canossa, grande apoio de S. Gregório VII na querela das investiduras contra o Imperador Henrique IV; e a Pierluigi de Palestrina, que ornou a Igreja com suas composições de música sacra polifônica; percorramos em espírito de oração os túmulos de Papas que tanto se distinguiram por seu zelo apostólico — como São Pio X e o Bem-aventurado Inocêncio XI; de um bispo como São Josaphat, que reconduziu os ucranianos de volta à Igreja; contemplemos a sagrada imponência da construção; reconstituamos em mente a solenidade de inúmeras canonizações ali pronunciadas e de dogmas proclamados, como o da infalibilidade pontifícia e o da Imaculada Conceição. Teremos enchido uma jornada densa e inesquecível, reverenciando apenas uma parcela dos infindos tesouros espirituais da Basílica »

Na medida em que prosseguia a visita , eu me sentia entrar em estado de perplexidade perante tanta grandiosidade , humilde na presença do Poder que ali se manifestava , em cada pormenor, em cada pequena referência , estupefato por sentir todo o Esforço Humano que possibilitou aquela magnificência, apenas capaz de avaliar em ínfima parte o que teria sido o Sofrimento provocado ou não atendido com a construção de tão poderosa grandiosidade ! Mais que um ato de louvor , a visita me provocava a necessidade de uma desculpa !

« No século IV, quando o Cristianismo se propagava, a Igreja Católica havia tomado santuários e templos sagrados de povos pagãos, para implantar sua religiosidade e erigir suas igrejas. Nos primórdios do Catolicismo, acreditavam que os pagãos continuariam a frequentar estes lugares sagrados para reverenciarem seus Deuses. Mas com o passar do tempo, assimilariam o cristianismo substituindo o paganismo, através da anulação.
Mesmo assim, por toda a parte, havia uma constante veneração às divindades pagãs. Ao longo dos séculos, a estratégia da Igreja Católica não funcionou, e através da Inquisição, de uma forma ensandecida e sádica, as autoridades eclesiásticas tentaram apagar de uma vez por todas a figura da Grande Deusa Mãe, como principal divindade cultuada sobre todos os extremos da Terra. O Catolicismo medieval transformou o culto à Grande Deusa Mãe, num culto satânico, promovendo uma campanha de que a adoração dos deuses pagãos era equivalente à servidão a satã.
Inquisição é o ato de inquirir, isto é, indagar, investigar, interrogar judicialmente. No caso da Santa Inquisição, significa "questionar judicialmente aqueles que, de uma forma ou de outra, se opõem aos preceitos da Igreja Católica". Dessa forma, a Santa Inquisição, também conhecida como Santo Ofício, foi um tribunal eclesiástico criado com a finalidade "oficial" de investigar e punir os crimes contra a fé católica. Na prática, os pagãos representavam uma constante ameaça à autoridade clerical e a Inquisição era um recurso para impor à força a supremacia católica, exterminando todos que não aceitavam o cristianismo nos padrões impostos pela Igreja. Posteriormente, a Santa Inquisição passou a ser utilizada também como um meio de coação, de forma a manipular as autoridades como meio de obter vantagens políticas.
A Santa Inquisição teve seu início no ano de 1184, em Verona, com o Papa Lúcio III. Em 1198, o Papa Inocêncio III já havia liderado uma cruzada contra os albigenses (hereges do sul da França), promovendo execuções em massa. Em 1229, sob a liderança do Papa Gregório IX, no Concílio de Tolouse, foi oficialmente criada a Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício. Em 1252, o Papa Inocêncio IV publicou o documento intitulado Ad Exstirpanda, que foi fundamental na execução do plano de exterminar os hereges. O Ad Exstirpanda foi renovado e reforçado por vários papas nos anos seguintes. Em 1320, a Igreja (a pedido do Papa João XXII) declarou oficialmente que a Bruxaria e a Antiga Religião dos pagãos constituíam um movimento e uma "ameaça hostil" ao cristianismo.
Os inquisidores, cidadãos encarregados de investigar e denunciar os hereges, eram doutores em Teologia, Direito Canônico e Civil. Inquisidores e informantes eram muito bem pagos. Todos os que testemunhassem contra uma pessoa supostamente herege, recebiam uma parte de suas propriedades e riquezas, caso a vítima fosse condenada.
Os inquisidores deveriam ter no mínimo 40 anos de idade. Sua autoridade era outorgada pelo Papa através de uma bula, que também podia incumbir o poder de nomear os inquisidores a um Cardeal representante, bem como a padres e frades franciscanos e dominicanos. As autoridades civis, sob a ameaça de excomunhão em caso de recusa, eram ordenadas a queimar os hereges. Camponeses eram incentivados (ludibriados com a promessa de ascenderem ao reino divino ou através de recompensas financeiras) a cooperarem com os inquisidores. A caça às Bruxas tornou-se muito lucrativa.
Geralmente as vítimas não conheciam seus acusadores, que podiam ser homens, mulheres e até crianças. O processo de acusação, julgamento e execução era rápido, sem formalidades, sem direito à defesa. Ao réu, a única alternativa era confessar e retratar-se, renunciar sua fé e aceitar o domínio e a autoridade da Igreja Católica. Os direitos de liberdade e de livre escolha não eram respeitados. Os acusados eram feitos prisioneiros e, sob tortura, obrigados a confessarem sua condição herética. As mulheres, que eram a maioria, comumente eram vítimas de estupro. A execução era realizada, geralmente, em praça pública sob os olhos de todos os moradores. Punir publicamente era uma forma de coagir e intimidar a população. A vítima podia ser enforcada, decapitada, ou, na maioria das vezes, queimada.
Em 1486 foi publicado um livro chamado Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas) escrito por dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger. O Malleus Maleficarum é uma espécie de manual que ensina os inquisidores a reconhecerem as bruxas e seus disfarces, além de identificar seus supostos malefícios, investigá-las e condená-las legalmente. Além disso, também continha instruções detalhadas de como torturar os acusados de bruxaria para que confessassem seus supostos crimes, e uma série de formalidades para a execução dos condenados. Ainda, o tratado afirmava que as mulheres deveriam ser as mais visadas, pois são naturalmente propensas à feitiçaria. O livro foi amplamente usado por supostos "caçadores de bruxas" como uma forma de legitimar suas práticas.
Alguns itens contidos no Malleus Maleficarum que tornavam as pessoas vulneráveis à ação da Santa Inquisição:
- Difamação notória por várias pessoas que afirmassem ser o acusado um Bruxo.
- Se um Bruxo desse testemunho de que o acusado também era Bruxo.
- Se o suspeito fosse filho, irmão, servo, amigo, vizinho ou antigo companheiro de
um Bruxo.
- Se fosse encontrada a suposta marca do Diabo no suspeito.
Gradativamente, contando com o apoio e o interesse das monarquias européias, a carnificina se espalhou por todo o continente. Para que se tenha uma idéia, em Lavaur, em 1211, o governador foi enforcado e a esposa lançada num poço e esmagada com pedras; além de quatrocentas pessoas que foram queimadas vivas. No massacre de Merindol, quinhentas mulheres foram trancadas em um celeiro ao qual atearam fogo. Os julgamentos em Toulouse, na França, em 1335, levaram diversas pessoas à fogueira; setecentos feiticeiros foram queimados em Treves, quinhentos em Bamberg. Com exceção da Inglaterra e dos EUA, os acusados eram queimados em estacas. Na Itália e Espanha, as vítimas eram queimadas vivas. Na França, Escócia e Alemanha, usavam madeiras verdes para prolongar o sofrimento dos condenados. Ainda, a noite de 24 de agosto de 1572, que ficou conhecida como "A noite de São Bartolomeu", é considerada "a mais horrível entre as ações inquisidoras de todos os séculos". Com o consentimento do Papa Gregório XIII, foram eliminados cerca de setenta mil pessoas em apenas alguns dias.
Além da Europa, a Inquisição também fez vítimas no continente americano. Em Cuba iniciou-se em 1516 sob o comando de dom Juan de Quevedo, bispo de Cuba, que eliminou setenta e cinco hereges. Em 1692, no povoado de Salem, Nova Inglaterra (atual E.U.A.), dezenove pessoas foram enforcadas após uma histeria coletiva de acusações. No Brasil há notícias de que a Inquisição atuou no século XVIII. No período entre 1721 e 1777, cento e trinta e nove pessoas foram queimadas vivas.
No século XVIII chegam ao fim as perseguições aos pagãos, sendo que a lei da Inquisição permaneceu em vigor até meados do século XX, mesmo que teoricamente. Na Escócia, a lei foi abolida em 1736, na França em 1772, e na Espanha em 1834. O pesquisador Justine Glass afirma que cerca de nove milhões de pessoas foram acusadas e mortas, nos séculos que durou a perseguição »

O Vaticano possui inúmeros palácios que são as residências oficiais desde o século XIII e os famosos Museus Vaticanos, únicos no mundo com tamanho valor e beleza. Ao cruzá-los a primeira parada é a Capela Cistina, construída sob o mandato de Sixtus IV entre 1475 e 1481. O enorme afresco no teto, que representa o Gênesis, foi feito por Michelangelo e as pinturas nas paredes laterais e da parede oposta ao altar foram feitas por pintores de prestígio da época como Boticelli, Perugino e Guirlandaio. Vinte e quatro anos depois de terminar sua grande obra, Michelangelo ficou responsável por pintar nas paredes da capela afrescos que refletissem o Julgamento Final. Através dessas tocantes imagens a Escola Sagrada se reúne sempre que um novo Papa é escolhido.

Cercando a Capela Cistina surgem as quatro salas de Rafael: o saguão de Constantino e as salas da Segnatura, Heliondro e o L’Incendio, que tem esse nome devido ao incêndio no distrito de Borgo e que, de acordo com a lenda, cessou quando o Papa Leon IV fez o sinal da cruz.

Ainda, a capela de São Nicolau, os quartos da Borgia, a biblioteca do Vaticano, as instalações do museu Chiaromonti, o museu Pio-Clementino e a galeria de arte, com uma seção de quadros de pintores como Caravaggio, Giotto e Da Vince, entre outros ; e o museu Profane Gregoriam, com mosaicos trazidos das estações de água de Caracalla.

Talvez eu não devesse ter visitado o Vaticano ! Teria certamente com essa recusa perdido a visão da beleza magnificente de obras expoentes dos limites do gênio humano , não teria tido a indescritível sensação de humildade perante essa genialidade , também o orgulho de sentir fazer parte da Humanidade capaz de a gerar , mas deixaria - sobretudo - de não me sentir confrontado pela lembrança da minha infância , daquele padre velhinho , de dificuldades físicas, se abaixando na minha frente para pegar uma simples moeda de tostão e me sorrir , glorioso, dizendo « isto é para os meus pobrezinhos » ! Como esse padre velhinho se sentiria traído naquele seu ato de cristandade pela visão do que eu acabara de contemplar !
Da observação das sábias palavras « Quem dá aos pobres , empresta a Deus » eu tinha extraído após aquela visita que - Quem tira dos pobres , rouba de Deus !
“ Portanto, dêem aos pobres o que está dentro dos seus copos e pratos, e assim tudo ficará limpo para vocês. Vendam tudo o que vocês têm e dêem o dinheiro aos pobres. Arranjem bolsas que não se estragam e guardem as suas riquezas no céu, onde elas nunca se acabarão; porque lá os ladrões não podem roubá-las, e as traças não podem destruí-las ” (Lucas 11.41; 12.33).

Melhor voltar ao Trastevere e alimentar o corpo ! Una birra Heineken, per favore !
Em som bem alto, do restaurante ao lado, mesas engalanadas , transbordando , chegava

Io, lontano da te
Pescatore lontano del mare
Io, chiedo da bere
A una fonte asciugata dal sole
Solitudine e malinconia
I soprammobili di casa mia
Qualche libro, una poesia
E sul piano una fotografia

Peppino di Capri vinha enchendo Roma com a canção ganhadora do Festival de San Remo desse ano « Un grande amore e niente più » ! Salut !

O custo de vida em Roma era altíssimo , as nossas reservas se esgotavam , melhor então começar a viagem de regresso , era o quarto dia na cidade, pegamos o Taunus e saímos em direção de Florença, agora pelo interior da Itália . Ao acaso , na procura das placas salvadoras, deparamos com as Catacombe di S.Callisto ! Paro o carro, estaciono bem em frente , lado contrário à porta de acesso , tem aí um pequeno desvio da estrada, a Tininha fala qualquer coisa , acho que se refere a ser perigoso parar ali, vou comprar os bilhetes de acesso – em Roma tudo é pago ! – e entramos nas Catacumbas .
Elas ocupam diversos planos abaixo da terra, uma profundidade superior a 20 metros, quase 20 Km de corredores , uma área de 15 hectares , umas 20.000 pessoas enterradas , 9 Papas , muitos cristãos , dezenas de mártires – recebem o nome do diácono São Calisto por este ter sido o administrador do cemitério , no início do Século III . Externamente são visíveis duas pequenas basílicas, onde provavelmente foram sepultados o Papa São Zeferino e o jovem mártir da Eucaristia, São Tarcísio.
Voltamos para o carro , quase logo eu vejo a falta do vidro traseiro direito , da pequena janela que se seguia à porta traseira ! Procuro no chão ( ? ) , com a esperança de que tenha caído , nada . Ao lado, uma grande placa em três línguas, italiano, inglês , francês, avisava que ali era um local perigoso para deixar o carro ! O vidro tinha sido tirado por um especialista, nada quebrado, nada arranhado , nada faltava no carro , estavam ali à vista malas, mapas, algumas compras ! A Tininha , bem , falou alguma coisa , que eu .....não ouvi!
Agora tinha de procurar com urgência uma loja de peças que tivesse aquele vidro do meu carro, montado na Alemanha ! Até lá , ia tentar tapar o buraco com um pano , não deixar na rua, guardar em garagem !

Chegamos a Florença ( Firenze ) , cidade da Renascença, da arte italiana e da Família Médici , já noite, rumamos para o centro , ficamos na Via de Panzani 17, Hotel Bonciani .
Manhã cedo, o Sol entrando pelo quarto , acordo , me preparo para visitar a cidade que mal identificara na chegada , de noite, cansado e preocupado em guardar o carro em local fechado – em nenhuma das lojas em que procurara encontrei aquele vidro para o carro ! - , abro a janela e me deslumbro !

« O grande problema de visitar Florença é este: você pode enlouquecer !É comum turistas serem internados por causa da chamada Síndrome de Stendhal, diagnosticada nos anos 70 pela doutora Graziella Magherini, ex-chefe do departamento de psiquiatria do hospital florentino Santa Maria Nuova. Os sintomas são tontura, taquicardia, confusão mental. Tudo causado por algo a que nós não estamos habituados: excesso de beleza. Stendhal, escritor francês, autor de O Vermelho e o Negro, teve um surto ao entrar na Igreja de Santa Croce, em 1817, onde estão os restos de Michelangelo, Maquiavel e Galileu, e ver os afrescos de Giotto. "Eu estava numa espécie de êxtase", escreveu ele no livro Roma, Nápoles e Florença. "Tudo falava tão vivamente à minha alma. Tive palpitações. A vida se esvaía de mim. Eu caminhava com medo de cair."Isso não é frescura de francês, definitivamente. Florença, com suas ruas estreitas tomadas por lambretas, berço do Renascimento, uma cidade em que palácios e monumentos aparecem a cada esquina, em que cada pedra tem uma história, é o retrato da genialidade humana. No século 15, era o centro do mundo (ou seja, da Europa), atraindo o talento de gente como Leonardo da Vinci, Donatello, Michelangelo, Dante Alighieri, Galileu, Brunelleschi, Boccaccio, Botticelli, Rafael... »

« Florença é uma das cidades mais formosas do mundo. A antiga capital da Itália conserva dois lugares históricos dentro dela, por um lado o romano (no centro), e o medieval que rodeia o primeiro.
A Praça do Duomo é a mais central da cidade e recolhe no seu interior os edifícios religiosos mais importantes, todos eles de mármore policromado com desenhos geométricos: o Batistério, que data segundo alguns, do século IV-VI, e segundo outros do século XI-XII, com telhado piramidal e ao que se chega através de famosas portas de bronze que representam cenas da vida de Cristo, de São João Batista e, a mais importante, realizada por Ghiberti, com cenas do Antigo Testamento. Seu interior conta com paredes decoradas, com colunas e semi colunas, sucedendo-se alternativamente. A Pia Batismal é de mármore e pertence à escola de Pisa, de 1371. À direita da entrada está o túmulo do "anti-papa" João XXIII, obra de Michelozzo e Donatello do ano 1427. A cúpula aparece recoberta de mosaicos de inspiração bizantina e é obra de artistas venezianos e florentinos como Cimabue. Na cabeceira destacam - se os mosaicos do mesmo estilo do Mestre Lacopo.
O Campanile de Giotto, começado no ano 1334 por Gioto, continuado por Andrea Pisano e concluido por Francesco Talenti no ano 1359, conta com uma decoração que adorna os andares com tracerias calade e coronamentos. A altura é de 87 metros e pode-se subir os 414 degraus para desfrutar de uma formosa panorâmica da cidade. A parte inferior está adornada com baixo-relevos que são cópias dos originais do século XIV de Andrea Pisano e Andrea da Robbia.
O Duomo é também conhecido como Santa Maria do Fiore. Este edifício, com planta de cruz latina, está coroado por uma cúpula de dobrada bóveda de Brunelleschi que foi finalizada em 1461 e mede 91 metros de altura e 45.5 metros de diâmetro e está decorada com afrescos que representam o Julgamento Final de Vasari e Zuccari nos anos 1572-1579. Além de contemplar as maravilhas que se encontram no interior e o exterior, o edifício conta com magníficas obras como a Porta do Campanille e a Porta do Canonici, as duas do século XIV e a Porta da Mandiria, com o relevo da Assunção de Nani di Banco, do ano 1421 e o mosaico da Anunciação de Ghirlandaio de 1491. A igreja está dividida em três naves separadas por grandes pilares que mantém as altísimas arquerias e as cúpulas nervadas. Nela podem-se admirar obras, como as divinas vidraçarias coloride de Lorenzo Ghiberti, o "Túmulo do Obispo D’Orso" de Tino di Camaino, um afresco ao claro escuro de Andrea Castagno de 1456, a Estátua Equestre de Nicolou de Tolentino e um afresco ao claro escuro de Paolo Unccello. Sob a cúpula aparecem três balcões, um deles destacado pelas notáveis vidraçarias de gênios, como Donatello, Ghilberti e Paolo Uccello. Também pode-se admirar obras de Benedetto da Maiano, Paolo Unccello e L. Da Robbia, entre outros. Porém, talvez o que mais impressiona seja seu tamanho já que é a quarta igreja maior do mundo.
Se a Praça do Duomo é conhecida por seus edifícios religiosos, a Praça da Signoria é na que se desenvolve a vida da cidade. Contém o edifício civil mais conhecido de Florença, o Palácio Vecchio ou da Signoria. Esta construção medieval, de estilo gótico, é a sede da Prefeitura desde 1872 e foi construida nos anos 1299-1314. Destaca-se pela versatilidade acentuada pelos 94 metros da famosa Torre D’Arnolfo. Resulta uma verdadeira delícia passear pelo magnífico pátio porticado antes de percorrer os numerosos salões como o Salão dei Cinquecento, no que se encontra a "Vitória" de Miguel Angelo, o Stúdio de Francesco I de estilo mineralista do século XVI, o Tesoreto decorado por Vasari, a Sala dei Dugento, obra de 1447, da qual se conserva o teto pintado por Benedetto da Maiano, a Sala dei Gigli com artesanato traceado de Giuliano da Maiano e a Sala da Cancilharia na qual trabalhou Maquiavel e na qual está situada a estátua do "Menino com golfinho" de Verrocchio.
O Palácio Gli Uffizi, obra renascentista realizada por Vasari nos anos 1560-1580, é a sede da Galleria degli Uffizi, um dos museus mais valorizados do mundo. Na planta baixa encontra-se o ciclo de afrescos de A. Del Castagno que mostra retratos de personagens ilustres. No primeiro andar destaca o Gabinete dei Disegne delle Stampe com gravados e desenhos. No Corredor Vasariano, que une os Uffizi ao Palácio Pitti atravessando o Arno pela ponte Veniccio, pode-se desfrutar da Colleccione degli Autoritatti de pintores italianos e estrangeiros que vão do século XVI, até nossos dias. Suas galerias, dispostas em forma de passagem, mostram tapetes flamencos e florentinos dos séculos XVI-XVII, assim como, esculturas antigas. No segundao andar pode-se admirar maravilhosas obras destacade de Cimbaue, Duccio di Buoninsegna, Giotto, Simone Martini, Paolo Uccello, Veneziano, Piero da Francesca, Botticelli, Leonardo da Vinci, Rafael, Miguel Angelo, Tiziano e Rembrandt. Também importante o Palácio Pitti, construido com pedra rústica de silharia. Destacam-se suas fachadas, de 205 metros de comprimento e o magnífico cortile (pátio) do ano 1570, obra de Ammannati. Este palácio foi residência do grande ducal e, nos anos 1865-1871, formou parte da corte do novo Reinado da Itália. Hoje em dia contém no interior a Galeria Pitti, que embora não tenha a importância do anterior, em suas impressionantes salas, com tetos pintados, pode-se encontrar os belos afrescos e obras de Tiziano e Rafael, embora de mais interesse resultem os Appartamenti Monumentali, antiga residência dos Medici e dos Lorena, que depois passaram a ser as Salas de Gala dos Saboia.
Vale a pena visitar também o Museu degli Argenti, onde fica uma deslumbradora coleção de metais e pedras preciosas insertada nos mais variados objetos, cristais, marfim, etc. No museu pode-se admirar a Collezione Contini-Bonacosi ; a Galeria do Costume com suas onze salas que mostram maravilhosas pinturas de Velázquez, Goya, o Veronés, Duccio di Buoninsegna, G. Bellini, I. Bassano, Sassetta e Andrea do Castagno e, também móveis, esculturas, objetos de arte e uma exibição de trajes, que percorre a moda desde 1700 até 1900 .
Se quer conhecer um verdadeiro jardim de estilo italiano é necessário passear pelo Giardino di Boboli, projetado por Tibolo no ano 1550 e finalizado no século VII. Conta com uma superfície de 45.000 metros quadrados com interessantes lugares como a gruta de Buontalenti de 1588, o Anfiteatro, o Vivero de Netuno de 1565, e o Jardim do Cavaleiro, de onde se obtém uma esplêndida panorâmica.
Depois de relaxar nestes extraordinários espaços verdes pode-se visitar o Museu del ’Ópera do Duomo, onde o turista poderá extasiar-se com a beleza da maravilhosa "Pietá" de Miguel Angelo, do ano 1553 e com as obras de escultores florentinos ,entre os quais se encontram Donatello e Arnolfo di Cambio. Também podem -se admirar obras deste genial escultor no Museu nacional, situado no Palácio do Podestá , construido entre os anos 1255-1346. Nele se expõem peças como o "São Jorge" ou o "David" de bronze de Donatello, entre muitas outras de excepcional índole. Na continuação pode-se andar nas ruas tomando a Via de Tornabuoni, como referência e é conveniente deixar-se surpreender por um dos palácios mais conhecidos de Florença, o Palácio Strozz, de estilo renascentista florentino, cuja construção foi começada por Benedetto da Maiano em 1489 e continuada por Cronaca em 1504.
Muito próxima encontra-se a igreja de São Lorenzo, edificada por Brunelleschi em 1446 e terminada por A. Manetti em 1460, com uma fachada de pedra rústica. Seu interior está formado por três pavilhões e foi decorado, em parte, por Donatello em 1460, com uma magnífica Sacristia (a Sagrestia Vecchia), que com a participação destes dois gênios se converte em uma peça maravilhosa, na qual pode-se admirar o sarcófago com os restos de Giovanni e Piero de Médicis, sendo uma obra mestra de Verrocchio de 1472. Também é única a Sacrestia Nova de Miguel Angelo, do ano 1524, situada na Capela do Príncipe, de forma octogonal, culminada por uma cúpula e com seu interior recoberto de mármore e outros materiais, que contém também os "Sepolcri Medici", outra obra cume de Miguel Angelo dos anos 1524-1533.
Outra magnífica obra de Brunelleschi é o Hospital dos Inocentes, do ano 1426. Atrás do pórtico, que conta com amplos arcos culminados com dez medalhões circulares de terracota obra de A. da Robbia, abre-se a fachada (no pátio pode-se admirar uma Anunciação do mesmo artista). No hospital há que visitar a Galeria del’Ospedale, com pinturas, códices minados, esculturas e mobília dos séculos XIV-XVIII, destacando-se entre elas a "Epifania" de Ghirlandajo. Também se destacam o Pórtico da Confraternita de Servi di Maria, a Santíssima Anunciata e o Santuário do século XV. No interior, de estilo barroco, destacam –se um Templete de Michelozzo, do ano 1461, afrescos de A. Del Castagno, o ábside obra de Michelozzo e L. B. Alberti, além do Chiostro de Morti onde se pode ver um afresco de Andrea do Sarto.
Não pode abandonar Florença, se não tiver realizado uma visita à Academia de Belas Artes. Aqui se encontram, entre outras obras, as belas talhas de Miguel Angelo, entre as quais se destacam o inigualável "David", esculpido entre os anos 1501-1504 e as esculturas de "Os Escravos Inacabados", uma das obras mais enigmáticas do célebre artista.
Se quiser admirar uma das vistas mais formosas da cidade e realizar um bom passeio por um entorno agradável ,o trajeto começará em Viale dei Colli e finalizará no Piazzale Michelangelo onde, também, se pode caminhar entre reproduções em bronze de obras deste grande artista »

O meu último passeio foi pela Ponte Vecchio ! Uma ponte medieval sobre o Rio Arno , com lojas sobre bancas ocupando os dois lados do tabuleiro , sem espaços vazios, lojas principalmente de jóias e bijuterias . A ponte deve ter sido construída na Roma Antiga, inicialmente de madeira ; foi depois destruída pelas cheias e reconstruída em 1345 , com três arcos, o maior deles com 30 metros de diâmetro . A multidão sobre a ponte não diminuía nunca , o colorido realçado pela luminosidade do Sol era irreal ! Diz-se que a palavra bancarrota teve ali origem – quando um mercador não conseguia pagar as dívidas, a mesa ( banco ) era quebrada ( rotto) pelos soldados da autoridade municipal . Durante a 2ª Guerra Mundial , a ponte não foi danificada pelos alemães , acredita-se que por ordem direta de Hitler.
Ao longo da ponte encontravam-se vários cadeados , principalmente no gradeamento em torno da estátua de Benvenuto Cellini – ao trancar o cadeado e jogar a chave no Rio , os enamorados tornavam -se eternamente ligados !

Não fiquei com a Síndrome de Stendhal, mas com uma enorme sensação de pena da minha cidade , Lisboa , e de Portugal ! Isso já me acontecera em outras visitas, pela Europa . Para um País que durante mais de dois séculos repartiu o domínio do comércio mundial , em algumas regiões terá mesmo sido o elemento dominante, essa grandeza não estava demonstrada nem minimamente pelas riquezas das cidades portuguesas , em comparação ao que uma simples viagem de turista estava encontrando pela Itália ! As belezas naturais , é verdade , estavam lá ! Desprovidas de adornos , ou prejudicadas pelo uso descuidado ! As riquezas , poucas !

Saímos de Florença em direção a Torino , por magníficas auto - estradas , que de resto caracterizavam a Itália, tornando as viagens rápidas e agradáveis . Passávamos pela região italiana do Piedmont, das indústrias , da Fiat, também da Catedral onde é guardado o Santo Sudário, de um cenário natural extraordinário, de vales e montanhas que a estrada atravessava em sucessivos viadutos nos mostrando paisagens belíssimas.
Descemos para Marselha ( Marseille) , querendo conhecer a cidade , a segunda maior cidade da França, seu maior porto de mar, célebre pelo Hino Nacional - A Marselhesa - honra às tropas revolucionárias de Marselha - , pela prisão no Château d´If na ilha costeira em frente à cidade , imortalizada pelo Conde de Monte Cristo , de Alexandre Dumas, nas figuras de Edmond Dantès e Abade Faria, pelo Pastis, bebida alcoólica à base de especiarias e de anis . Entramos na cidade , até ao seu centro , o carro continuava sem aquele vidro, nos impressionamos com o número enorme de norte-africanos que víamos pela cidade , não paramos, e deixamos Marselha em direção de Montpellier e de Andorra - em Marselha 25 % da população é de norte-africanos .

A passagem por Andorra procurava fugir àquelas filas quilométricas de carros que tínhamos visto quando vínhamos de Barcelona para Marselha, pela costa espanhola, assim saíamos dessa rota, pelo interior espanhol, Andorra , Lérida, Zaragosa, Madrid.
Andorra é um pequeno Principado , entra a França e a Espanha, a leste da Cordilheira dos Pirinéus, montanhas escarpadas entre 1800 – 2000 metros, fundado segundo a lenda por Carlos Magno. Entramos na pequena cidade , Andorra – a – Velha, uma só rua , larga, já de noite , depois de uma tormentosa viagem por estradinhas sinuosas que subiam e desciam , quase sem sinalização, escorregadias da permanente umidade e das folhas caídas da densa vegetação das encostas . Foi a parte mais difícil de toda a viagem , com a fria sensação de despencar pelos Pirinéus, pouquíssimos carros passando , inclinações enormes , curvas que se fechavam !
A cidade não tinha nada para oferecer , um pequeno restaurante , hotel sem garagem , o carro sem vidro não poderia ficar ao relento naquela rua, certamente não o encontraríamos pela manhã ! A solução foi conduzir até um parque de campismo , para baixo dali, precário , sem iluminação , procurar um canto escondido que tapasse aquela ausência do vidro , e dormir dentro do carro , suportando o frio e a umidade da noite ! As belezas da magnífica Itália nos compensavam !

Fugimos de Andorra para Madrid, era sábado , a cidade meio adormecida , os espanhóis não são simpáticos – visível nos postos de gasolina ! – não seria ainda que teria vontade de conhecer esta cidade ! De todas as cidades por onde já passara , nenhuma me atraía menos do que Madrid, talvez pela arrogância das pessoas que contatava, talvez pela grandiosidade das avenidas e ruas que não me passavam calor humano . Que diferença de Barcelona ! Seguimos para Salamanca .

Salamanca era o oposto de Madrid ! Os imensos edifícios históricos na cidade velha são recobertos com pedra de Villamayor, uma pedra que apresenta uma textura macia que permite o desenho de belíssimas filigranas e com alto teor de ferro , o que lhe dá um reflexo dourado magnífico, principalmente ao entardecer. Além da maravilhosa impressão estética , a cidade tem o encanto cultural de uma das Universidades mais antigas da Europa, erigida pelos Reis Católicos , com uma impressionante fachada , de exuberantes relevos . Mas a área de maior movimento e a mais bela de Salamanca é a Plaza Mayor , magnífico espaço arquitetónico , centro de comércio e lazer. Entrando nas lojas por ali , descubro numa delas uma camisa de ótimo corte , mangas curtas , diferente , perfeitamente ajustada ao corpo, caimento impecável – compro duas , uma branca , outra creme , ainda outra de manga comprida , creme também .

Essas camisas de manga curta me iriam acompanhar por mais de 20 anos , serviriam de modelo para outras, já sem o mesmo encanto ! A de mangas compridas, tinha as duas mangas com o fecho do punho para o mesmo lado , uma delas teve de ser virada !

Entramos em Portugal por Vilar Formoso, caminho da Guarda , Coimbra , Pombal. Tinha percorrido quase 6000 quilómetros , 12 dias de viagem , me tinha fascinado com a beleza de Itália , deixado uma moeda naquela Fontana di Trevi , talvez um dia ela me permitisse voltar a Roma , tinha percorrido uma das regiões turísticas de maior elegância da Europa , estava sem um vidro do carro, que não encontrava em lugar algum. Embora tudo isso , a estupefação pela chocante grandiosidade do Vaticano, provocante, arrogante, era a imagem mais forte , surpresa e dolorida.
O mês de setembro costumava ser excelente para passar férias em Portugal. O tempo ainda se mantinha quente mas o movimento diminuía nas estradas , os preços caíam , podíamos mais facilmente sair de Pombal para as praias de São Martinho do Porto , Nazaré, Figueira da Foz, e voltar ao cair da tarde para a apanha dos caracóis que depois nos faziam a festa na cozinha . A Paula sofria no mar da praia e à mesa , medo que a obrigassem a experimentar aqueles bichinhos ! Os meus Sogros gostavam da casa cheia, os Filhos tinham espaço para as suas brincadeiras, era bom ficar ali , lembrando de Angola com a minha Sogra, que não tinha gostado muito do convívio com os africanos.

Chegam notícias da deposição e morte de Salvador Allende, no Chile, o primeiro marxista a ser eleito democraticamente como Presidente e Chefe de Governo de um país ocidental , em brutal ação militar comandada pelo Chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet, que ele mesmo tinha nomeado e que acreditava lhe era fiel , ação que surpreendia porque o Chile era considerado até ali um país de sólidas tradições democráticas.

No final das férias tinha de ir à Holanda , Rotterdam . Não podia esquecer de tentar encontrar por lá o vidro para o Taunus . A Tininha ficou com os Filhos e eu vou de avião , me esperam no Aeroporto de Schiphol , me levam para o hotel.

Adorava voltar ao centro de Rotterdam , ficar ocupando mesa disposta na rua, debaixo de um toldo , em frente ao Hotel de Ville , local luxuoso , de gente bonita que passava , e pedir « Een bier Heineken , altstublief » Proost !

Na Heineken , os problemas relativos à água sempre ocupavam os primeiros trabalhos.
Monsieur VR me apresenta um técnico holandês altamente conceituado no tratamento de águas, tinha feito estudos com as amostras de água do poço e do rio , um trabalho de muitas páginas , cheio de gráficos coloridos .
VR me explica, ele acha o trabalho excelente , está entusiasmado , se misturar 50% de água do rio com 50% de água do poço , a água resultante é ótima, bem adequada para o fabrico de cerveja, está tudo explicado nos gráficos. Acho que não fui muito educado – perguntei-lhe , então misturo um balde de água do rio com um balde de água do poço ?!
Ambos tiveram a percepção do problema ao mesmo tempo , a reunião acabou de imediato , VR não falou mais sobre aqueles gráficos tão bonitos ! O estudo tinha sido feito sobre as amostras de água que a Heineken tinha , que representavam as condições apenas no momento da amostragem , agora já sabiam que a água do poço era grandemente variável, resultante de um equilíbrio de pressões com a água que vinha da montanha, depositada em lençol freático que pressionava o poço.

Aquela bomba que retirava a água do poço e que tinha com freqüência o motor queimado, essa era a minha maior preocupação. VR tinha enviado pelo DS novas instruções , mas que repetiam as que já tínhamos. Para mim , algo não estava certo ! Pedi para irmos na fábrica, VR relutou , que não era preciso, ele e o DS tinham estado lá, fazia pouco tempo. Insisti, fomos.
Nos recebem muito bem , o setor de preparação dos motores está parado , o técnico holandês nos explica cada uma das fases, passamos por cada bancada, eu faço perguntas, chegamos ao fim , VR está feliz « viu, Monsieur Graca, exatamente como está nas instruções que mandei ! » .
Porque será que sou teimoso ? Quero ver tudo de novo , agora realizando cada operação , não apenas falando ! Acho que os dois holandeses acharam que eu era esquisito ( claro , é português, pouco inteligente ! ), mas são muito educados, aceitaram ! E aí vamos novamente , uma bancada de cada vez, chamando o funcionário que realizava as operações , este fazendo o seu trabalho , embora virtual mas com todas as ferramentas . Na última operação , o motor tinha que ser isolado , usava-se uma resina especial, já tinham dado o nome. O funcionário vai buscar essa resina, tudo bem , está nas instruções , e retira do fundo de uma bancada , escondido por portas fechadas por chave, um complicado dispositivo . Começa armando aquilo sobre a bancada , eu olho para o VR ! – era uma bomba de vácuo , a resina tinha que ser injetada no motor sob vácuo , para não deixar pontos de vazio que eram risco do motor entrar em curto circuito e queimar ! Isso não estava nas instruções, o fabricante nunca tinha falado dessa necessidade !

O fabricante dessas bombas foi descredenciado do fornecimento à Heineken a partir dali !

De muitos outros assuntos se falou nessa minha visita - da expansão que ia acontecer logo à minha chegada a Angola , os equipamentos já tinham sido enviados pela Bélgica , dos problemas daquela mesa de Brassagem que teimava em não funcionar, do encurtamento do ciclo de fabricação de 21 para 14 dias - mas eu tinha resolvido o meu problema fundamental , a área de compras da Heineken conseguia o vidro do carro – veio da Alemanha ! - , podia regressar a Portugal, início do retorno a Angola.

Com a volta ao Dondo a vida regressava ao normal, uma rotina agradável, pelo calor que fazia ficar à noite na piscina, pela cerveja pretexto de boas risadas entre o nosso grupo de amigos, os Filhos voltavam aos estudos, agora o João António já ia para o Colégio , 1º ano , onde a Tininha dava aulas, mas não na mesma turma ( ela não queria misturar as funções de mãe e de professora ), a Paula entrava na 3ª Classe, a Olga Maria na 2ª , só o Pedro ficava brincando todo o dia com o Manuel . O Taunus branco tinha chegado por navio, resolvi vender , fazia algum dinheiro para compensar as despesas das férias.

O Manuel tinha comprado moto, agora se passeava orgulhoso pelas ruas do Dondo, sempre correto, cuidadoso. O meu substituto na Direção da Fábrica foi embora – pouco simpático , o DS brigava com ele porque os motores daquela bomba de água não chegavam , ele não se mexia , o DS dizia que se fosse eu já teria feito alguma coisa , a Fábrica estava em risco de parar !
Esperávamos a chegada das 10 novas cubas que iriam duplicar a capacidade de produção, o RT dizia que não teríamos nenhum problema na venda dessas novas quantidades, a equipa de vendas estava melhor estruturada, ele tinha admitido um Gerente de origem espanhola , estória de vida interessante – natural do Norte de Espanha, basco , saiu para o México porque a situação na região era de permanentes conflitos pela independência ( Grupo ETA ) , no México encontrou forte instabilidade política que o fez sair e ir para o Brasil, aqui , capataz numa fazenda pela Bahia , tendo que transportar altos volumes de dinheiro , achou que os riscos eram muito grandes também pela instabilidade política e pela ausência de ordem policial , veio então para Angola ! Eu lhe dizia que não gostava dele por ali , mau presságio ! Mas era excelente pessoa , diligente, vendia.

As novas cubas chegaram ! Em desfile desde o Porto de Luanda, cada uma um grande caminhão, engalanado , a área comercial tinha aproveitado para fazer excelente publicidade . Entraram na Fábrica em buzinada de ensurdecer, corri para pegar a máquina de filmar.
Começavam os meus problemas, atividade a que alguns funcionários tinham assistido durante a Montagem, inclusive claro o DS , havia que contratar empresa para o isolamento térmico , pôr aqueles monstros um a um sobre as colunas de concreto que já tinham sido construídas na 1ª fase .
Trabalho com o DS e o LF, fazemos um cronograma para as atividades , coloco data de início de fabricação para cada uma delas , faço um PERT, mando para a Heineken com uma carta em que peço o envio urgente, avião , de peças que estavam em falta nos caixotes – alguém tinha feito contas erradas sobre os desenhos , faltavam principalmente registros para algumas cubas .

A vida diária passa a ser então a instalação daquelas cubas. Eu conto para a equipa a estória que tinha ouvido em Rotterdam sobre instalação similar na África do Sul , em fábrica que a Heineken estava montando - ao fazer os testes de pressão , o pessoal , holandeses, tinha aberto inadvertidamente os registros inferiores de algumas cubas , esquecendo de abrir as entradas de ar superiores ! Várias cubas, maiores do que as nossas, tinham simplesmente implodido, pela pressão externa do ar sobre as paredes , serviam depois disso só para sucata ! Ninguém ali na Eka estava mais apreensivo do que eu , mas deixei esses testes para o DS , tudo correu normalmente .

Recebo da Heineken , enviado pelo VR, um cronograma para eu obedecer na montagem das 10 cubas, os prazos são muito maiores do que os meus, o dobro ; guardo , não mostro para ninguém . Do cronograma que eu tinha enviado , nenhuma referência , das peças em falta também não falam.

O problema estava então naqueles registros que nos faltavam , eu achava que a Heineken pensava que nós tínhamos errado na verificação ! Vou para Luanda, percorro as lojas de materiais de construção, não há nada parecido , encontro registros menores, tecnologia diferente, mas não tenho outros, vão ter de servir.

As duas primeiras cubas estão prontas na data programada , tínhamos tido problemas com a empresa de isolamento térmico, mas com trabalho noturno tínhamos recuperado. Mando telegrama para Rotterdam, para Bruxelas, para Lisboa – como programado , as cubas 11 e 12 entraram hoje ao serviço!

A festa desse dia no Bar foi maior , a esperança de todos em passar a ter trabalho continuado estava-se concretizando ( até ali só tínhamos operação de Brassagem 3 vezes por semana ) .

Nos dias que constavam no meu PERT , mando telegramas iguais ao primeiro, todas as 5 datas foram cumpridas , duas cubas de cada vêz. O cronograma dos holandeses estava esquecido na minha gaveta, nem me lembrava dele.

A EKA estava agora com uma produção de 120.000 hl/ano , 20 milhões de garrafas /ano , garrafas de 0,6 litros , entre 8 a 10 % do consumo de Angola. Aquele gerente espanhol ia trabalhar mais, o RT talvez jogasse menos poker . A Fábrica precisava contratar mais gente , treinar .

Durante aquela montagem, eu tinha passado horas junto dos mecânicos, alguns africanos, um deles mais evoluído, posição de chefia que morava numa daquelas 12 casas no bairro para a esquerda da estrada , muito bom soldador de inox , ele me contava estórias da vida dos africanos , coisas que para nós europeus pareciam estranhas .
Ele tinha uma moça bonita , africana , que às vezes ia na Fábrica , despertava os olhares de todos . Mas antes dela, ele já tinha tido outras, que vinham e algum tempo depois sumiam – ele me contava , ia buscar no Sul, os filhos não eram problema para ele, ele nunca sabia se era o pai, podia muito bem não ser, ficavam sempre com a mãe quando a relação se rompia e ele as mandava embora ! Na relação de sangue só os filhos das irmãs - sobrinhos - constituíam elo importante, esses certamente tinham o sangue dele, ele tinha a obrigação de cuidar e de proteger. Costumes africanos que o contato de mais de quatro séculos com os portugueses não tinha alterado , mesmo com as pressões dos missionários , católicos ou protestantes. Eu entendia porque algumas vezes recebia pedidos de licença por poucos dias para revolver problemas de um sobrinho !

Angola era uma grande produtora de diamantes , na região da Lunda , a leste , área do povo Quioco .
No início do século XX a empresa belga Forminiére descobriu diamantes em territórios contíguos ao nordeste de Angola . No seguimento desse achado foi criada, em 1912, a empresa Pesquisas Mineiras de Angola , que posteriormente se extinguiu e transferiu à Diamang ( Companhia de Diamantes de Angola , agregando capital português, belga, francês e americano ) os direitos de exploração de diamantes. O contrato estabelecido com o governo de Angola era excepcional. A companhia detinha a exclusividade da prospeção de diamantes em todo o território. Além disso, estava isenta do pagamento de impostos relativos a bens alimentícios e têxteis, máquinas e outros equipamentos industriais relativos à atividade mineradora. Outro privilégio da Diamang referia-se à exclusividade de toda e qualquer
atividade comercial na área da sua concessão. O contrato também obrigava o Estado a ajudar no recrutamento de mão-de-obra indígena necessária ao funcionamento da companhia. Por seu lado, a companhia deveria prestar assistência médica, instruir e elevar o moral dos nativos.
O Estado receberia, em troca da concessão, 40% dos lucros da empresa , depois aumentado para 50 % . Os diamantes explorados eram de aluvião, do tipo creek, resultado de riachos e terraços. No início da laboração, em 1918, a prospeção era efetuada manualmente . A introdução de meios mecânicos foi efetuada lentamente e, em 1928, a última instalação manual deixava de operar .

A seguinte descrição de Gilberto Freire dá uma idéia do grau de fiscalização imposto pela Diamang , efetuada com uma força armada própria , vultosa e poderosa .

« Levam-me a ver, na Lumparia, os engenhos onde se faz a seleção de pedras que seguem, seladas, para a Central de Escolha. Estamos em lugar como que sagrado. Raros são os indivíduos admitidos, como visitantes a intimidade tão profunda : os diamantes aqui faíscam em profusão , informam-me que uma só porta deixada aberta nas costas das pessoas entradas é motivo para o responsável pelas chaves ser despedido imediatamente.
Levam-nos às máquinas separadoras. Às trituradoras . Os detetives devem estar aqui em toda a parte. A Central de Escolha é lugar com alguma coisa de novelesco . Porque as máquinas não cumprem sózinhas a sua delicada missão, têm que ser auxiliadas por homens , não só brancos como pretos . São estes pretos conservados na Central de Escolha como se fossem prisioneiros. Adolescentes, moços, solteiros, vivem meses sem lhes ser permitido sair da Central : um que saísse poderia ser portador de uma fortuna inteira em diamantes engolidos ou escondidos nas partes mais secretas do corpo. Vivem uma vida de seminaristas , o seu viço de adolescentes tende a transbordar em afetos homossexuais . Homossexualismo platônico – o outro seria impossível sob a vigilância em que vivem . São bem alimentados, bem cuidados, bem alojados . O sacrifício que se exige deles é o da segregação . Segregação, castidade, renúncia à mulher. Nunca sabem quando saiem, que é para não se prepararem para a saída engolindo algum diamante . Termino a minha visita às instalações da Companhia de Diamantes tendo sob os olhos milhões de cruzeiros sob a forma de diamantes espalhados sobre uma mesa de veludo negro.
Visito ainda técnicos europeus da Companhia em suas bonitas casas, algumas de um sabor californiano e com gramados que lembram os californianos. Com sebes de buganvílias. Com jardins à inglesa. Em Vila Andrade, servem-nos um lanche perfeitamente europeu sobre um gramado também perfeitamente europeu. De qualquer modo sinto a ausência da África ; e este sentimento de ausência da África na África, em vez de me regalar, aflige-me. Sinto uma como saudade da África que está sendo esmagada, abafada, sacrificada para que a Europa e os Estados Unidos estendam por terras africanas não só as suas maravilhas técnicas adaptadas ao gosto e às conveniências de povos tropicais como as suas banalidades, as suas futilidades, os seus excessos profiláticos de antitropicalismo ».

Com todo o grau de proteção exercido pela Diamang e pela própria polícia civil, assim mesmo não era raro nos baterem nas portas de casa oferecendo diamantes ! Pedras que brilhavam nas mãos dos africanos, mostradas como relíquias valiosíssimas, e que nos faziam sonhar com a riqueza fácil. Com o LF, discutia os riscos, podiam ser pedaços de vidro, a policia podia estar atrás do vendedor , a polícia da Diamang assustava mais do que a civil, vendiam-se em Luanda estojos próprios para análise, balança e líquidos identificadores . Nunca tive coragem , não seria por ali que deixaria de trabalhar.

A qualidade da cerveja estava excelente , o problema da água agora era coisa esquecida ! Mas vinha aparecendo um possível outro problema, contado por um ou outro africano mais velho e que o davam como certo – a localização do poço junto ao rio dava para eles a certeza de que mais tarde ou mais cedo, naquela época das chuvas que já tinha começado ou em outra futura, a água do rio subiria 4 - 5 metros ou até mais e cobriria tudo ! Mesmo com a barragem ali a montante, regulando o caudal das águas ; mas com a albufeira estando cheia, não haveria salvação ! Pela vivência deles, conhecendo o rio desde crianças , era certo, iríamos ficar sem água ! Pelo menos teríamos que deslocar o quadro elétrico para uma posição bem mais elevada e onde tivéssemos acesso no caso de catástrofe .

O final de dezembro chegava , vinha com ele o Natal e o Ano Novo .

Entretanto, uma notícia preocupante nos chegava no domingo anterior ao Natal , podia até ser boa para Angola : a OPEP , que supria mais de 60% das necessidades européias de combustível, resolvia passar o preço do barril de petróleo para 12 US$ , estava a 3 há menos de 3 meses ! Tudo em razão principal da Guerra entre Israel e os Países Árabes, se falava até em boicote de fornecimento à Holanda porque esta vinha apoiando claramente as ações de Israel , na Europa se esperava racionamento, imposição de limites de velocidade , proibição de tráfego em alguns dias !
A festa de final desse ano 1973 seria diferente e inesquecível ! Dia 31 era uma segunda feira, dava um feriado grande , tempo para planejar e arrumar tudo.
Seria na minha casa, convidamos o Diretor Geral, esposa e duas filhas, o sobrinho do Sr.Quintas e a esposa , o Gerente do Banco no Dondo com a esposa , outros casais, o pessoal das quatro casas ali , o RT viria com uma moça amiga . Eu e LF resolvemos que teríamos chopp de barril , pedimos uma instalação emprestada no restaurante do Dondo, conseguimos encher manualmente e adaptar a garrafa de gás . Funcionava ! A Tininha fez toalhas floridas para as mesas, colocadas à volta da quadra de badminton que tínhamos construído ao lado da piscina, uma vela acesa em cada , holofotes e luzes do jardim acesas , instalação de som na varanda, musica de James Last e Ray Conniff . Separada das mesas , uma mesa grande , com uma toalha de renda belíssima , apresentava bolinhos de bacalhau , rissóis de camarão , camarões , tapas variadas , esperando os convidados , que começaram a chegar às seis da tarde ! Depois , para o jantar , o Manuel vinha trazendo da cozinha e colocando naquela mesa - leitão assado, cabrito assado , perú recheado, bacalhau no forno , batatas coradas e fritas , arroz de forno, saladas , maioneses !
A cerveja não dava conta da sede despertada por tanta comida , abriam-se garrafas de vinho , a quadra de badminton servia de pista de dança como rápido digestivo .
Vieram os doces, alguns que a Tininha tinha encomendado na pastelaria recém aberta no Dondo , muitos feitos em casa ; depois as frutas .
À meia noite , foi colocada em cada mesa uma garrafa de champanhe , outras aguardando no gelo . Pessoalmente , eu entreguei a cada senhora presente uma rosa de porcelana , magnífica flor , tal rosa branca em porcelana , que cresce pelos rios do Sul de Angola !
Na hora da mudança do Ano, fogo de artifício que eu e o LF tentávamos que explodisse ali por perto , aumentando o encanto do momento.
Não faltaria eu , a Tininha e os Filhos , comendo as doze passas de uva , tradição entre nós que nunca foi interrompida em todos os finais de ano passados juntos , uma a cada badalada , mesmo que sejam as de um relógio virtual !
Eram quatro horas da manhã , a Tininha estava servindo sardinhas assadas e batatas cozidas a todos os presentes, bastante acrescidos por gente do Dondo que tinha passado os festejos em Kambambe e, passando ali na estrada, se vinha juntar a nós .
Eram sete horas da manhã, muitos se jogavam na piscina, outros dormiam pelas camas dos quartos e da sala . Certamente , para ninguém aquela festa teria sido indiferente .

A vida então recomeçava em novo Ano , eu tinha agora tempo para me dedicar ao estudo das condições de trabalho das máquinas do Enchimento - Lavadora, Enchedora, Capsuladora e Pasteurizadora – procurando aumentar as suas performances , diminuir as perdas de cerveja . Pela qualidade da água , muito calcárea, as garrafas saiam da Lavadora com turvação , todas as mudanças do ciclo de lavagem não alteravam esse defeito. Procuro a solução, penso que não preciso de dois tanques de decantação , posso utilizar um deles como reservatório para água passada pelo permutador de iões que abastece a caldeira de vapor para a Brassagem - esse permutador só trabalha duas a três horas por dia – no resto do dia poderia filtrar água para aquele tanque de decantação e assim eu teria água para o último estágio da Lavadora , água sem aquele cálcio causador do problema da turvação . Funcionou !
A Enchedora é a máquina mais complicada . No início , tinham estado dois técnicos belgas que a montaram e procuraram a melhor solução , a deixando apenas razoável , os índices estavam dentro dos padrões da Heineken. Mas eu achava que podiam ser melhores, as perdas de cerveja podiam ser reduzidas. Horas olhando para a máquina girando , cada garrafa se apresentando ao carrossel giratório , uma cânula descendo do reservatório superior, entrando na garrafa, vedando-a , o liquido começando a entrar sobre pressão, depois de cheia a retirada da cânula e a ida para a Capsuladora – e nesse percurso um pouco de cerveja jogada fora pela formação de espuma , o tal do índice . Então, se queria melhorar, teria de correr grandes riscos , mexer no comprimento e no ângulo de saída final daquelas cânulas , eram mais de 50 , eu poucas tinha de reserva. Faço alguns ensaios, mais horas olhando, e numa parada de final de semana converso com o DS e os mecânicos, vamos desmontar a máquina, tirar aquelas mais de 50 cânulas e ajustá-las no torno mecânico . Todos ficamos em enorme espectativa – lá se vai o nosso razoável índice ! – montamos tudo de novo , quase 24 horas de trabalho ! A máquina funciona, gira, as garrafas começam se apresentando, são cheias e saem para a Capsuladora sem originar perdas ! Mais uma vez eu tinha acertado ! Mas desta não ia escrever para a Heineken dizendo o que foi feito, vai só aparecer nos índices , se escrever eles vão certamente ficar muito zangados pelo risco que corri !
Numa das muitas visitas a Luanda, vou com o LF , no meu carro , passamos de manhã na Sede , vamos almoçar para voltar à tarde. A Sede , com aquele Diretor Geral aviador, é uma péssima organização ! São evidentes sinais de indisciplina, a relação entre eles e elas é perturbadora, o Diretor Comercial, o meu amigo RT, dificilmente aparece – só de tarde ! O Adjunto Comercial , o tal sobrinho do Sr.Quintas é boa pessoa, mas incapaz também de dar um aspecto de empresa àquele amontoado de gente!
Voltamos do almoço , na Ilha como sempre, aproveitando da paisagem e do magnífico arroz de peixe, entro numa das avenidas principais da cidade, sigo um ônibus, paramos num sinal de trânsito. A Avenida é uma leve subida, o sinal abre , sigo o ônibus, ele quase logo faz sinal para a direita ; eu penso que vai virar, ultrapasso pela esquerda dele , não vem nenhum carro do outro lado . Não vejo nada à minha direita, só aquele ônibus, que não vira à direita , mas pára ali, encosta, na esquina com uma rua de terra batida que ali faz um T com a avenida por onde vou. Sem tempo para nada , apenas reflexo de voltar o volante para a esquerda, surge dessa rua , pela frente do ônibus, uma Kombi ! O choque é inevitável, forte ! Na Kombi , o condutor, uma criança ao lado dele, ela se machuca na face de encontro ao vidro , ele não tem nada. Eu saio do carro , atordoado , o LF não tem nada , só pequenos cortes de restos de vidro, eu tenho muito sangue que escorre para a camisa, um golpe no lábio e na gengiva, bati com a boca de encontro ao braço direito que torcia o volante para a esquerda. Já levaram a moça para o hospital , eu fico sentado na calçada, vejo o carro com a frente destruída, alguém fala que tenho de ir para o hospital, levar pontos. Deixo ali o LF , ele se ocupa de retirar o carro para uma oficina, irá depois para a Sede e para o Dondo, vai avisar na minha casa, eu pego um táxi, chego no hospital, me atendem logo de seguida, eu estou estupefato, recebo 13 pontos a frio, não dói nada , um curativo sobre o lábio cortado .
Estou com a camisa suja de sangue, pego um táxi para o hotel, entro no quarto, procuro me lavar. Saio, com a mesma camisa, vou na Companhia de Seguros, depois na oficina para onde foi o carro , o eixo foi atingido , entortou, melhor dar perda total. Meu bom Taunus !
Volto para o hotel , já é noite , aparece o RT, ficamos no bar conversando , peço que me mande um carro para me levar para o Dondo, manhã seguinte .
Acordo de manhã , sinto um enorme peso na boca, ainda estou debaixo da emoção do desastre, vou no espelho e vejo a minha cara inchadíssima , parecendo bola de futebol ! Volto correndo para a cama, quase desmaio, começo a entender o que tinha acontecido, não acho que tenha tido culpa, talvez não devesse ter ultrapassado aquele ônibus, qualquer velocidade com que o tivesse feito ia bater na Kombi, ela não podia passar pela frente do ônibus para virar à esquerda , sem nenhuma visão da avenida escondida pelo ônibus ! Que pena da mocinha , vitima inocente de um acidente tão estúpido , que possa me perdoar, embora eu não me sinta culpado da sua má sorte.
Regresso ao Dondo, manhã cedo , a Tininha está preocupada . Vou ter dificuldades para comer durante alguns dias, quebrei dois dentes de cima , não ficou bonito. O Taunus foi substituído por um Fusca que o RT me dispensou, vou ver que carro compro , tem um Fiat 125 que me seduz .

Algum tempo depois , recebo uma visita inesperada – o Diretor Geral vem com dois contadores holandeses conhecer a Fábrica , de avião . São dois sujeitos por volta dos 60 anos , baixos, poucas falas, educados . O « aviador » não lhes presta muita atenção, acha certamente que estão abaixo do seu nível de relacionamento (ora , contadores ! ) , mas eu me entusiasmo, gosto de mostrar a Fábrica, evidenciar a extrema limpeza, os Vestiários, Escritórios, os Armazéns, o Refeitório, levo-os no Tratamento de Água, explico os problemas, eles me parecem muito interessados , estranho esse interesse em contadores, não seria normal. Terminam de ver as instalações, não querem ir ao Bar , preferem voltar aos Escritórios, vão para a Sala de Reuniões. Bebem café, água , fazem mais perguntas, o « aviador » fala algumas coisas , erradas , eu intervenho , corrijo. Vão embora , não falam muito, corretos.

Final de fevereiro , o General António de Spínola publica um livro comentado por todos os jornais e rádios , que principalmente os portugueses europeus em todas as colônias recebem entre apreensivos e esperançosos – « Portugal e o Futuro » . O General Spínola tinha sido recente Governador Militar da Guiné, onde havia ganho enorme prestígio tanto por ações militares ousadas e vencedoras, como por aproximação aos movimentos revolucionários, e ocupava desde o início de janeiro o cargo de vice –chefe do Estado Maior das Forças Armadas .
O General António de Spínola, com a experiência da guerra na Guiné e de Angola, questionava no livro a atitude de Lisboa face à situação nas colónias.
Apesar de Spínola pretender uma transição pacífica de regime, sem recurso à via revolucionária, o livro marcou a ruptura clara do mais prestigiado general português com o regime de Marcello Caetano.

"Este livro surge, além do mais, como um imperativo moral de quem não pode conter-se", escreveu Spínola no intróito de um documento que colocou claramente a guerra em África como uma causa perdida.
António de Spínola estava convicto de que se tornara injustificável o sacrifício exigido aos militares portugueses.
"Se não podemos aceitar a ideia de que seja em vão tanto sacrifício, tão pouco podemos admitir que hoje se morra apenas para que amanhã continue a morrer-se", escreveu.
"Apenas resta uma via para a solução do conflito – e essa eminentemente política. Podemos chegar à conclusão que, em qualquer guerra deste tipo,a vitória exclusivamente militar é inviável", alertou.
"Pretender ganhar uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, de antemão, a derrota, a menos que se possuam ilimitadas capacidades para prolongar indefinidamente a guerra, fazendo dela uma instituição. Será esse o nosso caso? É evidente que não", acrescentou. O general propôs, por isso, uma "análise objetiva, de repensamento de estratégias e de formulação de opções", chegando mesmo a admitir a possibilidade de uma consulta à Nação.
Para António de Spínola, "debater civicamente um problema grave da vida da Nação, em todos os seus ângulos de análise e em clima de aberto e franco diálogo", seria "a mais eficaz medida anti- revolucionária e um passo decisivo na construção de uma ordem social".
No livro, o general abordou também a necessidade de uma "aceitação de princípios", sendo o primeiro dos quais "o reconhecimento dos povos à autodeterminação".
A partir desse reconhecimento, Spínola considerava que os portugueses poderiam "construir a verdadeira unidade, capaz de resistir às vicissitudes do presente".
"E este princípio aponta para uma autonomia progressiva, em clima de crescente expressão das instituições africanas", defendeu.

Os sentimentos expressos por Spínola não eram diferentes dos que eu pensava, acreditava que Angola poderia seguir o caminho da independência , se transformando num magnífico país, um Brasil menor, com a mesma miscigenação, gente pacífica, se beneficiando do enorme volume de riquezas que estavam ali ao dispor pela força do trabalho .

Passava o mês de março, me chamam para ir a Luanda, final da tarde no Hotel Trópico, no bar. Encontro aí Monsieur B , dois metros de altura, meia idade, bastante simpático, apenas o conhecia de apresentação rápida , era o responsável pela Ibecor , chefe de Monsieur S . A reunião tem caráter amigável, eu me dou conta logo ao início . Monsieur B me diz que na Heineken tinham substituído o cronograma das expansões pelo meu , o deles previa o dobro do tempo, eu tinha-lhes mostrado que era possível fazer muito mais rápido . Contei-lhe que ele precisava passar pelo Dondo para ver os registros que eu tinha montado em algumas cubas !
Me pergunta se eu sabia quem eram aqueles dois sujeitos que foram na Fábrica . Contadores, eu digo, até me deram cartões de visita . Não , eram os donos da Heineken, tinham vindo visitar as instalações na África do Sul , resolvido passar por Luanda e visitar a sede da EKA. Ficaram tão mal impressionados com a forma como foram atendidos, com o que viram , que ali mesmo resolveram vender a participação da Heineken !
Com a decisão já tomada, ainda assim resolveram ir ver a Fábrica, para melhor avaliarem o negócio de que iam se desfazer . Por sorte eu estava lá, dizia Monsieur B. Ficaram tão bem impressionados com a Fábrica e comigo, que desistiram da idéia da venda ! Razão então dele me chamar ali , ao Hotel ( a relação dele com a EKA não podia ser pública, havia a outra fábrica de cervejas de que eram também donos, o cartel era proíbido pelo Governo).

Simples, o « aviador » ia ser despedido , o cargo ficava vago, ele queria que eu o ocupasse , Diretor Geral da EKA ! Não esperava por aquilo, os meus desentendimentos com o Diretor Geral , e com os outros que tinham por lá passado , só visavam melhorar a Empresa, não pensava naquele cargo, não me sentia preparado , a minha formação era exclusivamente técnica . Monsieur B me dá o exemplo dele, no Banque Lambert de que era Presidente – eu era como você , me preparei, aprendi, você vai fazer o mesmo.

Achei que se podia encontrar uma solução conciliatória para a Empresa e para mim – ficaríamos eu e o Diretor Comercial ( se este concordasse ) dividindo as funções do Diretor Geral , eu continuaria como Diretor Técnico mas viria morar em Luanda , faria o acompanhamento da Fábrica para preparar o LF e , depois, mais para a frente, podíamos conversar. Não sei se ele gostou, mas aceitou .

As vendas de cerveja estavam indo muito bem , a Fábrica na capacidade máxima – Monsieur B acha que podemos reduzir o ciclo , de 21 para 14 dias. Concordo , a qualidade atual suportaria , o giro estava sendo rápido, passaríamos a 30 milhões de garrafas /ano , algo como 12% do mercado ,talvez um pouco mais, excelente para uma fábrica com 2 anos e poucos meses de atividade . Monsieur B vai agilizar a vinda de um especialista para os testes.

Converso com o RT, claro que ele aceita, a Tininha se delicia entretanto com uns magníficos pastéis vol- au – vent com creme de camarão feitos pela cozinha do Hotel Trópico , segundo ela nunca tinha comido melhores ! O Hotel tem também uns drinks , marca importada , em longos copos enfeitados , que eu bebo com tanto prazer que vou passar a procurar essa marca nas minhas futuras viagens . Vamos procurar casa em Luanda , tínhamos desistido daquela alugada ao início, pedimos ao RT que a área comercial nos ajudasse , eles sempre sabiam das melhores ofertas .

Abril , 25 , notícias urgentes nos arrastam para os rádios, alguns já tinham escutado , tentam contar, tudo muito confuso, ali no Dondo estavamos bem longe do Mundo ! Mas há uma revolução em Portugal , o Governo destituído , o povo está nas ruas, uma grande festa

23 de abril - Otelo Saraiva de Carvalho entrega, a capitães mensageiros, sobrescritos fechados contendo as instruções para as ações a desencadear na noite de 24 para 25 e um exemplar do jornal a Época, como identificação, destinada às unidades participantes.
24 de abril - O jornal República, em breve notícia, chama a atenção dos seus leitores para a emissão do programa Limite dessa noite, na Rádio Renascença .
24 de abril – 22:00 horas - Otelo Saraiva de Carvalho e outros cinco oficiais ligados ao MFA ( Movimento das Forças Armadas ) já estão no Regimento de Engenharia 1 na Pontinha onde, desde a véspera, fora clandestinamente preparado o Posto de Comando do Movimento. Será ele a comandar as operações militares contra o regime.
24 de abril – 22:55 horas - A transmissão da canção " E depois do Adeus ", interpretada por Paulo de Carvalho, aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa, marca o início das operações militares contra o regime.
25 de abril - 00:20 horas - A transmissão da canção " Grândola Vila Morena " de José Afonso, no programa Limite da Rádio Renancença, é a senha escolhida pelo MFA, como sinal confirmativo de que as operações militares estão em marcha e são irreversíveis.
25 de abril – Das 00:30 ás 16:00 horas - Ocupação de pontos estratégicos considerados fundamentais ( RTP, Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Aeroporto de Lisboa, Quartel General, Estado Maior do Exército, Ministério do Exército, Banco de Portugal e Marconi).
Primeiro Comunicado do MFA difundido pelo Rádio Clube Português Forças da Escola Prática de Cavalaria de Santarém estacionam no Terreiro do Paço.
As forças paramilitares leais ao regime começam a render-se: a Legião Portuguesa é a primeira.
Desde a primeira hora o povo vem para a rua para expressar a sua alegria.
Início do cerco ao Quartel do Carmo, chefiado por Salgueiro Maia, entre milhares de pessoas que apoiavam os militares revoltosos. Dentro do Quartel estão refugiados Marcelo Caetano e mais dois ministros do seu Gabinete.
25 de abril - 16:30 horas - Expirado o prazo inicial para a rendição anunciado por megafone pelo Capitão Salgueiro Maia, e após algumas diligências feitas por mediadores civis, Marcelo Caetano faz saber que está disposto a render-se e pede a comparência no Quartel do Carmo de um oficial do MFA de patente não inferior a coronel.
25 de abril - 17: 45 horas - Spínola, mandatado pelo MFA entra no Quartel do Carmo para negociar a rendição do Governo.
O Quartel do Carmo hasteia a bandeira branca.
25 de abril – 19:30 horas - Rendição de Marcelo Caetano. A chaimite Bula entra no Quartel para retirar o ex-presidente do Conselho e os ministros que o acompanhavam, levando-os, à guarda do MFA para o Posto de Comando do Movimento no Quartel da Pontinha.
25 de abril - 20:00 horas - Disparos de elementos da PIDE/DGS sobre manifestantes que começavam a afluir à sede daquela polícia na Rua António Maria Cardoso, fazem quatro mortos e 45 feridos.
26 de abril - A PIDE/DGS rende-se após conversa telefónica entre o General Spínola e Silva Pais diretor daquela corporação.
Apresentação da Junta de Salvação Nacional ao país, perante as câmaras da RTP.
Por ordem do MFA, Marcelo Caetano, Américo Tomás, César Moreira Baptista e outros elementos afetos ao antigo regime, são enviados para a Madeira.
O General Spínola é designado Presidente da República.
Libertação dos presos políticos de Caxias e Peniche.
Após 48 anos de ditadura, Portugal estava voltando a ter um regime democrático . O movimento aparecia para os portugueses com um programa que se definia por três Ds: Democratização, Descolonização e Desenvolvimento. A revolta militar tinha sido uma consequência dos 13 anos de guerra colonial, em que os portugueses enfrentaram os movimentos de libertação nas suas colônias : Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste .
« Trinta anos depois do Dia-D, começo da libertação final da Europa, nas margens do mesmo Oceano Atlântico, somente que mais ao sul, quando ele banha Portugal, também os resistentes antifascistas aguardavam uma mensagem em código. Eram os integrantes do MFA (Movimento das Forças Armadas), composto por jovens capitães do exército português quem estavam em alerta. Às 0,20 h. do dia 25 de abril de 1974, a Rádio Renascença colocou no ar a música de Zeca Afonso “Grândola, vila morena”, cujas letras falavam em fraternidade, igualdade, e dum estranho lugar onde “O povo é quem mais ordena”.
Os regimentos aquartelados nos arredores de Lisboa, em estado de prontidão, sabiam do se tratava. Do seu QG no Quartel da Pontinha, o major Otelo Saraiva, um protegido do general Spinola, deu então a ordem para que eles se movessem. Comandando a EPC (um regimento de cavalaria de Santarém), o capitão Salgueiro Maia entrou com sua coluna na capital ainda às escuras, estranhando muito aquele silêncio.
Quando o dia amanheceu ele já ocupara o Terreiro do Paço sem fazer um só disparo. Os lisboetas, estupefatos, começaram a se aproximar dos tanques e dos caminhões. Não sabiam bem do que se tratava. Viram que as armas não apontavam contra eles mas sim contra os prédios do arcaico regime. A euforia da multidão então começou.
Quando as vendedoras de flores chegaram ao Rossio, o gesto delas foi espontâneo: enfiavam cravos vermelhos na ponta dos fuzis. Que diabos de revolução era aquela? Não se ouviam canhonadas nem gritos de dor. O povo, endoidecido pela súbita lufada de liberdade, subia nos tanques e se abraça nos soldados. Mulheres, crianças, velhos, todo mundo saiu de casa para celebrar aquele acontecimento extraordinário. A Lisboa dos tristes fados, naquele dia tornou-se a cidade mais alegre de toda a Europa. Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros, o herdeiro político do ditador Oliveira Salazar, refugiou-se no Quartel do Carmo, onde os carros de assalto de Salgueiro Maia o cercaram. Enquanto isso os espiões da PIDE (Polícia internacional de defesa do estado) resistiam a tiros do alto do seu QG na rua Antonio Maria Cardoso, até que fossem rendidos no dia seguinte.
Ao longo daquela quinta-feira chuvosa, todas as cidades importantes de Portugal, fosse Évora, Coimbra ou o Porto, caíram no controle dos militares rebelados. O Estado Novo, regime dos mais retrógrados da Europa, sustentado há quase meio século pela roça e pelo confessionário, ruíra com uma facilidade impressionante. Esfumou-se em apenas 17 horas pela firme decisão de um punhado de oficiais decididos a implantar uma democracia em Portugal »

Só uma meia dúzia de dias depois, em princípios de Maio, no Zaire e na Zâmbia, os movimentos de libertação reagiram ao golpe militar em Portugal , com proclamações de continuação da luta até à independência total .
Em 1974 , o exército português controlava militarmente todo o território - as operações tinham cessado em 1972 e a livre circulação era um fato ; aquelas proclamações de continuidade de luta eram portanto vistas como falácias .
Após o surgimento, em meados dos anos 60, de atividade militar no interior - o MPLA abre em 66 a Frente Leste, a UNITA ataca Vila Teixeira de Sousa, na fronteira catanguesa, em fins de 65 - , esses dois movimentos encontravam-se minados por profundas crises internas.
Agostinho Neto – MPLA - mandara fuzilar, dois anos antes, vários comandantes no Leste, após a revolta dos Bundas, e o movimento estava recuado na Zâmbia, envolvido num debate interno para a revitalização daquela frente. Chipenda proclamara no ano anterior a cisão, em protesto contra a assinatura, por Neto e Holden Roberto , do inesperado acordo para a criação do Conselho Supremo para a Libertação de Angola. Mais tarde, já em 74, mas ainda antes do 25 de Abril, viria a surgir uma outra facção, a Revolta Ativa, propondo amplo debate para a redefinição da estratégia da luta de libertação.

Pelo lado da FNLA, as coisas não estavam melhores. Apesar de se saber que o movimento, com apoio de Mobutu, estava a formar no Zaire um exército de 9.000 homens, treinado por instrutores chineses e bem armado, Holden Roberto estava precisado de quadros dirigentes. Mandara fuzilar, após a revolta de Kinkuzo, no Zaire, em princípios de 72, dezenas de oficiais do seu Estado-Maior, e vários outros haviam fugido para Brazzaville .

A UNITA encontrava - se no interior , abaixo da linha do trem de Benguela, sem atividade militar conhecida .

Tarde de sábado , 4 de maio , estou deitado sobre a cama , rádio ligado para escutar alguma coisa mais sobre aquela Revolução dos Cravos que começava a me preocupar . Ouço então o General Costa Gomes , representando a Junta de Salvação Nacional , que chegava a Luanda

« Quis o destino que seja precisamente na maior parcela do Portugal de hoje que sinta a obrigação de exprimir em público uma interpretação sincera do fenómeno político agora em curso.
Nenhuma província, nenhum grupo e nenhuma raça terão permissão para impor uma solução aos nossos problemas políticos que não tenha passado pelo crivo de um teste democrático.
É nossa intenção continuar a lutar contra as guerrilhas e essa posição manter-se-á até que os guerrilheiros aceitem a nossa oferta para depor as armas e se apresentem como um partido político legal »

Mandei reforçar as posições de guarda em torno das residências, fui buscar as armas que estavam guardadas no fundo de uma mala num armário do quarto - duas metralhadoras e uma pistola - e passei a tê- las armadas , ao lado da cama . A situação não era confortável , apenas suspeitava.

O Diretor Geral , o aviador , foi embora ! Ainda passei o constrangimento da reunião de despedida na sala dele , pequenos discursos , não tinha feito muitos amigos. Venho então a ficar alguns dias na Sede , fico no hotel à noite, começo a inteirar-me dos problemas gerais, deixo todos os da área comercial para o RT. Pelo menos o ar de desleixamento que se manifestava naqueles escritórios já tinha desaparecido . Um certo ar de cumplicidade entre eles e elas, também . As atividades eram poucas, mais centradas na parte contábil e financeira e nas atividades de suprimento às necessidades da Fábrica .

Como nos anos anteriores , a reunião do Conselho da EKA seria em maio , então recebo as visitas dos técnicos holandeses , VR e SL, e depois a de Monsieur S. Aqueles registros que eu tinha comprado em Luanda iam ser motivo de brincadeira de Monsieur S com os holandeses , estes só então aceitaram que o envio de material para a montagem estava errado ! Mostrei para VR as melhorias nas instalações, em particular como a Enchedora tinha agora um notável desempenho ; expliquei-lhe o que tinha feito nas cânulas e que tinha omitido isso nos meus relatórios – concordou que foi melhor porque a minha coragem não seria entendida pela Heineken !

Logo na chegada à Fábrica , Monsieur S me surpreendeu – acabando de me cumprimentar ,mandou que demitisse o Chefe de Pessoal, aquele amigo do Prefeito do Dondo , sem nenhuma explicação. Há ordens que não se discutem – não quis saber os motivos, mandei efetuar a demissão imediatamente ( depois , esse ex-funcionário voltaria a trabalhar na Prefeitura, sempre me cumprimentava , eu suspeitava que a demissão tivesse tido origem no 25 de abril, algo como ele ser da Polícia Política, alguma coisa como informante ) .

Claro que com Monsieur S o grande assunto seria o 25 de abril . As possíveis consequências imediatas para Angola , a repercussão na EKA - eu lhe informando que até ao momento não tinha havido qualquer manifestação dos trabalhadores . Ele já tinha estruturado uma série de melhorias para o pessoal africano , inclusivé de aumentos salariais, quase dobrando o salário hora, que me antecipava autorização para implantar logo que eu achasse necessário . Ele tinha passado todos os problemas da independência do Congo Belga, agora Zaire , nos anos 50/60 , isso lhe servia de parâmetro para julgar das medidas que certamente seriam necessárias , até segundo ele algumas não tinham ainda sido implantadas porque a EKA não podia se diferenciar no tratamento aos funcionários daquilo que era o padrão das outras empresas de Angola e também política do Governo.

Nessa avaliação de possíveis problemas futuros, perguntei a Monsieur S qual a política da Heineken em relação aos funcionários europeus , retirada de familiares, assistência a estes , suporte financeiro . A resposta foi rápida e seca – não , a Heineken não faria nada ! Não esperava , para mim não havia por dar agora aquela resposta na forma tão fria e tão definitiva como ele a dera ! Eu pensava o que aconteceria se eu fosse dizer isso aos funcionários, como ficaria a motivação deles , o que fariam ? Entendia que obviamente a proteção cumpria ao Governo Português, mas nós estávamos falando da manutenção das operações da EKA em caso de perturbações sociais , um apoio adicional para motivar e possibilitar aos funcionários o ultrapassar possíveis problemas de insegurança pessoal. Senti que a minha confiança na Heineken se rompera, o relacionamento passava a ser mercenário, eu não teria por que proceder a sacrifícios , à Heineken não estaria interessando a manutenção de funcionários europeus portugueses !

Perguntei então a Monsieur S – e no meu caso , o que posso esperar de apoio para meus familiares ? Do mesmo modo , a resposta foi rápida e seca – nada ! Com as lágrimas chegando nos olhos , a voz insegura, eu retruquei sem muito pensar – Monsieur S, então eu estou indo embora !

O ambiente ficou pesado , não sei se Monsieur S entendeu ali a firmeza do meu propósito , mas na verdade eu só era mais um funcionário europeu, português . Fomos almoçar, com VR e SL, falei muito pouco.

Voltamos para a Fábrica, Monsieur S regressa a Luanda, não entra nos Escritórios, eu vou buscar qualquer coisa, deparo em cima da minha mesa , lugar bem à vista, uma carta dos funcionários. Abro, leio rapidamente, é um conjunto de reivindicações , com assinatura de muitos funcionários, mostro a Monsieur S, digo-lhe que não se preocupe, no dia seguinte irei a Luanda para conversarmos .

Aquele meu dia ia realmente ser diferente ! Chamei o LF e o DS , pedi à minha secretária que providenciasse para que todos os assinantes daquela carta estivessem no Refeitório, fui para lá.

Todos presentes, sentados , mandei fechar a porta, mandei separar - os brancos para o lado esquerdo , eram poucos , uns seis , os africanos para o lado direito , eram muitos, mais de vinte , os mais importantes na Fábrica. Todos estavam em absoluto silêncio , algum receio talvez , eu agia por puro instinto, talvez muito magoado pelos acontecimentos da manhã , o LF e o DS ao meu lado , acho que também assustados.
Perguntei aos africanos se eles tinham assinado aquela carta .Que sim , tinham . Perguntei se sabiam o que a carta continha . Que não , não sabiam , só lhes tinham pedido que assinassem. Li para eles – a carta só tinha reivindicação para branco ! Nesse momento , do lado esquerdo o movimento foi unânime – Sr. Engenheiro, por favor , queremos que anule a carta.

Achei sensato, mas o meu dia não podia ficar assim - como assinaram a carta, é então porque têm reivindicações , precisam saber quais, vamos formar grupos de trabalho com todo o pessoal da Fábrica, europeus e africanos, orientados pelas chefias , esses grupos formulam questões , depois vamos discuti-las em reunião de todos aqui no Refeitório, hoje, durante a noite, até à hora que for preciso, amanhã à tarde eu levo para Luanda a pauta que tenha tido aprovação geral , para Monsieur S.

A minha solução havia sido brusca, intuitiva , talvez não tivesse sido a melhor , mas ela me deixava bem comigo mesmo, de certa forma era o meu reconhecimento a todos os que me auxiliavam a fazer daquela Fábrica ali , no topo do Mundo , um local de muita satisfação quer profissional quer de prazer no convívio humano , talvez aquela solução pudesse recuperar o elo que se tinha quebrado pela manhã .

Aquela noite foi dos momentos mais inesquecíveis dos anos no Dondo ! A participação foi total , ninguém saiu, as discussões decorreram sem incidentes, me trouxeram as listas de cada grupo, eu em mesa na frente de todos no Refeitório , lendo cada item , pedindo explicações e ouvindo-as deles, africanos que se levantavam no meio dos colegas e falavam , contavam das suas dificuldades , não em frases bonitas mas com sinceridade . A lista final que resultou das discussões ( e da minha depuração , eu sabia o que iria ser aprovado ! ) , foi aprovada por unanimidade , continha como itens principais aumentos imediatos de salários e melhorias na assistência médica , certamente ninguém esperava tanto e da forma surpreendente como o tinha sido. Da carta de reivindicações original, dos brancos, não havia nenhum item , a principal batalha deles era por férias com passagens pagas para a Europa, eles e famílias , benefício que só era concedido a quem tinha sido recrutado na Europa, meu caso , do DS e do LF.

Fui para Luanda, depois do almoço , a lista foi totalmente aprovada, avisei o DS que podia transmitir para todos.

Na reunião do Conselho ia ficar decidida a obra de deslocamento do quadro elétrico do poço de captação para uma posição mais elevada em relação ao rio . Monsieur S decidia também que a Fábrica teria de resolver em definitivo e em futuro próximo a questão da água , vindo captá-la na Vila do Dondo, onde a Prefeitura tinha a captação para abastecimento da cidade , água excelente , e levá -la daí para a Fábrica, ao longo do percurso da estrada , o responsável por essa obra seria eu !

Do assunto de suporte à família no caso de convulsão social, não se falou mais, eu iria ter um mês de férias logo a seguir, iria a Rotterdam e depois a Bruxelas, onde estaria de novo com Monsieur S.

De tanto procurar, aluguei um excelente apartamento em Luanda , 4º andar de bom prédio , esquina da Praça Luanda , Mutamba como todo o mundo chamava . Podia começar a mandar fazer os caixotes para transferir as minhas coisas , o que faria logo que a pintura do apartamento fosse concluída , atividade que iria ser feita durante as minhas férias, mudança logo depois da chegada.

Recebo entretanto mais uma visita – um técnico da Heineken para acompanhar a passagem do ciclo de produção da cerveja para 14 dias. É um checoslovaco, já de idade, ainda de família nobre, fugido em razão da ocupação russa, reclama pelos muitos bens de que a família foi espoliada , inclusive uma fábrica de cerveja , sonha com o retornar a antigas grandezas.

A mudança do ciclo não oferece quaisquer problemas , a qualidade da cerveja não se altera , pelo menos para um consumo tão rápido como o que estávamos tendo. O checoslovaco não faria falta , de resto ele mais aproveitou o tempo de estadia por Angola para beber!

Aqueles europeus, brancos , da carta de reivindicações, não estavam satisfeitos ! Um domingo, manhã cedo, abro um jornal de Luanda e deparo com um anúncio que me espanta - é de pedido de emprego , um grupo de técnicos europeus , da Fábrica de Cerveja EKA – dizia explicitamente o nome da empresa – procuravam emprego ! Eram 5 , dizia também os cargos de cada um !
Chamo o DS a minha casa, ele não sabe de nada, mas nós sabemos o motivo daquilo – são as tais férias pagas na Europa !
Vou na Fábrica, falo com todos os guardas, aqueles funcionários estavam expressamente proíbidos de entrar na Fábrica, qualquer que fosse o pretexto , e eu tinha a certeza de que não entrariam ! Com o DS, penso em contratar gente em Luanda , não seria difícil, tínhamos até alguns bons africanos que de imediato ajudariam em caso de problemas ; da operação de Brassagem , o responsável era um deles, eu tomaria conta . Os 5 funcionários seriam de imediato desligados , as casas desocupadas.

A situação ficaria assim durante alguns dias , eu não fiz muita força no desligamento . A Tininha foi a primeira a me trazer notícias , as esposas de alguns deles vinham falar com ela para pedir que eu voltasse atrás, preocupadas porque eles tinham um emprego excelente, tinha sido uma besteira , irresponsabilidade.

Fico irredutível . Exijo pelo Setor de Pessoal que cada um venha pessoalmente na minha sala se desculpar e assinar um documento com essa desculpa , se o entender . Um por um , vêm e se desculpam , eu relevo , voltam a trabalhar .

Com o RT e o Gerente Comercial espanhol , as visitas dos vendedores à Fábrica passaram a ser frequentes , fazemos reuniões com o pessoal da Fábrica, que invariavelmente terminam com todos sentados em torno de garrafas de cerveja e de bastante comida. Aí , muitas conversas, sobre os casos do dia à dia , um dos funcionários mulatos do Setor de Pessoal lembra os primeiros tempos da Fábrica - « vocês não imaginam como aqui era duro no início, o Eng. Graça todo o dia com a agenda debaixo do braço , ninguém parava ; agora está moleza ! » Entre os vendedores, um tem pequena deficiência física numa perna, europeu , cabelo e barba grandes , intelectualizado, falante. Conversa-se sobre a situação de Angola, ele é convicto, Angola será independente , eu falo das dificuldades , ele me diz – Sr. Engenheiro, vamos precisar de gente como o senhor .

Uma tarde dos fins de junho , nos passeios que dávamos pela Fábrica , eu e o LF , ficamos parados no terreno livre que ficava da Portaria até ao galpão da Brassagem. Para trás da Portaria o Sol começava a baixar, a luz avermelhada realçava a beleza das árvores, a estrada passava ali no alto , dela em boa extensão se podia ver a Fábrica . Eu imagino como seria bonita a visão que teríamos de uma varanda que ali estivesse , talvez prédio de um restaurante, porque não do clube da EKA, ali na frente dele podia ser um campo de futebol de salão, ao lado os vestiários, uma bancada lateral para o público ! As dimensões estavam traçadas na minha cabeça , eu conseguiria interessar Monsieur S. Afinal , alguém não tinha dito que eu podia fazer o que quizesse ? Não sabia , mas esse estava sendo o meu último apego àquela terra, o desejo de construir um sonho, trazido do outro lado da costa de África, de Moçambique , da visão dos campos do Gurué . Tudo ia ficar ali , apenas uma idéia sobre aquele terreno , uma visão de que os caminhos poderiam ter sido diferentes.

Eu continuava sem carro,namorava aquele Fiat 125 mas não me decidia, o João António tinha passado no Colégio , a Paula e a Olga na Escola, a Tininha entrava em férias do Colégio. Íamos para Lisboa, um mês de férias que certamente me faria ver mais claramente a situação de Portugal e os caminhos que seriam seguidos por Angola .

Nos fins de julho de 1974 , Lisboa vivia num estado eufórico de criança que ganha seu brinquedo ! Liberta de mais de 40 anos de autoritarismo, a censura extinta, a cidade era um caos de convivência ! A pornografia se espalhava pelas ruas, as suas revistas se ofereciam escandalosamente abertas na calçada, os cinemas exibiam filmes pornográficos sem qualquer indicação a menos das fotos de publicidade expostas nas vitrines, às vezes nem muito elucidativas, as paredes dos edifícios e dos monumentos estavam escondidas por cartazes de todos os tipos, pela cidade era frequente o encontro com grupos que se manifestavam politicamente , às vezes de forma desordeira, os jornais eram um tumulto de informações contraditórias , a educação tradicional nos restaurantes e lojas estava sendo substituída pela desatenção e até pela grosseria .

Logo a seguir ao 25 de abril , tinham regressado a Portugal os Presidentes do PCP – Partido Comunista Português e do PS – Partido Socialista, Álvaro Cunhal e Mário Soares ,foram libertados todos os presos políticos.
O Governo eleito após o golpe militar assentava numa Junta de Salvação Nacional com representantes dos três ramos da Forças Armadas , a qual tinha nomeado um Presidente da República, o General António Spínola , e um Primeiro Ministro , Adelino Palma Carlos , um advogado liberal de prestígio ; nos Ministérios incluíam-se aquelas lideranças do PCP e do PS ; o MFA ( Movimento das Forças Armadas , de elementos na maioria com formação marxista) que tinha organizado e liderado o golpe, mantinha-se como Comissão Coordenadora e constituía um Governo paralelo ( detentor da força das armas ) .
Os graves conflitos logo surgidos entre ideologias , tinham levado Palma Carlos a demitir - se , tendo sido substituído em 18 de julho por Vasco Gonçalves, que era o membro mais graduado do MFA , Coronel de Engenharia , também o mais politizado , marxista convicto na ideologia e na prática .
Os artigos nos jornais , as entrevistas de políticos , os sinais desse Governo que começava , principalmente o comportamento dos militares do MFA , deixavam transparecer um estranho caminho para as Colônias : queria – se a retirada das tropas , parar de gastar dinheiro do País com a guerra colonial ( esqueciam-se as receitas que Portugal auferia , só as de Angola já pagavam todas aquelas despesas) , deixar o destino das Colônias nas mãos das populações , que certamente acabariam por ser manipuladas pelos partidos de formação marxista , caso do MPLA em Angola. Os Sindicatos eram liderados pelo PCP, que fazia valer agora a organização obtida com os anos de luta antifascista , todos os outros partidos políticos eram insipientes , falava-se em estatização das grandes empresas , iniciavam-se greves, ocorriam invasões descontroladas de casas e de propriedades agrícolas . O País estava sendo conduzido para um socialismo de limites desconhecidos, com uma população sem experiência de vivência política, aberta aos interesses de alguns, aproveitadores ou idealistas .

Por mim , não tinha muitas escolhas , a Tininha se opunha a que eu ficasse em Angola e ela e os Filhos em Portugal , aquela posição de Monsieur S tinha sido clara , a minha também o começava a ser depois da chegada a Portugal .

Na situação do País, a casa de Pombal com os meus Sogros era um oásis . Procurei arranjar um carro , anúncios de jornal, tinha pessoas alugando por temporada, consegui um Fusca não muito caro , quase novo, carro desconfortável mas seguro para me levar a Rotterdam e Bruxelas.

A viagem seria de poucos dias, os Filhos ficam na companhia dos Avós , já conhecemos bem as estradas , podemos desfrutar da viagem em pleno mês de férias dos europeus.

Rotterdam continua linda ! A cidade sempre encanta pela aparência florida de múltiplas cores das suas ruas, tem um charme de cidade sofisticada mas recolhida, é um conforto para aqueles dias inquietos de Lisboa.
Na Heineken , VR e SL me acolhem com a delicadeza de sempre. Me levam a conhecer as mais recentes experiências da Empresa – cerveja em lata , de aço, cerveja sem álcool, intragável - , vejo filmes sobre a maquete e visito as instalações da nova fábrica que substituirá a de Rotterdam , em Zoetewoude , analizamos instalações de bar para cerveja em chopp , máquinas diversas de última geração que já estão na intenção da Heineken – e meu desejo – de serem colocadas em Angola ( a Fábrica faria nova expansão para instalar enchedora de barris ) .
Monsieur St nos convida para jantar , com a esposa , certamente agradecida daquela receita de tarte de amêndoas . Mas numa reunião dos últimos dias da minha visita St me fala que a EKA não está produzindo na capacidade máxima , tem as contas feitas , comparou com os meus relatórios, eu estou produzindo abaixo das possibilidades dos equipamentos ! Não fico zangado , só divertido, como vou dizer para ele que não , que eu estou acima do máximo ? Se eu até junto água no estágio final para encher as cubas até ao topo ! Faço com isso o volume de cerveja que se gasta no Refeitório !
No dia seguinte , entro de manhã na sala do SL e de imediato este me pede desculpas , me diz que o St quer falar comigo, também ele me quer pedir desculpas – ele , SL , tinha dado ao St a fórmula errada para cálculo da capacidade ! Ah, pois, mas não vão saber da minha artimanha !

Vou para Bruxelas, falar com Monsieur S . Este tem um contrato novo da minha relação de trabalho com a Ibecor – nele tenho as funções de Diretor Geral compartilhadas com o Diretor Comercial, aumento de salário, direito a um carro da Empresa – um Fusca – e , em caso de necessidade, a Esposa e os Filhos terão uma remuneração em Portugal , complementar à minha em Angola . Essa remuneração seria de 20.000 escudos, líquidos, excelente, não gostei do Fusca !

Não tenho nenhuma certeza sobre o Futuro , ali , de longe, quero esquecer que aconteceu a Revolução dos Cravos, que Portugal se debate em discussões marxistas, que a condição social de Angola pode vir a sofrer profundas mudanças. Assino o contrato, permaneço no meu sonho .

A volta a Pombal não deixaria de ter estórias ! Fazemos a viagem com pressa , queremos chegar rápido a Pombal , rever os Filhos, entramos em Espanha já de noite , a Tininha conduzindo , eu quase dormindo, ela me pergunta se temos gasolina que chegue, não será melhor parar , encher. Naquele estado de semi-inconsciência, digo que não , temos muita gasolina , pode ir conduzindo . Acho que não andamos muito, daí a pouco o motor do carro pára , a Tininha me acorda, assustada, tem de encostar o melhor possível na beirada da estrada ! É noite adentro, tento fazer sinal para algum carro que passa, mas naquela hora ninguém é prestativo. Ficamos ali, com luzes de alerta piscando, vidros fechados, até de madrugada. Um caminhão vai-me levar até ao posto mais próximo , a Tininha fica ali no meio de Espanha, volto em outro caminhão, podemos seguir viagem para a fronteira com Portugal.
Entramos em Portugal, aquelas estradas da Guarda são muito perigosas , montanha, curvas sucessivas, fechadas . Saída de uma curva para a direita , ligeira subida, um carro passa por nós , descendo, alta velocidade , quase desgovernado , cheio de gente , por sorte nossa – a tal mão do Destino que nos acompanha ! ou não ! – não nos atinge ! Eu digo, esse carro ainda vai bater em alguém ! Não tinha acabado a frase, um estrondo tremendo atrás de nós, certamente de batida de carros, não visível pela sucessão de curvas . Que fazer ? A estrada é muito apertada para virar o carro e voltar atrás , foi certamente um acidente, espero que outros carros dêem apoio , sigo viagem , medroso.

No dia seguinte, o jornal estampava o desastre , vários mortos e feridos !

Chegamos a Pombal , temos um telegrama de Luanda, do Diretor Comercial , o RT. Dizia para não levarmos os Filhos no regresso a Angola , em Luanda ocorriam pesadas lutas , tiros por toda a parte ! Mais uma vez , mão do Destino que nos acompanha !, ou não ! , estou numa situação privilegiada , vim a Portugal na melhor altura , posso aqui pensar na decisão a tomar com base na movimentação política que antevejo, tenho os meus Filhos a salvo.

Mas tenho que voltar a Angola, temos os bens lá, objetos da casa , conta bancária. A Tininha quer ir comigo , não me deixa ir sozinho . Deixamos os Filhos em Pombal , vamos para Luanda.
Na chegada a Luanda , RT nos espera, está preocupado , diz que tinha tudo preparado para fazer retornar os Filhos se nós os trouxéssemos . É um bom amigo, a nossa relação na EKA é muito boa, eu aceitava o comportamento pouco ortodoxo dele mas o que interessava eram os resultados, a cerveja vendia , queriam mais.

Em Portugal tinha sido anunciado o primeiro programa formal para a descolonização de Angola – assinatura de um cessar fogo com os movimentos de libertação , formação de um Governo provisório de coligação , integrado por representantes daqueles movimentos e também dos grupos étnicos mais significativos , entre os quais o dos « brancos » . Esse Governo procederia a um recenseamento , faria eleições para uma Assembléia Constituinte, em seguida eleições para o Parlamento e o Governo.

A situação caótica pela qual Luanda tinha passado deixara marcas em muitos prédios , principalmente na grande avenida que levava à sede da EKA, a Avenida Cuca ( nome da cerveja produzida pela Fábrica lá instalada ) , e muitas estórias de horror.
A razão imediata dos confrontos não era bem conhecida, talvez uma resposta àquelas medidas anunciadas por Portugal, mas se tornara numa demonstração de força do MPLA , marxista, embora ainda mal estruturado e com pouco poder militar, para tomar o domínio das transformações políticas e da condução da independência , em relação aos outros dois partidos africanos, o FNLA e a UNITA , e também em relação a grupos de europeus que estariam tentando levar Angola para uma situação similar à da Rodésia de Ian Smith , com um governo com total predominância européia. Tinham havido intensas trocas de tiros, ataques a europeus dentro dos carros, nas ruas e nas casas , matanças selvagens .

Aquele apartamento na Mutamba estava pintado, pronto para nos receber. No Dondo os caixotes estavam feitos, só faltava a Tininha providenciar ao desmonte da casa e ao carregamento . Já se tinha desligado do Colégio, tinha tempo , o Manuel para ajudar .

Na Fábrica começo a fazer a transição de algumas atividades para o LF, ele me irá substituir durante a ausência em Luanda , onde passarei a ficar mais tempo .

No Dondo também algumas manifestações começam a acontecer , levando à necessidade da vinda de algumas tropas portuguesas , que lá se instalam .

A Tininha observa que , nas suas idas às lojas do Dondo , o comportamento dos africanos para com ela aumentava em deferência ! Era claro o cuidado dos africanos em se mostrarem respeitosos !

Igualmente na Fábrica eu recebia sinais de respeito ! Pela forma como se desculpavam se eu via algum problema, por ações como a do africano responsável pelo Laboratório – um dos operadores das transferências de malte para a Brassagem ficou doente, não tínhamos naquele dia mais ninguém preparado para fazer o turno de trabalho ; eu lembrei o LF daquele responsável pelo Laboratório, o início dele tinha sido no Armazém de Malte . Não , esse não vai querer , ele agora é importante , anda de bata branca , diz o LF ! Pedi-lhe que o chamasse à minha sala, eu falava com ele . Veio, a sua resposta me desconcertou : claro Sr. Eng. não tenho nenhum problema em ajudar , o senhor também andou lá carregando sacos de malte . Nunca em toda a minha vida profissional tive melhor demonstração de caráter !

Também nas minhas idas ao Dondo eu sentia a mesma atenção redobrada . Até aquele funcionário da Brassagem que eu demiti , logo ao início, irmão de um líder do MPLA, esse me cumprimentava sempre que me via !

Uma tarde estou na minha sala, naqueles relatórios para a Holanda, a Maria José vai atender algum visitante , vem na minha sala, fala que o visitante não quer identificar-se , que é meu amigo , quer entrar. Claro, não deixo, só se souber de quem se trata ! Ouço vozes na porta da sala , me inquieto, de repente o visitante entra , vem para mim me dar um abraço ! Fico atônito , ali na minha frente está um colega meu da Escola , da 3ª Classe , meus 9 anos de idade , ele uns 2 anos mais velho , amigos de brincadeira, morava bem pertinho do meu casarão , com os pais e uma irmã , casada . Depois dos meus 12 anos tínhamos deixado de nos ver, ele não muito bom aluno tinha enveredado por caminho diferente , eu sabia que os pais tinham grande mágoa do seu descaminho . Tinha sabido que eu estava ali, queria me abraçar – ele tinha completado o curso de Agronomia, tinha casado , morava em Luanda , emprego público que o levava a viajar por Angola . Que bom vê-lo !

A situação em Luanda não tinha voltado ao normal, não que tivessem acontecido novos tiroteios mas aconteciam repetidas greves , o porto de Luanda estava parado . Para a EKA seria um desastre, tínhamos lotes de matérias primas para a Fábrica, parávamos a fabricação se não chegassem ao Dondo . Aquele sobrinho do Quintas conseguiu furar a greve e chegar ao barco com uma barcaça , fazer a descarga direta , chegar no cais e embarcar no caminhão . Ainda era fácil !

Naqueles tempos de difíceis decisões , o restaurante no Dondo ainda era o ponto de encontro de muitas noites. Era visível algum desencanto nas pessoas , cada uma antecipava a seu modo o que podia ser o futuro de Angola , os reflexos ali no Dondo . E talvez o medo de futuras situações levasse os que ali estavam há muito tempo a contar casos que estavam esquecidos , dolorosos. O Prefeito , grande beneficiário do desenvolvimento da cidade pelo seu hotel, nos contava numa dessas conversas de gente preocupada o que tinha acontecido no Dondo em 1961, no levante que tinha explodido principalmente para norte dali , nas fazendas agrícolas e pequenas cidades – a visão do desespero das pessoas que passavam pela estrada em direção a Luanda , o ouvir das suas trágicas estórias, tinha de imediato levado os europeus ali do Dondo a ações de extermínio dos africanos, puras barbáries, com o pretexto de fazerem a prévia defesa de possíveis ações similares que esses africanos pretendessem fazer ! Pior , segundo ele dizia, o asfaltamento de muitas ruas da cidade tinha sido feito sobre valas de cadáveres !
Eu entendia agora porque alguns jovens trabalhadores da Fábrica me diziam que o pai tinha sido morto nos acontecimentos de 1961 !

Soube pelo Prefeito que o novo Comandante Militar da tropa em Kambambe também se chamava Graça , era da Arma de Engenharia , capitão miliciano , tinha acabado de chegar.
Seria possível ? Corri para o visitar ! E era mesmo, meu colega do 1º Ano de Universidade , natural do Alentejo, aquela região sofrida de Portugal , dos grandes latifúndios de poucos ricos e muitos miseráveis ; ele era de outro curso , amigo – coincidência ! – de um grande amigo meu , de todas as horas, também chamado Graça . Pouco tinha falado nessa época com ele , mas o suficiente para me aperceber que era forte contestador do salazarismo e muito contrário àqueles latifúndios.
Ele já prestava serviço militar pela segunda vez , segunda prestação de serviço em África – o que me teria acontecido se tivesse ficado em Portugal , teria sido convocado , obrigado a fazer o curso de capitão , talvez pudesse ser eu a estar ali ! De novo, mão do Destino que nos acompanha ! ou não ! eu tinha tido melhor opção , qualquer que fosse o futuro a partir dali.

Esse Capitão me diz que sabe das condições que envolvem a Fábrica , que posso estar descansado porque os movimentos de independência irão preservá-la quaisquer que sejam as novas situações . Mas também que o Governo vai desarmar todas as forças paramilitares , recolher todas as armas que estejam na posse de civis.

A minha decisão estava tomada.
Vou para Luanda , a Tininha me acompanha .
Converso com o RT, peço ao sobrinho do Sr.Quintas que me prepare o embarque por navio daqueles caixotes , o cancelamento daquele aluguel na Mutamba. Peço sigilo. Continuo trabalhando .

Calculo as minhas reservas de dinheiro, troco por escudos portugueses - o câmbio já está a 2 para 1 ! - , compro uma caneta em ouro ( o preço por aquele câmbio estava ótimo ), compro duas passagens para Lisboa e uma de Lisboa – Rio de janeiro , ida e volta ( seria precisa ? a validade era de um ano ) . Aqueles restaurantes na Ilha continuam excelentes , as horas de conversa com o RT são divertidas.

Tenho de ir ao Dondo , mais uma vez , a Tininha me acompanha , tem os caixotes para fechar . Alguns funcionários de Luanda ( aquele barbudo , da leve deficiência , e outros ) querem fazer uma reunião na Fábrica , final de semana , querem que eu esteja lá.

Na Fábrica , só o LF e o DS sabem da minha decisão . Converso com o Manuel, digo-lhe que vou para Luanda , que ele vai ser integrado nos quadros da Fábrica, acerto com o LF.
Passo toda a documentação da minha sala para o LF, inclusive livros meus , fico apenas com um caderno que montei durante o estágio na Heineken , muito pessoal, para ele não vai ajudar, para mim será única recordação.

Aquela reunião no Refeitório está acontecendo , alguns funcionários de Luanda , o pessoal da Fábrica . Me chamam , querem falar comigo , vou, fico meio afastado , assisto a alguns discursos , simples , de união entre eles , poucos são capazes de expressar os seus sentimentos, tem aquele barbudo de Luanda que se destaca, aquele bom funcionário do Laboratório, pessoal da Oficina naturalmente mais evoluído, está o Manuel , o LF, o DS, o pessoal dos Escritórios.
Querem que eu fale, aceito com relutância, conselhos para serem realistas em reivindicações que façam à Empresa .
Certamente estava combinado entre eles, me pedem para que eu os represente, assuma a liderança do Grupo ! Tento rebater, não seria a solução mais lógica, eu sou Diretor , a posição seria conflitante . Insistem , com veemência , a escolha foi feita por todos.
Não tenho mais argumentos , decido contar ! Peço-lhes desculpas, mas que eu estou saindo da EKA, regressando a Portugal, por razões pessoais , já lá deixei os meu Filhos . A minha tristeza é profunda , olho para eles , estáticos com a minha informação , vejo lágrimas em olhos de muitos , silêncio . Me misturo no meio deles, converso, confirmo a minha saída, alguns me dizem , inclusive o Manuel « só nos resta ir para o Sul e pegar em armas » ! Eles tinham compreendido a razão da minha saída , aquela frase me soava estranha – o pessoal do Sul, nós tínhamos muitos ali , eram da raça Ovimbundu , 40 % da população de Angola, poucos se misturavam com os restantes, os acontecimentos de 1961 poucas repercussões tinham tido no Sul , as influências terroristas entravam pelas fronteiras a Norte e Leste, pelo Zaire e pela Zâmbia .

As demonstrações de amizade me reconfortam mas eu tinha tomado a decisão de saída, não suportava o pensamento de submeter a minha Família às adversidades de uma explosão social , nem eu queria assisti-las . Certamente que no tumulto de sentimentos que se seguiria em Angola nada nem ninguém estaria a salvo, as garantias não existiriam , mesmo ali na Fábrica . Talvez eu estivesse sendo por demais pessimista, até receoso em excesso , mas com a convulsão em Portugal, o que por lá se pronunciava de uma incontrolável escalada das pretensões socialistas e , pior, do domínio que o PCP já demonstrava sobre as decisões do Governo – com a óbvia submissão aos interesses internacionais do Comunismo – as gentes de Angola estariam indefesas a quaisquer estranhas conveniências de políticos mal intencionados e ambiciosos , ou de idealistas utópicos , não menos perigosos .

Saímos dali, a Tininha chora, é impossível não sentir a dor da perda , a dor da saudade que já começa, a dor da impotência perante os acontecimentos, a mágoa incomensurável de prever aquelas gentes e aquelas coisas envolvidas pelo turbilhão da destruição . Não olho para trás, penso que afinal eu tinha sido também um idealista , tinha tido ali os meus moinhos de vento, uma obra que era impossível de continuidade naquele Local e naquele Tempo .

Vimos para Luanda , os caixotes estão seguindo para o porto , não para aquele apartamento na Mutamba , não para aquela praça em que o povo flui se irradiando por Luanda. A cidade está calma embora alguma coisa se sinta nas pessoas, um medo que aflora pelo desconhecimento do que está por acontecer . Os jornais reclamam dos que já saem de Angola , dizem que sem razão , são medrosos , chamam de « fujões » . Estão em Angola por volta de 350.000 europeus , não é imaginável a saída de todos eles, talvez apenas de alguns que como eu - fujão –tenha menos coragem de ver quebrar um sonho !

Mas não me sinto fujão ! Talvez apenas aquela mão do Destino que nos acompanha ! ou não ! me faça tomar essa decisão tão dolorosa . Mas que seja apenas como autodefesa da Família, acho que não poderia ficar tendo já intuído os acontecimentos futuros , embora que em simples e esfumaçada visão . Queria sinceramente ali que o Futuro me não desse razão , sempre poderia voltar !

Todos vão ao aeroporto, o RT, o sobrinho do Quintas e a esposa, o LF e o DS , as esposas. O comportamento exterior daqueles amigos é o de despedida de quem vai de férias , interiormente os sentimentos são confusos, para alguns talvez de incompreensão, para outros de alerta, talvez até de algum regozijo pela saída – o LF vai ficar com o comando da Fábrica, é ambicioso, o DS com menos cobranças. Para mim é de profunda tristeza !

É de noite , entramos no avião , procuramos os lugares .

As águas da Baía continuavam fluindo mansamente de encontro à praia, assistentes impávidas da História, refletindo as luzes dos prédios como em todas as noites, a umidade , aquele cacimbo, se espalhava no ar, empurrada pela brisa que trazia para nós o cheiro da terra avermelhada . Recordo a primeira vez que conheci Luanda , na passagem do Príncipe Perfeito para Moçambique , o quanto me desgostei ao vê-la então , e quanta mudança para os meus sentimentos de agora ! Tinha aprendido a gostar dela, a me emocionar com as suas praias, as suas avenidas , as suas gentes . Angola me tinha dado o prazer da conquista da realização profissional , mas mais do que isso , me tinha dado o grande prazer de unir as pessoas em torno de um trabalho que se tornava um prazer e uma dedicação , sem diferenças de cor , sem atitudes incorretas, sem a necessidade de intervenções, sem relógio de ponto, com toalhas brancas nas mesas do Refeitório, as ruas impecavelmente limpas !

O avião desliza na pista, já não sinto o cheiro da terra avermelhada .

Aos meus ouvidos, pelo som do avião, chegava uma canção - « E depois do Adeus » - havia ganho o Festival da Canção desse ano de 1974 e dera início à Revolução dos Cravos

Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.

Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder

Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci

Como eram bonitos os meus Moinhos de Vento !

Nenhum comentário:

Postar um comentário