janeiro 31, 2009

07 A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

Em Portugal

Estou regressando a Portugal , agora não como férias , por passagem , mas para procurar emprego , casa , seguras condições de vida para minha Família e , porque não, também confortáveis, de boa satisfação pessoal e familiar.
Vou para Pombal , onde estão os Filhos com os Avós , alguns dias de descanso e de reflexão . Tal como a grande maioria dos portugueses , estou certo , ainda não tenho a verdadeira percepção do que acontece com o País mas a sensação é a de que as comportas foram abertas e as águas do rio correm tumultuadas e sem controle ! Ali, na fábrica de Pombal , os efeitos da Revolução pouco chegaram , o meu Sogro tenta pelas notícias dos jornais e da televisão entender as proporções dos acontecimentos que eclodem nos maiores centros industriais e nas regiões agrícolas do Sul , com eles se assusta ao recordar da insegurança , do pavor e das péssimas condições do País da sua infância , pelos anos 20 – 30.

O Salazarismo tinha recebido um País em que o índice de preços tinha passado de 100 em 1910 para 2.658 em 1924 , em que de 1919 a 1926 se sucederam 26 governos !
Os capitais eram escassos e os disponíveis, buscando uma boa margem de lucro , eram aplicados na aquisição de imóveis, na especulação, no comércio e no financiamento da dívida pública , fugiam dos investimentos industriais .
O mercado interno era pequeno , devido à baixa renda tanto de uma massa de camponeses que dispunha de pouco mais do que o suficiente para viver ( com uma enorme base de milhares e milhares de famílias com pouca terra e nenhum capital , o que inibia a modernização agrícola ) , como de uma classe média que sempre tinha os seus salários achatados para baratear os custos . Os mercados dos paises desenvolvidos estavam vedados pela baixa produtividade da economia portuguesa, restavam os mercados coloniais.

A industrialização do País tinha começado nos anos 50, pela execução de Planos de Fomento, por leis reguladoras ( excessivamente protecionistas ) , através de empréstimos externos , pela imposição de baixos salários , pela intensa participação do Estado no capital e na condução das empresas .

O crescimento econômico tinha sido muito rápido : entre 1960 e 1973 a produção crescera a uma média anual de 6,7% , o crescimento médio das indústrias transformadoras tinha sido de 9,2 % . Apenas a agricultura se mantinha atrasada : embora 32% da população ativa trabalhasse no campo, tinha perdido 600.000 trabalhadores entre 1969 a 1973 , não como resultado de modernização mas como fuga à pobreza extrema, muitos dirigidos aos grandes centros industriais , Lisboa e Porto, muitos emigrando.

Portugal tinha entrado na EFTA em 1969, uma zona européia de livre comércio , o que embora viesse demonstrando as graves debilidades do setor industrial - baixos investimentos, grande dependência de mão de obra, barata - tinha permitido a abertura de mercados externos aos produtos portugueses e a menor dependência dos mercados coloniais - o peso das colônias no total do comércio externo vinha passando de 18 % em 1960 para 10 % neste ano , 1974.
A concentração no entanto era altíssima : 7 grandes grupos ( CUF, Espírito Santo, Sotto Mayor, Português do Atlântico, Borges & Irmão, Nacional Ultramarino e Fonsecas & Burnay ) dominavam o mercado financeiro – mais de 80 % dos depósitos – e toda a produção industrial do País direta ou indiretamente .
A concentração das propriedades agrícolas não era diferente : 1.140 fazendas de mais de 500 hectares detinham 30% do total de áreas e se equivaliam a 631.482 de pequenas propriedades com menos de 4 hectares.

A relativa ausência de mão de obra em resultado do forte crescimento econômico e da emigração , vinha tendo como consequência um aumento dos conflitos de trabalho . Uma forte especulação financeira alimentava a inflação , que atingia 10,4% em 1973 e que não era repassada aos salários, pressionando o custo de vida . O suporte aos esforços da guerra colonial –Portugal gastava 650 milhões de dólares para manter nela 150.000 homens - tinha levado ao aumento dos impostos indiretos em mais de 70 % entre 1970 e 1973 , o imposto profissional tinha aumentado mais de 50 % nesse período.

Eu tinha trabalhado em Canas de Senhorim e no Seixal, tinha vivenciado as péssimas condições de trabalho dos operários , sempre desprotegidos , desesperançados , sofrido com eles a incapacidade de mudanças, tinha sentido nas minhas viagens as condições de sofrimento dos trabalhadores do campo , tanto pelo Norte , distribuídos pelas pequenas propriedades , por retalhos de difícil subsistência , tanto pelo Sul , trabalhando nos latifúndios , no calor seco que torcia as árvores e os espíritos, eu tinha minha Mãe de um dos lados e meu Pai do outro.

Com uma massa trabalhadora de um milhão de operários , constituindo os assalariados dos setores secundários e terciários cerca de 58 % do total da sua população ativa , um analfabetismo superior a 30 % ( e um valor ainda superior daqueles que só sabiam assinar o nome ! ), abolida por inteiro a censura, com um Partido Comunista colocando toda a sua organização construída ao longo do Salazarismo agora ao serviço da Revolução , as Forças Armadas através do MFA deliberadamente apoiando todos os movimentos operários , uma classe burguesa desorganizada e sem representatividade, o País tinha tudo para uma grande transformação social . Mas eu não lhe imaginava os caminhos nem os destinos !

Mas os primeiros passos estavam sendo dados pelas comissões de trabalhadores que rapidamente surgiam , sem preparação , indisciplinadas mas grandemente atuantes ( incentivadas pelos componentes das células do PCP que haviam por todo o lado ) – reivindicação de salário mínimo , aumentos salariais, fim das discriminações salariais , redução do leque salarial, elevação das categorias mais baixas, abolição dos prêmios, gratificações e privilégios, redução do horário de trabalho, férias pagas, readmissão dos demitidos, fiscalização das atividades das empresas . As paralisações das empresas eram constantes, tinham começado as invasões( assaltos ) de propriedades e fazendas , a Ponte Salazar teve o nome mudado para Ponte 25 de abril, os jornais procediam a depurações dos seus quadros, a cantora Amália Rodrigues era perseguida e boicotada por suposto passado fascista, o Fado era considerado não grato por « amolecer » os trabalhadores ; nos próprios quartéis surgiam reivindicações , o aumento dos soldos , o fim da guerra – « nem um soldado mais para as colônias » ! Os ganhos dos trabalhadores são já expressivos – salário mínimo de 3300 escudos fixado em 26 de maio ( o que significava em alguns casos um aumento salarial de 100 % ! ) , férias pagas a 100 %, redução do horário de trabalho semanal , aumentos salariais que chegavam em média a 35 % . Mas para a Revolução essa não era a meta !

Nesse início de outono 1974 e nesse contexto social , com a pesada carga afetiva trazida de Angola, eu vou ter de reorganizar a minha vida , 35 anos, terceira vez começando do zero , apenas uma reserva financeira que me permitia ter comprado um carro – um Ford Cortina GT, 2.0 , a mesma plataforma do meu Ford Taunus de Angola – e me permitiria mobiliar o apartamento que alugasse depois de arranjar emprego. Entretanto a Tininha e os Filhos ficavam em Pombal , os Filhos tinham que entrar na Escola já no início de outubro. Dos meus Pais não podia esperar nada , talvez alguns resmungos do permanente desagrado do meu Pai.

Claro que tinha de visitar a Fábrica no Seixal ! Para minha surpresa , o meu colega CF era agora o Diretor Fabril , aquele professor da Universidade que tinha mandado demitir os bobões tinha sido expurgado ( !? ) pela Comissão de Trabalhadores , teria ido para o Brasil . O meu primeiro Chefe de Departamento estava lá ainda, o DT, em posição imediatamente abaixo do CF . Não precisei contar que estava em definitivo em Portugal, o CF de imediato quis que voltasse para a Fábrica , ali, para a Aciaria donde eu tinha saído. Salário 22000 escudos, para mim era uma solução aceitável, não seria fácil encontrar melhor remuneração em Portugal , embora ali eu fosse deparar com todos os problemas de uma atividade duríssima , já minha conhecida mas agora depois da EKA bem menos desejada . Mas entusiasmado por ter um amigo na Direção, também por terminar a angústia da dúvida quanto ao futuro, aceitei , começaria a trabalhar logo que me instalasse por perto.

Rumo para Pombal , pouco depois da saída de Lisboa aquele Cortina me faz um surpresa, o cabo do acelerador se rompe , fico parado na estrada. Princípio da noite, a solução é amarrar o acelerador com o lenço e tentar chegar a alguma oficina em localidade próxima . Chego a Salvaterra de Magos, menos de uma hora de viagem, consigo apoio numa oficina de portas já fechadas , aspecto sujo , escura, mas me resolvem o problema . O Cortina ainda não tinha 500 Km !

A situação política segue descendo a ladeira ! O Presidente da Républica, General Spínola, procura apoio da população contra as decisões das Forças Armadas – que haviam concedido a independência em 10 de setembro à colônia da Guiné , depois do Acordo de Argel - , através de um ato público de manifestação a 28 de setembro ( manifestação da Maioria Silenciosa que se oporia aos caminhos da Revolução mas que permanecia calada, por comodidade e medo ) – as Forças Armadas e o PCP boicotaram esse ato , Spínola renunciou a 30 de setembro. Para Presidente da Republica estava eleito pelas Forças Armadas o General Costa Gomes , aquele que tinha estado em Angola logo a seguir ao 25 de abril.

Vimos para Lisboa eu e a Tininha procurar apartamento , já tínhamos estado no Barreiro, nos lembramos de Setúbal , é uma cidade alegre , bonita, junto ao mar , são só 25 Km até à Fábrica no Seixal ( Paio e Pires) . Encontramos apartamento para alugar na Avenida Dom João II , próximo à Praça de Portugal , abaixo da Praça de Touros e a pouca distância do centro da cidade e, claro, do mar. Um bom 4º andar , direito, elevador , sala de estar com varanda ligada por arco à sala de jantar, três quartos, dois banheiros , cozinha grande . Os proprietários são simpáticos, da nossa idade , ele também engenheiro , leve deficiência numa das pernas , uma filha . A Escola é muito próxima, perto da Praça de Touros.

Vamos esperar as mobílias , entretanto os Filhos começam as aulas em Pombal , depois faremos a transferência para Setúbal. A cidade é fria no Inverno, vamos começar a adaptação no pior período do ano.

Eu tinha tudo para pensar que a minha adaptação ao novo emprego fosse fácil, afinal tinha apenas saído dali há 4 anos, conhecia bem o Diretor Fabril , sabia das particularidades de relacionamento daquele DT, a grande maioria dos engenheiros devia conhecer-me e eu a eles. Era uma grande empresa , mais de 4000 funcionários, a situação política geral estava em absoluta efervescência mas ali era uma das melhores empresas do País , das melhores estruturadas e de melhores salários e benefícios sociais.

Rapidamente me daria conta que estava enganado, bastante ! Além do Chefe de Departamento , a Aciaria agora tinha mais 4 engenheiros, um deles iria chefiar as instalações de um novo Forno Elétrico na Maia , Porto . No meu tempo, eram só o CF e eu !
Na apresentação aos funcionários das chefias intermédias, tive uma grata surpresa , a maioria me conhecia, me receberam com um inusitado comentário de que agora iriam ter alguém para lhes explicar o funcionamentos das coisas , isto na frente dos outros engenheiros ! Mas faltava ali um Chefe de Turno , um moço que eu treinara para essa função . Pergunto por ele , o ambiente fica carregado, a maioria dos funcionários desaparece, inclusive o Chefe Geral ( que trabalhava só no turno diurno , os Chefes de Turno trabalhavam em turnos de 8 horas , ininterruptamente ) . Muito dificilmente um engenheiro me conta , tinham feito há pouco tempo uma experiência(com acompanhamento por técnico de uma empresa inglesa ) de injeção de nitrogênio pelo fundo de uma panela de aço liquido, mais de 1700 ºC, 40 ton, abriram o botijão de gás, a panela estava suspensa por ponte rolante , o gás não borbulhou , esse Chefe de Turno foi por baixo da panela para ver o que se passava com a válvula de passagem entre o botijão e o fundo da panela ( esta tinha uma pedra cerâmica , porosa , objeto do teste , colocada entre os tijolos do revestimento refratário ) – acontecera que a pedra porosa retivera o gás até um momento de explosão em que o gás com pressão total jogou grande quantidade de aço liquido pelas bordas da panela, banhando o infeliz do Chefe de Turno ! O horror da situação fez que muita gente fugiu desesperada , o Chefe Geral durante alguns dias não foi trabalhar, o inglês sumiu, o pobre coitado ficou três dias no pior sofrimento até à sua morte . Deixou mulher e filhos . Esse tipo de acidente era o mais temido por todos que trabalhávamos na Aciaria, por isso também a área de maiores salários de toda a empresa (regra geral nas Siderúrgicas de todo o Mundo ) .

Outra surpresa , o relacionamento com os trabalhadores !

« A partir do 1º de Maio de 1974, o movimento reivindicativo dos trabalhadores caminhou rapidamente no sentido do “controlo operário”. Um dos primeiros passos decisivos surgiu através de um grupo de trabalhadores quando apresentou à Administração e à Junta de Salvação Nacional um conjunto de reivindicações de interesse geral. Na sequência destas movimentações e da manifestação que lhe sucedeu, esse grupo, eleito em assembléia , exigia a entrada em vigor do novo Acordo Coletivo de Trabalho (ACT), a abolição dos psicotécnicos para a promoção na Empresa, a revisão dos processos de desligamentos antes de Abril de 1974 e a demissão de figuras chave na administração . Em breve, tornou-se objetivo central do movimento a “criação e reconhecimento de uma comissão representante dos trabalhadores para discussão de todos os assuntos atuais e posteriores inerentes a esses mesmos trabalhadores”. A par da preocupação para que as instalações não parassem, a comissão tenta travar os diversos movimentos mais ou menos espontâneos, na medida em que eram considerados “extemporâneos ou inconvenientes”. Essa Comissão de Trabalhadores (COTRA) conseguiu que Champalimaud reconhecesse a sua liberdade de atuação durante as horas de trabalho, direitos que visavam salvaguadar os “interesses dos trabalhadores”, nomeadamente, no que se referiam a admissões, demissões, transferências, promoções, aspetos disciplinares , revisão da política salarial da empresa, saneamento da mesma e, de uma forma geral, de todos os assuntos relacionados com os trabalhadores. A empresa ficou obrigada a fornecer um gabinete para o funcionamento da comissão e sobre ela iriam recair as suas despesas normais de expediente.
O papel de intermediação do COTRA foi reforçado pelo controle social da comunicação , através da “luta contra o boato”, considerado “uma arma do fascismo”. As novas estruturas foram legitimadas pela eleição de representantes sufragada entre todos os trabalhadores da empresa e pelos ganhos sociais que estavam a ser alcançados rapidamente ( 30 dias de férias no calendário, pagamento do subsídio de férias a 100 %, limitação das horas extraordinárias através de medidas como o pagamento a 300 % do trabalho nos dias feriados, com direito a folga posteriormente, etc.). A COTRA constituiu – se assim como uma estrutura de poder na Empresa e junto dos trabalhadores.
Demarcava-se dos Sindicatos constituídos, os quais acusava de comportamento corporativo, e dos próprios partidos políticos, na medida em que pretendia representar todos os trabalhadores. Os dirigentes preocuparam-se em não permitir comícios partidários dentro da Empresa e em garantir elevados ritmos produtivos, criticavam o elevado absentismo e os comportamentos dos trabalhadores considerados inoportunos.
No domínio social, a COTRA combatia os privilégios instituídos pela organização capitalista, impondo uma redução no número de escalões dentro de cada categoria e o leque salarial . Logo de início os quadros técnicos e superiores ficaram, em larga medida, à margem deste processo na medida que eles não se incluíam no grupo de indivíduos até então regulados pelo ACT e foram largamente penalizados pela imposição de tetos salariais »

Bem , eu estava no meio da Revolução ! De bom , aquele Diretor dos bobões tinha saído junto com aquelas figuras chave da Administração expurgadas logo nos primeiros dias . Mas tinham sido agregadas complexas atividades como de definição de cargos , tabelas de salários, esquemas de trabalho, planos de carreiras profissionais , que agora preenchiam os dias daqueles muitos engenheiros e das quais eu não escaparia. Também os relacionamentos estavam muito mais difíceis, até melindrosos, porque os trabalhadores agora « mandavam » ! E numa Aciaria , com a grande complexidade das tarefas , os altos graus de periculosidade e a pressão de trabalho que advinha de dar vazão à gusa liquida que de 2 ½ em 2 ½ horas nos chegava do Alto Forno – que não podia parar – isso era estressante ! Muito ! E perigoso !

Ainda , dois novos e perigosos equipamentos que eu não conhecia tinham vindo juntar-se a este cenário :

- o conversor LD tinha recebido um Sistema de Exaustão e Despoeiramento da Creusot-Loire, francesa , por via úmida . Este sistema era dotado de um grande ventilador que aspirava os gazes do conversor , CO a 2000º C, as poeiras sólidas eram arrastadas por cortinas de água para grandes tanques de espessamento ao nível do solo , o gás queimava numa chaminé a 80 metros de altura . Só que a instalação não podia ter entradas de ar , por perigo de se formarem misturas explosivas de CO – CO ² , em certas condições de temperatura e na presença de H ², e toda a instalação se estendia por 7 andares , sujos, quentes, sem elevadores . O equipamento tinha um sem número de sistemas de controle e de segurança e um grande painel na sala de comando geral. Dois técnicos franceses mal humorados acompanhavam a instalação , um colega meu vivia junto com eles e fazia das dificuldades de operação , manutenção e convívio a razão ( quase diária ) para demonstrar o seu valor e genialidade ! Os técnicos da Creusot- Loire tentavam demonstrar que o equipamento era excelente e que os problemas eram só resultado da incapacidade dos operadores portugueses !

- Para substituir o vazamento em lingotes e a cara operação sequente em laminador de desbaste, tinha sido instalado um Lingotamento Contínuo , da Danielli, italiana . Os problemas desta instalação eram tão grandes que a Danielli tinha deixado de dar assistência técnica , ela só operava raramente para na operação dar vazamentos gravíssimos de aço liquido , a 1700º C , perigosos, ficar parada por bastante tempo para reparação, voltar a trabalhar e acontecer o mesmo desastre . Quer dizer , de contínuo eram os problemas, não a operação !

Realmente , eu não tinha dado sorte . Mas tudo podia ter-se modificado se eu não fosse tão conhecido ali na Fábrica . O CF me diz que de uma fábrica de cervejas recentemente instalada em Portugal andam à minha procura ! É a Cergal, instalada em 1972 em Belas, freguesia de Sintra , a cerca de 20Km de Lisboa, ótima região turística – mas pertence ao mesmo grupo da Siderúrgica e o Presidente desta, que me conhece , não me libera porque diz que faço falta aqui ! A Cergal era do porte da EKA e tinha tido expurgo de diretores logo após o 25 de abril, certamente precisavam de substitutos, mas essa chance estava-me vedada . Nunca falei nada com o Presidente .


Finalmente chegaram os caixotes , de Angola. A Tininha ficou apavorada com o que viu no cais marítimo ! Muita bagagem já estava sendo enviada de toda a África portuguesa, o grande armazém de descarga dos navios era total confusão, abarrotado , com os caixotes manejados sem cuidados, jogados , muitos completamente destruídos, roubo de mercadorias, completo desinteresse dos funcionários da Alfândega , muita gente que procurava os seus pertences em total desespero, chorando pelas perdas . Tivemos sorte, apenas a perda da auto pista de carrinhos dos Filhos, o rádio do João António, algumas louças e vidros quebrados. Como recordação da EKA, vieram alguns copos para cerveja, com o logotipo, as cabeças dos animais que nos serviram de refeição , que guardaremos para lembrar esses bons tempos.

O apartamento ficou então completo, os Filhos podem vir de Pombal , transferidos para o Colégio de Setúbal, próximo ao nosso prédio, junto à Praça de Touros, o João António já no 2 ºAno do Liceu, a Paula e a Olga na 4ª e 3ª Classes do Colégio, o Pedro começando agora , tem só 6 anos.

Os nossos vizinhos são excelentes , a Tininha logo se dá bem com a senhora, ela professora, ele engenheiro agrônomo, um filho bem mais velho do que o nosso João. Com o casal proprietário do apartamento, iremos fazer um bom grupo de amigos .

Eu monto o primeiro aquário ! Fica na divisão entre as salas, a visão repousante ajuda para ouvir o noticiário político de todas as noites, acompanhando a leitura indispensável do jornal, às vezes mais do que um , porque as informações são contraditórias , a Revolução continua, poucos notícias são imparciais . O Primeiro Ministro Vasco Gonçalves incita à nacionalização das empresas, à reforma agrária , o que com agressividade dos sindicatos e o apoio da Forças Armadas está criando uma situação de insegurança geral, muitos se beneficiando , criando patrimônio, muitos também tendo grandes perdas, fugindo para Espanha, para o Brasil.

A falta de censura e de educação da população tornou o centro das cidades em um caos, ocupado pela pornografia espalhada pelas calçadas e a propaganda política que ocupa todas as paredes disponíveis , em cartazes e pinturas. Esse caos se transmite para o comportamento das pessoas, nas atividades prestadoras de serviços, lojas, restaurantes, táxis – ninguém quer ser mais pago por percentual do serviço, a gorjeta , todos querem salário fixo, assim o desinteresse pelo cliente se torna habitual. A Lisboa da minha juventude não existe mais, tem agora uma cara feia, é suja, é agressiva, é uma mistura de gentes que estão vindo das Colônias, que se juntam pelas praças, que reclamam e que sofrem .

Esse Ano Novo, 1975 , não teve rosas de porcelana ! Mas o ano de 1974 fechou com uma inflação de 27, 7 % , assustadora e compressora dos salários , distribuindo mais dificuldades e incertezas por todos .

O ano começa com os Acordos do Alvor, no Algarve, em que representantes dos três partidos de Angola assinam os termos para a independência , marcada para 11 de novembro , as tropas portuguesas seriam evacuadas até 30 de abril, deixando apenas um contingente de 24.000 homens que depois deveriam sair até fevereiro 1976, os direitos dos portugueses residentes ficavam assegurados. Todavia estes acordos parecem ser impotentes para travar as ambições de cada partido, principalmente do MPLA, marxista, com declarado apoio da URSS e de Cuba, e que segundo notícias pouco claras vem recebendo uma avalanche de armamentos , por aviões e navios que chegam a Angola.

Na Siderúrgica eu tento entender aquela nova instalação do Conversor LD e acompanhar o meu colega que faz dela o seu trampolim, ele também sempre a par dos movimentos da COTRA dentro da empresa , quase todos os dias saindo comunicados em linguagem agressiva , dirigida contra as elites , que sou eu, que são todos os engenheiros , segundo os trabalhadores politizados , elites que pouca falta fazem . Vou almoçar no Restaurante da empresa , não tem o aconchego do restaurante da EKA, nem as toalhas brancas, é enorme, bandejão, depressivo.

Chego de carro na Fábrica , de manhã, na Portaria . O porteiro não me deixa entrar , não abre a cancela. Que estacione o carro fora da Fábrica e que me dirija para a sala do Diretor Fabril !
Estão todos os engenheiros lá , na sala do CF. A COTRA resolveu que ninguém pode ter privilégios, os engenheiros têm um subsídio de 1.500 escudos que se refere a transportes, eles querem que os engenheiros abram mão dele. Para mim esse valor não tem essa conotação , é parte do meu salário, de 22.000 escudos, foi esse o valor global pelo qual fui contratado . Como eu , todos os outros engenheiros, esse subsídio fora criado no início das atividades da empresa , em 1961, para compensar o custo do transporte Lisboa – Seixal , depois embutido nos salários e esquecida a sua finalidade . Mas continuava separado , a COTRA tinha encontrado o pretexto para reduzir os salários das elites !
Chega da COTRA nova ordem : ou abdicam do valor ou saem da Fábrica ! Saímos, fomos para Lisboa, para a sede da Ordem dos Engenheiros, discutindo o que fazer, convictos em não ceder . Ao final do 3º dia ali reunidos, fazendo o nosso horário de trabalho, chegam - nos notícias de que o Alto Forno poderia estar em situação de risco, tem cálculos de carga que os operadores não sabem fazer, o Forno pode obstruir , o Governo vai culpar as elites por prejudicarem os esforços do País – nós , classe dos engenheiros, sempre fomos medrosos, também perante os patrões , teria sido aquele um momento excelente para inverter a situação dentro da Empresa, talvez evitar futuros problemas, mas o CF e a maioria cederam , vamos voltar, adeus 1.500 escudos !

Voltamos , e desacreditados perante a maioria dos trabalhadores. Daí a pouco tempo estávamos obrigados a marcar cartão de ponto. Depois, quando viram que os engenheiros sempre saíam bem tarde – então com direito ao recebimento de horas extra ! – fomos obrigados a sair sem ultrapassar 15 minutos além do horário ! Que saudades da EKA, sem relógio de ponto para todos !

Mas era muito difícil trabalhar nessas condições , só tínhamos engenheiros no período do dia , cobríamos 10 horas de operações, as outra 14 só tinham pessoal técnico médio, que também não queria – e não sabia - se responsabilizar por situações que frequentemente ocorriam de grande complexidade e risco . As ligações para casa durante a noite eram constantes, a inquietude enorme por dar ordens sem a visão de todo o conjunto de variáveis , ordens que podiam dar erradas se mal executadas, noites perdidas sem sono pensando no pior , muitas vezes levantando e indo para a Fábrica, que se danasse a COTRA . Não marcava ponto !

As grandes ocupações de fazendas agrícolas continuavam sendo feitas , verificam-se confrontos de militantes de esquerda , marxistas , com simpatizantes do PPD , Partido Popular Democrático, social – democrata, legalizado em janeiro e que fazia congresso em Setúbal, com um morto e trinta feridos. A Revolução não quer concorrentes !

O mês de março seria de grandes notícias, que depois a Tininha e a sua amiga vizinha discutiriam acaloradamente, mas sem a agressividade que se espalhava pelo País e que começava a deixar antever maiores confrontos : no dia 11 , o General Spínola tenta um golpe de estado,

00:00: (Tancos) Começam a chegar à B.A.3 mais elementos conspiradores que se reúnem em casa do major Martins Rodrigues .
08:00: O coronel Moura dos Santos reúne alguns oficiais e sargentos da Unidade, aos quais dá conhecimento do que se vai desenrolar. Simultaneamente o mesmo é feito por alguns oficiais, comandantes de esquadra, major Mira Godinho, major Neto Portugal e capitão Brogueira em relação aos pilotos das suas esquadras, atribuindo-lhes em seguida as missões respectivas.
09:00: O general Spínola faz uma alocução aos pilotos dos helicópteros e dos T-6, em que se afirma estar a assistir-se à prostituição das Forças Armadas e ser necessário intervir para manter a continuidade e a pureza do processo desencadeado no 25 de Abril. Os meios aéreos destinados a atacar o R.A.L.1, aviões T-6, helicópteros e helicanhões começam a ser municiados.
09:40: (Montijo) Por ordem do comandante da B.A.6, coronel Moura de Carvalho são postos de alerta todos os meios aéreos.
10:45: (Tancos) Começam a descolar os primeiros meios aéreos destinados a atacar o R.A.L.1.
11:30: (Monte Real) Aterra o avião Aviocar vindo de Tancos (B.A.3), o qual transporta o coronel Orlando Amaral e o tenente-coronel Quintanilha. Estes vão à presença do comandante da B.A.5 a quem, na presença dos majores Simões e Ayala, anunciam a existência de uma operação comandada superiormente pelo general Spínola e pelo C.E.M.F.A., no caso da Força Aérea, a qual pretende repor a pureza do espírito do 25 de Abril. O tenente-coronel Quintanilha revela que a operação já se terá iniciado com um ataque aéreo ao R.A.L.1 e pede então ao coronel Velhinho que envie aviões F-86F para fazer passagens baixas de intimidação sobre o R.A.L.1, Avenida da Liberdade e COPCON. O comandante da base hesita, telefona para os seus superiores em Lisboa donde não obtém esclarecimentos .
Entretanto o major Simões faz uma sessão de esclarecimento aos pilotos da esquadra dos F-86F, explicando-lhes por sua vez aquilo que ouvira no gabinete do comandante da base. Nessa sessão alguns oficiais manifestam-se abertamente desconfiados e descrentes do que lhes é dito, opondo-se a colaborar naquilo que consideram um golpe da direita.
11:50: O R.A.L.1 é atacado e são atingidas as casernas dos soldados e os principais edifícios do aquartelamento, resultando na morte de 1 soldado e 14 feridos.
12:00: (Aeroporto de Lisboa) É encerrado o tráfego civil.
(Quartel do Carmo) Oficiais da G.N.R. no ativo e outros já afastados do serviço, comandados pelo general Damião, prendem o comandante-geral e outros oficiais.
12:20: (Tancos) Descolam 3 Allouette, transportando 12 elementos para uma ação armada contra as antenas do R.C.P., em Porto Alto.
12:50: (Lisboa) A 5.a Divisão do E.M.G.F.A. emite a seguinte mensagem a todas as Unidades do Exército, Armada, Força Aérea, G.N.R., P.S.P. e G.F.
"O COPCON, a Comissão Coordenadora do M.F.A. e a 5.a Divisão do E.M.G.F.A. alertam todas as unidades para se colocarem em estado de mobilização para destruir forças rebeldes contra-revolucionárias que neste momento atacam unidades do M.F.A.."
13:00: (Porto Alto) Um grupo de civis armado e comandado por 2 militares ataca o emissor do Rádio Clube Português, interrompendo a emissão desta estação em onda média.
Os atacantes faziam-se transportar em 2 helicópteros seguindo num o major Silva Marques, António Simões de Almeida, João Alarcão Carvalho Branco e José Carlos Champalimaud e no outro o 1°tenente Nuno Barbieri, José Maria Vilar Gomes, Eurico José Vilar Gomes, António Ribeiro da Cunha e Miguel Champalimaud.
O general Spínola tenta aliciar, pelo telefone, o major Jaime Neves, comandante do Batalhão de Comandos nº 11, que lhe responde só obedecer à hierarquia a que está sujeito, o COPCON, com quem aliás já tinha estado em contato. O general Spínola procura, ainda, falar com o tenente-coronel Almeida Bruno que está presente, mas que se esquiva.
Pouco antes ou depois desta diligência o general Spínola estabelece contato com o tenente-coronel Ricardo Durão tentando obter por via deste e do capitão Salgueiro Maia, a adesão da E.P.C. O capitão Salgueiro Maia não atende este telefonema.
13:10: (Lisboa) A Emissora Nacional interrompe a sua programação normal e passa a transmitir diretamente do Centro de Esclarecimento de Informação Pública da 5.a Divisão do E.M.G.F.A., aconselhando a população de Lisboa a manter-se calma e vigilante em união com o M.F.A. e seus órgãos representativos.
13:20: O major Rosa Garoupa telefona para o major Casanova Ferreira comandante da P.S.P. de Lisboa, a pedir-lhe a ocupação do Rádio Renascença e que pusesse "no ar" esta Emissora (na altura em greve) com o fim de emitir comunicados dos revolucionários, ações que se não concretizam.
13:30: (Lisboa) É transmitido pela E.N. o primeiro comunicado da 5.a Divisão.
13:50: (Tancos) Descola um helicóptero Allouette III, pilotado pelo tenente-coronel Quintanilha o qual se desloca com o major Cóias à B.A.5, seguido por dois aviões Aviocar transportando pára-quedistas. Aí tenta garantir a neutralidade da base, ameaçando, inclusivamente, que os pára-quedistas a ocupariam. Em seguida, quando alguns sargentos, alertados por camaradas de Lisboa, tentam prender o tenente-coronel Quintanilha, este evade-se no helicóptero acompanhado pelos Aviocar com pára-quedistas que, entretanto, se tinham mantido sobrevoando a base de Monte Real. As três aeronaves regressam então a Tancos.
14:45: É transmitido o primeiro comunicado emanado do Gabinete do Primeiro-Ministro do seguinte teor:
"Esclarece-se a população terem-se verificado hoje, de manhã, incidentes envolvendo forças militares reacionárias em tentativa desesperada de travar o processo revolucionário iniciado a 25 de Abril. Tais incidentes consistiram numa tentativa de ocupação do R.A.L.1, envolvendo meios aéreos e terrestres. A situação encontra-se sob controle, pelo que se apela para que a população se mantenha calma, sem abrandar contudo a sua vigilância. A aliança entre o Povo e as Forças Armadas demonstrará, agora como sempre, que a revolução é irreversível".
15:00: (Tancos) Soldados e sargentos da B.A.3 amotinam-se contra os conspiradores e arrombam as viaturas civis utilizadas pelos elementos estranhos donde retiram armamento.
15:15: A grande maioria dos pára-quedistas que atacaram o R.A.L.1 depõem as armas e juntam-se aos militares desta Unidade. O brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho dá conta ao País da normalização da situação.
17:15: O primeiro-ministro, brigadeiro Vasco Gonçalves, dirige, pela TV e Rádio, uma alocução ao povo português na qual denuncia a ação como tendo sido “um golpe contra-revolucionário”
19:00: (Badajoz , Espanha ) O general Spínola, acompanhado de sua mulher, chega à Base Aérea de Talavera la Real. Iria depois para o Brasil.

A Revolução avançava ! Com essa vitória das forças mais radicais , são em seguida nacionalizadas todas as instituições de crédito e é feita uma extensa coletivização dos meios de produção , intensificando-se o processo de nomeação de comissões administrativas para substituir os corpos gerentes das empresas . São então nacionalizados os setores básicos da economia – empresas elétricas, cementeiras , celulose, tabacos, empresas de transportes coletivos e , obviamente , a Siderurgia . O que estava mal ficava pior !

O mês de março traria ainda a notícia da capitulação do Vietname do Sul, o Vietname do Norte passa a dominar os dois países, a capital do Sul – Saigon – é batizada de Ho Chi Minh .

Mas finalmente, aos 36 anos , vou votar pela primeira vez ! Aos 25 de abril de 1975 vou votar para a constituição da Assembléia Constituinte, 250 deputados que redigirão e aprovarão a nova Constituição. Os resultados são felizmente demonstrativos da existência daquela Maioria Silenciosa , que presenciava atônita a Revolução , em absoluto desacordo com ela mas que se limitava a protestar entre amigos : o PS ( socialista ) teve 37,9% dos votos, o PPD ( social – democrata ) 26,4% e o CDS ( de centro direita ) 7,6 % , somando juntos quase 72 % da totalidade dos votos, sufrágio universal , livre . O PCP teve 12,5 % , o que o situava em Portugal como em todos os países europeus, entre 10 a 15 % .

Mas pouco antes dessas eleições, o MFA , Movimento das Forças Armadas , havia negociado com os partidos um acordo constitucional , segundo o qual a futura Constituição integraria os princípios do MFA ; este acordo surgia em razão dos setores mais radicais do MFA considerarem prematura a realização de eleições já em abril , exatamente um ano depois da Revolução dos Cravos, em virtude do obscurantismo do povo em certas zonas do País. Para que o sufrágio eleitoral fosse aceite, os militares impuseram que a Constituição consagrasse o programa do MFA e as medidas políticas que já haviam sido tomadas, entre elas as nacionalizações.

Mas a escalada dos setores mais radicais continuava . Na Fábrica, a COTRA , totalmente dominada por marxistas, aumentava a sua má vontade contra as elites, dos engenheiros . Com a Empresa nacionalizada o seu domínio acentuava-se , queria administrar, interferir nas operações, aumentar os ganhos dos trabalhadores, com que mantinha o prestígio e o cargo. Assim , é imposta a proibição de cobrir com horas extras as férias dos trabalhadores, o que leva à formação de mais um turno de trabalho , o quinto .

A insegurança geral, o acúmulo de preocupações com as relações trabalhistas , levam infelizmente a um acidente mortal , na instalação do Conversor ! Semanalmente , às quintas feiras , era feita uma grande parada para manutenção da Aciaria, um turno de trabalho ; como não se dispunha de mecânicos em número suficiente e se proibiam as horas extra, era contratada uma empresa prestadora de serviços de mão de obra para cedência de pessoal , que trabalhava sobre orientação do pessoal da nossa Manutenção. Numa dessas quintas feiras, uma tarefa não comum consistiu em lavar o grande rotor do exaustor daquela nova instalação de Despoeiramento , que pelo acúmulo de poeiras solidificadas nas pás se podia desbalancear , danificando o eixo.
Exaustor aberto, havia que da parte de fora se proceder à lavagem do interior com jatos de água sobre pressão. Hora do almoço, o pessoal da empresa terceirizada fica trabalhando, eu tenho atividades em outros setores, volto bem mais tarde para o Conversor. Análise da situação da Instalação para poder começar a operar, subir aqueles sete andares, ver no painel de controle, damos com o exaustor ainda aberto. Chamamos o responsável pelo pessoal de terceiros, tinha um mecânico nessas funções, está desaparecido. Alguém olha para o interior do exaustor , ele está lá dentro , morto ! Achamos que com a pretensão de melhor lavar as pás, ele tenha entrado no exaustor – o que era terminantemente proibido , pela possibilidade de presença de CO ², mais denso do que o ar, ficando na parte de baixo do exaustor . Esse operário entrou, começou aspirando o ar do interior do exaustor, inalou CO² , se sentiu mal , não conseguiu sair, estava sozinho – o que era proibido ! – caiu e morreu por afogamento em pouca altura de água que estava na parte baixa do exaustor.

Aquela inflação de 1974 , grande parte decorrente dos sucessivos aumentos do preço do petróleo, desde 1973, está sendo sentida no bolso de todos e , pior, no meu ! Aquela perda dos 1.500 escudos (surrupio ! ) mais complicou e assim volto a ter de analisar cuidadosamente o orçamento doméstico, mês a mês , a dividir o dinheiro, passar a almoçar mais vezes no Refeitório da Fábrica, muito ruim, deixar o carro em casa e ir de ônibus para o trabalho , quase 45 minutos de viagem , que aproveito para dormir principalmente no regresso a casa .

A situação política não vai melhor do que as minhas finanças . No 1.º de maio , a Intersindical – Confederação Nacional dos Trabalhadores Portugueses , fundada em 1970, no Salazarismo - portanto de absoluto domínio marxista - apresentou-se como central única dos trabalhadores, com o apoio do MFA e do PCP , provocando confrontos . No seguimento , o PS e o PPD abandonam o Governo , contrários à ocupação do Jornal República ( jornal da oposição da época salazarista, com direção socialista ) e da Rádio Renascença pelos trabalhadores conotados com a extrema-esquerda . É formado um novo Governo com base partidária muito restrita , predomínio do PCP , mantendo-se Vasco Gonçalves como Primeiro Ministro. As críticas e as manifestações públicas contra esse Governo , contra o PCP e a extrema-esquerda aumentam fortemente . Há invasões de sedes de Partidos, de Sindicatos.
Em junho é criado na região Norte do País um Partido de extrema-direita , o ELP – Exército de Libertação Português , que rapidamente ganha simpatizantes.
Em julho , num comício do PS realizado na Fonte Luminosa, em frente à Universidade onde estudei, o Presidente do PS , Mário Soares , pede o afastamento do Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves – eu assisto a esse comício , noite de verão ; era o Verão Quente da Revolução . A Assembléia do MFA aprova no início de julho um documento favorável ao poder popular .
Começa a sentir-se uma forte divisão entre as forças políticas, entre os militares e principalmente entre as regiões Norte e Sul , a Norte do Tejo e a Sul do Tejo – o Norte das pequenas propriedades é claramente contra o teor marxista que caracteriza as medidas que vêm sendo tomadas, o Sul dos grandes latifúndios é a favor delas, as invasões prosseguem , formam - se fazendas coletivas, copia-se a coletivização de Stalin.

Os acontecimentos em Angola ampliam a gravidade da situação, começam a chegar a Lisboa milhares de retornados , a grande parte com poucos haveres, a desvalorização do dinheiro é agora total.
Luanda passa por confrontos violentos , o MPLA com a ajuda de Cuba e a conivência de alguns setores do MFA expulsa pelas armas os outros dois Movimentos, o FNLA - com base de apoio de tropas da África do Sul e do Zaire e beneplácito dos Estados Unidos - e a UNITA de Jonas Savimbi , figura política controversa , maoísta, que aglomerava à sua volta o povo Ovimbundu , do nosso ex-empregado Manuel, com apoio dos Estados Unidos e da África do Sul ( e inclusive de autoridades portuguesas durante a guerra colonial ) .
Esses confrontos de Luanda estendiam-se por toda a Angola, os três Movimentos procurando ascendência , serem os únicos detentores do poder, principalmente nas cidades, com violências , massacres , entre todas as etnias e contra os europeus .
Os Movimentos para ganharem expressão popular vinham privilegiando o populismo e a demagogia, apresentando a independência como a passagem dos cargos e da riqueza diretamente para as mãos do povo, obviamente identificado como a população negra ; isto era acrescentado por ações individuais de pessoas , militantes ou não , que queriam apoderar-se dos meios econômicos . Dá-se então a explosão do medo entre os europeus e a sua fuga desesperada para o litoral e daqui para Portugal, para a Namíbia e a África do Sul, para o Brasil .

Embora o Verão apresentasse o colorido de sempre , nas magníficas praias de Tróia e de Sesimbra que todos os finais de semana eram procuradas por nós, que os Filhos adoravam, Portugal apresentava uma cor sombria, nas faces das pessoas , nas notícias e nas conversas. E alguns acontecimentos vinham ajudar ao aumento do pessimismo - Otelo Saraiva de Carvalho , principal articulador da Revolução dos Cravos , Chefe do COPCON , Comando Operacional do Continente, e da Região Militar de Lisboa , visita Cuba, tem honras oficiais, conversa com Fidel de Castro, quando retorna declara que « se for necessário mando meter todos os reacionários no Campo Pequeno » numa alusão ao que tinha acontecido no Chile com o golpe militar de Pinochet, em 1973 , agora ao contrário

« Só assim se explica que Havana e o próprio Fidel não se tivessem poupado a esforços para receber uma das figuras mais representativas da Revolução dos Cravos. Ao ponto de Otelo ter sido um dos oradores das comemorações oficiais do 26 de Julho, data que assinala o assalto ao Quartel Moncada e o início da revolta contra a ditadura de Fulgêncio Baptista.

Um programa devidamente concertado com o PCP e que visava seduzir Otelo, que, à partida para Havana, não conseguia esconder a sua admiração pela pátria de Fidel "Vou a Cuba para tomar contato com a revolução cubana a caminho do socialismo. Vou com os olhos e os ouvidos abertos para ver as experiências já adquiridas para, depois, poder incentivar a nossa revolução."

Fidel fez-lhe a vontade. Durante dez dias, El Comandante, o seu irmão Raúl e o vice-presidente Carlos Rafael Rodriguez colaram-se ao convidado, que se fazia acompanhar por uma delegação, que incluía o capitão Marques Júnior (membro do Conselho da Revolução), além de três outros oficiais, em representação dos três ramos das forças armadas »

Eu tinha aquela passagem Lisboa – Rio de Janeiro, ida e volta, comprada em Luanda, nessa altura pensada como salvaguarda se não tivesse condições de trabalho em Lisboa . A validade era de um ano , estava terminando . O CF sabe dessa passagem, conversamos com outros colegas, me incentivam a ir ao Brasil, analisar as condições de vida e trabalho, dividem as despesas, são 9 colegas. Todos se encontram pressionados pelos acontecimentos no País e na Siderúrgica, o nosso estresse é muito alto, a qualidade do raciocínio nessas condições também não muito bom !

Resolvo ir ! Inclusive com algum receio que não me deixem passar na Alfândega , há muita fuga de portugueses para Espanha, para o Brasil , de quadros técnicos, correm boatos que o Governo pretende fechar as fronteiras. Claro, não vou para ficar , a menos de obter por lá excelentes condições e a situação em Portugal ficar impossível – caso em que a Tininha iria com os Filhos !

É sábado , chego ao Rio de Janeiro no clarear do dia.
Peço ao motorista do táxi para me levar a um hotel médio do centro do Rio, fico no Hotel Resende , na Lapa, região ruim , hotel pequeno , sofrível, mas nõa é caro e eu não vim fazer turismo.
Saio, vou enfim conhecer o Rio , das aventuras sonhadas na leitura de « Caminhos Cruzados » de Erico Veríssimo , das belíssimas escolas de samba de que eu tinha visto fotografias na revista « O Cruzeiro » que se vendia em Lisboa e que infelizmente tinha deixado de circular pouco tempo atrás, das mulheres deslumbrantes que enchiam os palcos dos cabarés de Paris.
Passo pelos Arcos, o Largo da Lapa, sigo pela Rua do Passeio, à minha esquerda um grande prédio com a Mesbla, loja de departamentos, à direita um grande jardim de árvores frondosas, circulado por gradeamento, o Passeio Público.

Entro num restaurante ali na esquina com a Senador Dantas, vou até ao balcão, peço um café – servido em xícara de lavagem duvidosa , feito em máquina de alumínio que está ali em cima do balcão , sacos de pano , aparência secular. O café é péssimo ! Mas eu estou na terra do café !

Sigo pela Senador Dantas , vou até à Rua Evaristo da Veiga, sigo à direita, estou na Praça Floriano Peixoto, cruzamento com a Avenida Rio Branco, na frente do Teatro Municipal ( está lá Theatro ! ) , os pombos correm na frente dos meus pés, esvoaçam sobre as mesas dos muitos restaurantes que se dispõem pela praça , de toldos coloridos que protegem do Sol que começa a aquecer, manhã de inverno no hemisfério Sul. Os garçons começam a preparar as mesas, já algum movimento, compro o jornal - decido pelo tamanho , o Estadão , de São Paulo – sento-me para observar e ler .

O Brasil atravessa o « milagre econômico » , um período que desde 1964, ano da implantação da ditadura militar , o crescimento anual do PIB não tem sido inferior a 9% . A inflação preocupa , no ano anterior atingiu 34,55 % , mas o País instituiu um sistema de indexação que protege ativos financeiros, contratos , preços públicos e salários, estes reajustados anualmente. O País recorre ao crédito externo, a oferta é grande , a divida externa estava ao final de 1974 em 17, 2 bilhões de US$ , a divida interna era só de 4,6 % do PIB .
Quinto País mais vasto em área geográfica , ocupa o 10º lugar na economia mundial.
A população é de 113 milhões de pessoas, crescendo 3 milhões por ano ; é o País que mais cresce no Ocidente e por razão da emigração das populações para os centros urbanos, esse crescimento se verifica só nestes, a população rural está estabilizada em 45 milhões de pessoas.

«Esse problema dos centros urbanos vem criando um acúmulo insuportável em tudo que se relaciona com a qualidade de vida , apesar da economia brasileira vir crescendo a taxas muito elevadas. A crise do petróleo, provocando a necessidade de reduzir o crescimento econômico , está pondo em foco aquelas deficiências que vão do crescente analfabetismo , às taxas elevadas de mortalidade infantil ,à favelização das cidades, à insuficiência de água potável e de esgotos sanitários, à deficiente nutrição e à formação de uma massa de 25 milhões de carentes totais »

O milagre econômico eu encontrava ali, nas inúmeras páginas do jornal que ofereciam emprego, automóvel, apartamento, casa .

De Portugal referia - se no jornal que nove militares do Conselho da Revolução, da ala moderada , entre eles Melo Antunes, Vasco Lourenço e Vítor Alves com o apoio de outros militares como Ramalho Eanes e Salgueiro Maia, publicaram uma declaração em que se afastam tanto do modelo das democracias populares da Europa do Leste, como do modelo social-democrata , defendendo um projeto nacional de transição para o socialismo « inseparável das liberdades, direitos e garantias fundamentais » . Algum alívio no verão quente do meu País !
Reportava - se também a chegada ao Brasil de portugueses das colônias , aos milhares , até em pequenos barcos , em desespero. O Brasil tinha infelizmente incentivado os movimentos pró - independência , sempre tomando posições contra Portugal nos orgãos mundiais.

O Brasil tem como Presidente o General Ernesto Geisel, eleito em 1974 pelo Congresso Nacional, posse em março , tinha vencido o candidato da oposição Ulysses Guimarães , do MDB . Com o General Golbery na Casa Civil , um dos participantes da Revolução de 1964 , Geisel vem procurando promover um processo de transição política, diminuindo a dureza do aparelho repressivo com a transferência da sua gerência em caráter nacional para a Polícia Federal.

Começo a olhar à minha volta, a Praça tem agora bastante movimento , vê-se muita gente pobre que fica circundando as mesas e se espalha pela Praça, nas escadarias do Teatro, muitos jovens , casais, alguma gente bonita, melhor vestida. Mas o conjunto não me parece bonito , é confuso, embora alegre, às vezes vibrante, mas tem traços de marcante pobreza, talvez se iguale a Luanda , nas vozes que ouço o sotaque é o mesmo, levemente cantado, mais pausado do que em Portugal. Mas o cheiro do ar não é o mesmo , não sinto aquele cheiro de terra vermelha, aqui tudo é asfalto, embora sujo, o lixo se amontoando nos bueiros.

Vou almoçar naquele restaurante do café pela manhã . Vejo o cardápio, a comida é indiferenciada , pouco variada em alimentos , muitos pratos de carne e de massa . O café não é melhor, deve ter vindo daquele balcão.

Saio pela Senador Dantas, atravesso a Avenida República do Chile, chego ao Largo da Carioca , admiro o conjunto do Convento e da Igreja de São Francisco da Penitência , os grandes prédios do BNDES e da Caixa Econômica . Passo pela Rua da Carioca, alcanço a esquina das Ruas da Assembléia e Gonçalves Dias ; estou no centro administrativo e financeiro do Rio, área de edifícios do Governo , escritórios, bancos , muito comércio, bares , restaurantes , edifícios - garagem . O movimento é grande, de pedestres e automóveis, algumas lojas são luxuosas, inúmeras galerias, tem a Confeitaria Colombo , com magníficos salões de arquitetura art nouveau . Sigo pela Rua Uruguaiana , alcanço a Avenida Presidente Vargas, vou na direção do mar , chego na Igreja de Nossa Senhora da Candelária , similar à Basílica da Estrela em Lisboa, obra do barroco português , fachada virada para a Baía da Guanabara. Estou na Praça Pio X , vou pela Rua 1º de Março , chego na Igreja de São Bento, logo na frente o Mosteiro de São Bento. Na minha direita, o mar bate no cais, soltando nuvens de água que se espalham com o vento .
Me lembro de Luanda , o seu mar azul que bate na areia entre os coqueiros, o cheiro da maresia que atrai para a Ilha, os bons restaurantes do caranguejo e do arroz de peixe. O Rio de Janeiro é bonito, uma cidade compacta, turbulenta, mas não me seduz ! O povo é alegre , comunicativo, prestável , mas a cidade não tem o charme das cidades européias nem a simplicidade de Luanda ou de Lourenço Marques.

Manhã de domingo, mais acostumado com a paisagem humana da Cinelândia, compro o Estadão – enorme ! – e aproveito a sombra quieta das árvores do Passeio Público para ler.
O jornal tem que ser dividido , tem dezenas de cadernos, a maior parte de anúncios.
Começo a me aperceber das diferenças no modo de escrever entre os dois Países , na forma de colocação dos verbos, na dificuldade brasileira de reconhecer o - este - e o - esse - , na quase impossibilidade de acertar a crase ! Dos cartazes nas ruas , nas lojas, aos cardápios dos restaurantes , a utilização da língua portuguesa é maltratada, não acontecia isso em Angola ou Moçambique, Talvez aqui a democratização da cultura seja maior, penso.

Pego um ônibus, quero conhecer Copacabana , o cartão postal das revistas que trazem a Brasil. Assusto – me , o motorista conduz o veículo de forma enraivecida, a caixa de mudanças é usada continuamente como freios, as curvas feitas a velocidades tresloucadas , as pessoas atiradas para cima das outras ! Vejo um ônibus parado na frente do meu, a pouca distância, o meu pára colado nele, freada louca que me joga para a frente , preciso me agarrar a qualquer coisa. As pessoas no ônibus parecem achar normal , ninguém reclama , se apertam, na maioria gente muito simples, roupas desajeitadas , coloridas mas feias. Estou me habituando !

Nessa viagem de pouco prazer e muito medo, tento olhar para fora, descobrir a paisagem. Passamos pelo Parque do Flamengo, 7 Km de extensão, saindo da ponta à esquerda do Aeroporto Santos Dumont, surpreendente, estende-se ao longo da praia com amplas pistas expressas e vias para pedestres, passarelas elevadas e túneis de ligação entre as pistas, conjuntos paisagísticos de árvores magníficas , monumentos, conjuntos de campos para atividades desportivas, um deslumbramento de lazer que as pessoas ocupam , passeando, jogando, deitadas na grama , e que traduz para aquela região da cidade uma grandiosidade envolvente , uma liberdade de espaço magnífica .

« As origens do bairro do Flamengo remontam ao período da descoberta da Baía de Guanabara. Já em fins de 1503 ou início de 1504, o navegador Gonçalo Coelho abastecia de água a sua expedição na foz do rio Carioca, que desaguava na atual Praia do Flamengo. Quando os portugueses por aqui chegaram já habitavam o lugar os índios Tamoios, do grupo Tupinambá. Eles ocupavam praticamente toda a orla da Baía de Guanabara. Em função disso muitos dos nomes adotados para a região derivam da língua dos índios. O nome Guanabara, por exemplo, queria dizer rio de curvas ou seio de mar .
Embora os portugueses chamassem o lugar como Aguada dos Marinheiros, os Tamoios influenciaram na mudança do nome para rio Carioca em função de uma feitoria construída no local. Carioca, na língua dos Tamoios, quer dizer casa de branco .
Em 1960 a cidade do Rio de Janeiro deixa de ser Distrito Federal e torna-se mais um Estado da Federação, com o nome de Estado da Guanabara, enfatizando o nome da baía onde se localiza a Enseada de Botafogo e a praia do Flamengo.
O primeiro governo eleito , de Carlos Lacerda , dinamiza mudanças radicais na cidade, removendo vinte e sete favelas para outras regiões e implementando uma série de modificações paisagísticas. Muitas obras foram realizadas na cidade, como a abertura do túnel Rebouças, o alargamento da praia de Copacabana, a construção da avenida Perimetral, que passa por cima da Praça XV, sendo por isso destruído o mercado municipal ali construído por Nuno Alves Pereira e Souza, em 1907.
Das obras paisagísticas realizadas no período, a mais grandiosa, a mais extensa e completa área de lazer da cidade foi o Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, conhecido como "Aterro do Flamengo". Está situado junto à orla da Baía da Guanabara, sendo a maior parte contígua à Praia do Flamengo. Abrange uma faixa de 121,9 hectares, que se estende desde o Aeroporto Santos Dumont até o Morro da Viúva em Botafogo.
Idealizado por Maria Carlota Macedo, o Parque é um dos principais pontos de entretenimento da cidade. Além da extensa área para passeio e a praia, apesar de ter suas águas poluídas pela Baía de Guanabara, podem - se encontrar lá pista de aeromodelismo , tanque de modelismo naval , campos de futebol , quadras de tênis , campos de basquete , restaurantes ; o Museu de Arte Moderna , o Museu Carmen Miranda , ciclovia , o Monumento a Estácio de Sá, projetado por Lúcio Costa ; a Marina da Glória, projetada pelos arquitetos Amaro Machado, Duarte Bello e Luiz de Souza ; o Monumento aos Pracinhas, idealizado pelo marechal João Baptista Mascarenhas de Moraes e projetado pelos arquitetos Hélio Ribas Marinho e Marcos Konder. Possui ainda um playground para as crianças se divertirem.
A vegetação é um projeto de Burle Marx.
O parque modificou significativamente a paisagem do bairro do Flamengo e é hoje um dos cartões postais mais constantes que divulgam a imagem da cidade no Brasil e no exterior »

Chego a Copacabana , estou na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, de movimento intenso, cosmopolita . Lojas bonitas, gente bonita, mostram uma paisagem urbana bem melhor do que a da Cinelândia .

« Copacabana teve a sua paisagem marcada pelas construções em estilo art-decô, com a simplicidade das linhas retas, as janelas inspiradas em vigias de navio e "guarda-corpos" de ferro arredondado. Foi neste bairro que este estilo se mostrou de forma mais expressiva. Até hoje, podemos identificá-lo em alguns prédios: nos vastos halls, nos detalhes em ferro e vidro das portas, nos lareiros e luminárias, nos relevos sutis do concreto das fachadas, nas saliências e reentrâncias...
A criatividade e as características desse estilo são marcantes. A grande flexibilidade da planta dos apartamentos possibilitava uma circulação interna tranquila por todos os cômodos. O uso externo de revestimentos nobres, formando uma barra de proteção, resguardava as paredes em contato com a rua. As varandas e balcões com parapeitos de alvenaria, total ou parcialmente embutidos no corpo da edificação, se destacavam. A boa qualidade dos materiais de construção utilizados e o uso de formas arredondadas, principalmente nos prédios de esquina, permitiram uma ótima conservação.
Com o aumento do fluxo de moradores e pedestres foram sendo construídas garagens para a guarda de veículos – o que se evidenciava mais fortemente em Copacabana do que em outros bairros da Zona Sul. Os edifícios foram se proliferando. E a possibilidade da classe média de se instalar no bairro, anteriormente só das classes abastadas, também. Para atender a esta demanda, novas formas de comercialização de imóveis foram sendo implementadas. Prédios cada vez mais altos, maiores e em maior número foram sendo construídos , era a era dos grandes edifícios de conjugados dos anos 50.
Em tempos de euforia em Copacabana, devido ao boom imobiliário que desde os anos 40 se manifestava no bairro, Juscelino Kubitschek tomava posse da presidência do Brasil. A área verde de Copacabana dava lugar aos edifícios. As cidades brasileiras começam a crescer, devido ao intenso aumento demográfico, proporcionado pela urbanização das massas rurais.
O boom imobiliário abalou fortemente toda a estrutura urbanística da cidade. Copacabana, durante esse período, concentrou toda a problemática da expansão capitalista subdesenvolvida: crescimento desordenado, alta densidade demográfica, falta de regulamentação .
Copacabana começou a se destacar : expressão de forças econômicas, sociais e culturais de sua época. Deu-se início a um mito. Copacabana passou a ser conhecida mundialmente devido a sua natureza exuberante »
Caminho em direção á praia, é Inverno, as águas estão agitadas , poucas pessoas se atrevem na areia . Vou sob a copa das árvores, ao longo dos grandes calçadões , de desenhos em pedra portuguesa, brancas e pretas , lindos mosaicos em forma de ondas, e me apercebo da beleza natural da Baía , em curva aberta , longa, 4 Km , de imenso areal, branco, um Forte em cada extremo , contraste com o mar e do outro lado a Avenida Atlântica ladeada de belos prédios, alguns modernos, a maioria de arquitetura neoclássica , o grande edifício do Copacabana Palace, lembrando Nice . O movimento das pessoas pelos calçadões é grande , gente bonita, na maioria jovem, que aproveita a manhã de lazer. Começo a entender porque a Praia se chama a Princesinha do Mar !
O Bairro tem um movimento frenético, é repleto de restaurantes, de cafés, bares, boates, cinemas, teatros, hotéis, de lojas elegantes misturadas a lojas populares , lojas e salões de beleza , de artigos turísticos, antiquários, joalherias, lojas de pedras semi – preciosas que me encantam , uma mistura de gentes , a maioria de classe média mas também com frequência gente muito pobre . Os bares estão repletos, pessoas que bebem cerveja em pé ou sentadas na calçada, que falam alto, no ar musica de algum rádio , samba, os animando a ensaiar passos da dança . Os ônibus circulam lotados, fazem aquelas manobras loucas que todos parecem achar normal.
A cidade se mostra aqui , na mistura das suas gentes , nos seus costumes , atrevida , insinuante, alegre, mas também no grande contraste das classes sociais, mais dilacerante ao observar as enormes favelas que se estendem para trás de Copacabana , ocupando os morros, debruçadas sobre a cidade rica. Delas certamente descem os trabalhadores que em Copacabana encontram subsistência através de emprego no comércio , na venda ambulante de flores e pequenas coisas , na prostituição ( altíssima ) e , claro, no exercício da malandragem mais ou menos perigosa.
Tenho o número de telefone do irmão de um colega meu do Seixal, da Aciaria, que há tempos está no Rio. Vou telefonar .
Ele trabalha num escritório no Rio , é jovem , casado, dois filhos, a esposa é de Timor, colônia portuguesa que ganhava a independência agora , trabalha também no Rio , laboratório farmacêutico. Moram em Icaraí , no outro lado do Rio , margem oposta à Praia do Flamengo, fazem o trajeto por barco até Niterói e depois ônibus. Ele me dá o contato de um banqueiro em São Paulo, conhecido da família, escreve bilhete simples . Almoçamos , me convida para o visitar no domingo .
Pelos anúncios dos jornais procuro Agências de emprego ali no Centro , a maioria trabalha só com mão de obra pouco qualificada, máximo cursos técnicos. Encontro duas, uma na Avenida Graça Aranha , uma senhora de meia idade , diligente, outra na Avenida Almirante Barroso , jovens . Ambas me pedem currículo, não tenho , preciso montar, escrever à máquina , copiar. Aquele novo amigo me ajuda, no Escritório em que trabalha , uma datilógrafa se prontifica .
Procurar emprego pelas Agências leva tempo, pelos jornais as respostas demorariam ainda mais, vou aproveitar para ir a São Paulo , falar com aquele banqueiro. Peço no Hotel para me marcarem um em São Paulo, Centro, me indicam o Hotel Nau, faço reserva.
Resolvo ir de avião, ponte aérea, saio do Santos Dumont , viagem de menos de uma hora. Saio no Aeroporto de São Paulo, Congonhas, pego um táxi, Rua Conselheiro Nebias.
Esta cidade me apavora ! Sei que tem 10 milhões de habitantes, é a 5ª maior do Mundo, cresce 5,8 % ao ano. Mas não esperava o impacto de um trânsito tão intenso, o cheiro de gasolina queimada que se espalha no ar é enjoativo, o ritmo do trânsito que não deixa espaços nas ruas é alucinante. O táxi vem pela Avenida Vinte e Três de Maio , uma avenida expressa , as suas laterais não têm edifícios mas para lá delas surgem prédios enormes , arranha – céus. O Sol é forte, tempo seco, o ar é desagradável.
O táxi sobe a Avenida São João, de aparência acolhedora , passa a Avenida Ipiranga e chega ao Hotel Nau . O local e as instalações são ainda piores do que as do Rio, daquele Hotel Rezende, mas , repito para mim mesmo , não estou fazendo turismo !
Vou conhecer a cidade . Amanhã cedo vou falar com o banqueiro.
Alcanço a Avenida São João, venho até à Ipiranga, tem na esquina o Bar Brahma , sinto que estou no ponto de confluência do movimento da cidade , o trânsito e as pessoas movem-se apressados, prédios altos têm entra e sai de gente que se atropela, muito comércio, cinemas . Como no Rio de Janeiro , a aparência das pessoas revela uma miscelânea de classes , muitos homens vestem terno, senhoras elegantes, bons vestidos, salto alto, mas tem uma multidão de gente humilde, pobre, que se mistura em tudo, deixando o colorido das suas roupas simples marcando todo o conjunto.
Chego no Largo da República, grande jardim de árvores frondosas, maltratado, muitos bancos aproveitando as sombras, bastantes com gente deitada, desconfortavelmente . Vou também descansar por aqui, escrever para a Tininha, depois descobrir os Correios.
A cidade ali na frente é um burburinho de feirantes, de comércio chamativo. Tem lojas de roupas, de sapatos, de material eletrônico, de discos, grandes e pequenas lojas, livrarias, restaurantes , bares, algumas mesas pelas calçadas mas o espaço é sobretudo ocupado por bancadas e barracas que vendem artigos baratos ; tudo é uma babel, sem identidade , verdadeiramente uma feira indistinta, de nenhuma elegância .
Escrevo, sobre a viagem e do desagradável que vejo, procuro os Correios , lá para o fundo na Rua 7 de Abril , me dizem . Atravesso aquela babel, as pessoas se esbarram, despreocupadas , mas são na maioria simples , educadas , acolhedoras. Coloco a carta, almoço em qualquer lado , comida sem graça, depois sigo andando , despreocupado , me afasto da Praça da Republica .
Alcanço a Avenida São Luis , grandes edifícios, galerias, passo a Praça Dom José Gaspar , tenho à direita a Rua Augusta, subo. Aqui as lojas têm melhor apresentação , as pessoas também , mas o exercício de transitar pelas calçadas parece acrobático, cheias de desníveis, coisas amontoadas , carros que adentram os prédios, os bondes e ônibus que pedem passagem , as pessoas que não olham , apressadas . As construções são grandes mas deselegantes, sem estilo definido, mas encontro bons hotéis, centros e galerias de comércio, discotecas, clubes , muitos restaurantes , bares, sorveterias, docerias ; algumas mesas aparecem dispostas pelas calçadas das ruas laterais , estas mais charmosas, com bastante arvoredo, mais tranquilas . A Rua Augusta é certamente um lugar de agitação noturna . Não chego ao final da subida , tem placas que indicam para lá a Avenida Paulista, deixo para outra vez, quem sabe .
O movimento da cidade cansa , talvez seja pelo contínuo correr dos automóveis, pela agitação apressada das pessoas , também a dificuldade em circular a pé . E a cidade não atrai , não surpreende , não provoca emoção . Só a de ser grande, indefinida , embora cosmopolita , de uma mistura de gentes que , essa sim , surpreende .
Saio à noite, jantar. Sigo pela Rua Vitória , me deparo na frente com o Largo do Arouche , o centro ocupado por inúmeras lojas de flores, um aspecto colorido que não tinha ainda encontrado naquela metrópole. O Largo tem numa das suas extremidades vários bares , muitas mesas espalhadas por uma larga calçada , ocupadas por um movimento efervescente , carros que passam e param , muita gente que circula, estaciona em pé. Me junto ao movimento, são na maioria gays que confraternizam, se mostram, nada convencionais , quase sempre divertidos. Aproveito uma mesa , fico por ali, agora a cidade me surpreende, tem vida, é diferente .
De um dos lados da Praça tem um restaurante, o La Casserole, do outro um mais atraente, parece alegre, O Gato Que Ri. O nome me diverte, vou jantar. O restaurante está cheio , aparência de taverna, desço, fico na cave, experimento um spaghetti . O ambiente é descontraído , os garçons atenciosos , diferente do que encontrei pela manhã .
Vou pela Rua Bento Freitas, iluminação cintilante de painéis que anunciam casas noturnas, gente aglomerada pelas portas, me lembro de Pigalle, não tem o mesmo charme mas é divertido. Vou até à Avenida Ipiranga, o movimento noturno da cidade é muito grande, casas noturnas, cinemas .
Manhã , vou conhecer aquele banqueiro , tenho um cartão do contato no Rio de Janeiro . Rua da Boa Vista, pego um táxi. Rua de prédios comerciais, bancos, monótona . O senhor é elegante, cordial, de imediato disposto a ajudar, me fala de Belo Horizonte, tem um amigo que é secretário numa agência de desenvolvimento , me dá um cartão . Conhece aqui em São Paulo pessoas de uma Siderúrgica , vai-me levar lá , diz que é perto.
Vamos a pé , atravessamos a Rua 15 de Novembro, seguimos pela Rua de São Bento, de um movimento comercial frenético , só de pedestres . O senhor me segura pelo braço, acho estranho deve ser costume . Mas é simpático, me explica a cidade , entusiasmado .

« O Triângulo é onde a cidade de São Paulo nasce. O perímetro delimitado pelas Ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, no Vale do Anhangabaú (chamado na época de “Vale Intransponível” ) , concentra a ferveção populacional da São Paulo do início do século.
O Centro era balizado pelos Conventos de São Francisco, São Bento e São Carmo. As ruas não iam além dos vales dos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Tudo era tão perto que a primeira linha de bonde, puxado por animais, só seria inaugurada em 1872. Mas o primeiro passo para tirar São Paulo do destino periférico havia sido dado no ano anterior. A inauguração da ferrovia Santos-Jundiaí, em 1867, iria ajudar a canalizar para a cidade a riqueza do café, que se expandia pelo oeste do Estado. E, no sentido contrário, iria trazer milhares de imigrantes estrangeiros.
Consideradas estreitas até para os padrões de construção da época, com o passar do tempo, as “Ruas do Triângulo” se transformaram, naturalmente, em ruas estritamente para pedestres.
Durante o governo de João Teodoro (1872-1875), foi feito o calçamento das ruas da região, uma novidade então na época, abrangendo também o Largo do Rosário e a Praça da Sé.
O Triângulo acabou virando uma região de passeio. A expressão “fazer o Triângulo” acabou denominando o passeio de grupos de rapazes saindo do Largo São Bento, avançando pelas Ruas 15 de Novembro, Direita e São Bento, enquanto as moças faziam o trajeto inverso. O Bar Viaduto, na Rua Direita, com orquestra todas as noites, também servia aos propósitos dos apaixonados.
Em virtude de seu formado arcaico das artérias do Centro antigo, o cruzamento entre a Rua São Bento e a Rua Direita foi chamado de “Quatro Cantos”.
A Rua Direita já se chamou Direita de Santo, Santo Antônio e Direita da Misericórdia, em razão de quando São Paulo foi convertido ao cristianismo, Deus teria dito: "Segue directum que Me encontrarás" ( por isso também todas as Ruas Direitas desembocam em alguma igreja ) »

Chegamos na Praça do Patriarca, pequena, com paradas de ônibus , encruzilhada de seis ruas, mas aqui a cidade me parece mais elegante , movimento intenso . O senhor continua me segurando pelo braço !

Atravessamos o Viaduto do Chá , acompanhamos a multidão que se desloca no sentido do majestoso Teatro Municipal , à direita, construção imponente do início do século, similar ao Teatro da Ópera de Paris , arquitetura exterior no estilo do renascimento barroco .

« A armadura de ferro foi encomendada em Düsseldorf, o ferro artístico em Frankfurt, o bronze artístico em Berlim, Paris e Milão; os mosaicos vieram de Veneza, os mosaicos de pavimento, de Nova York e Berlim, os mármores de Siena, Verona e Carrara e como esses, dezenas de itens foram contemplados com uma especificação exigente »

As ruas têm um movimento agitado, aquela mistura de tipos de gente que encontrei no meu passeio da véspera , seguimos pela Rua Conselheiro Crispiniano , comercial, só de pedestres, estamos na Avenida São João . O prédio é ali , da Siderúrgica Cosipa - Companhia Siderúrgica Paulista - com Unidades em Cubatão, ponto de ligação entre Santos – São Paulo.
O senhor me apresenta , nos despedimos.Fico com um engenheiro da Siderúrgica, falo do meu currículo, ele é responsável pelo Plano de Expansão, tem interesse nos meus serviços para a área de projeto do Conversor LD , começo imediato para trabalhar ali no escritório , o salário é de 12000 Cruzeiros . Fico de dar resposta, agradeço.
O salário mínimo era de pouco mais de 500 Cruzeiros, aquela proposta não me atraía, a cidade também não. Certamente que eu não tinha visto as áreas nobres da cidade, como também não vira os restaurantes de luxo, as lojas sofisticadas, de certo existentes numa metrópole de 10 milhões de habitantes, onde existiria uma elite de fortíssimo poder de compra . Mas não era esse o meu meio, não o seria ali, e a minha sensibilidade não se tinha agradado de São Paulo. Talvez lhe faltasse o mar, talvez a dimensão me impressionasse, ainda recordava as condições acolhedoras da « pequena » Luanda !
Decido voltar para o Rio de Janeiro, ir naquelas Agências , tenho a visita no domingo à casa daquele novo amigo, tenho também o cartão para Belo Horizonte.
Vou para Congonhas , tem vôo às 15, 15 horas , faço o check - in , entro , aguardo que o sistema de som avise para o embarque . Passa das 15,30, a sala em que estou não tem ninguém , acho estranho , pergunto a uma Comissária pelo meu vôo. Já saiu , no horário ! Tinham chamado da porta de embarque, voz tão baixa que não ouvi. Ou terá sido o sotaque ? A Comissária corre para me encaixar no próximo vôo, é simpática, resolve.
O avião se aproxima do Rio de Janeiro, começa circulando sobre a cidade , eu estou na janela. O aviso de bordo diz que teve problema na pista, o avião vai sobrevoar até estar liberada. Que sorte ! Eu estou na janela do avião, baixo sobre a cidade, quase vôo panorâmico, para êxtase dos meus olhos que vêm cada pormenor da cidade , e eu entendo porque é chamada de « Cidade Maravilhosa » !
Daquela altura, as favelas têm um aspecto de presépio, espalhadas pelas colinas, espremidas pelos grandes prédios. O Sol brilhante incide sobre toda a cidade , sobre a Lagoa, o Pão de Açúcar, a Baía começando na Ilha do Governador , criando nuances de sombras que destacam os conjuntos ; o Estádio do Maracanã está lá, imponente . A costa recortada, as grandes avenidas que a acompanham , a estrada que vai para a Barra da Tijuca, para a região dos Bandeirantes, formam contraste com o azul esverdeado do mar , marcando a cidade , que num todo parece ser abraçada e abençoada pelo Cristo no Corcovado. É um espetáculo para não esquecer !
O avião pousa, vou procurar minha mala , embarcada no vôo anterior . Para minha surpresa, esse vôo tinha retornado para São Paulo, a pista estava interditada, acharam melhor ! E eu fico ali, esperando pela minha mala, lembrando aquilo que tinha tido a sorte de assistir .
Sábado aproveito para ler aquele « tijolão » , o Estadão, procuro notícias de Portugal - continuavam as nacionalizações, as invasões de terras , faziam - se discursos demagógicos, alguns inquietantes, o Verão Quente estava lá .
De Angola as notícias eram desesperadoras !

« A população portuguesa vivendo, como a esmagadora maioria dos angolanos, num meio de insuportável violência e de todos os desmandos que lhe estavam associados, passou também a sentir carências de toda a ordem até ao limite da falta de alimentos. Com o quotidiano devastado, refeições esporádicas e esperanças anuladas, aquela comunidade começou a sentir-se enclausurada, em especial nas terras do interior, e deu início a um movimento sem retorno quer para Luanda na procura de avião ou barco, quer para fora de Angola. Esta última opção traduziu- -se em aventuras verdadeiramente épicas das gentes do sul ou que para o sul convergiram, mesmo a partir de Malange, que se foram integrando em colunas de viaturas, as mais diversas, e por entre controles, exigências e chantagens de pessoal armado do Movimento dominante nas áreas atravessadas, se escoaram até à Namíbia, enquanto os camionistas de Luanda, da faixa litoral e do centro não desistiam do seu propósito, que muitos deles concretizaram, de chegar a salvo a Portugal levando por terra os seus camiões ! A Cruz Vermelha Internacional fazia o que podia e, em Luanda, organizava, desde fins de Junho de 1975, a distribuição de grandes quantidades de alimentos e também vestuário e medicamentos a habitantes das favelas , a desalojados e a hospitais »

Domingo de manhã, a pé ao longo da Avenida Rio Branco e depois pela Rua da Assembléia, chego à Praça Quinze de Novembro , antigo Cais Pharoux

« Aterro realizado em local onde antes coexistiam pequenas lagoas, charcos, pântanos, mangues e trechos de mar, a Praça Quinze guarda, no espaço que abrange o Paço Imperial, o Convento dos Carmelitas, o Arco do Teles e a Travessa do Mercado, muito da memória do Brasil. Pode-se dizer que foi ali que a história do Rio começou. Com seus bares, restaurantes, feiras, museus e intensa movimentação popular, mantém um charme todo especial »

Aí encontro a Estação das Barcas , em frente à Ilha Fiscal , em que desponta um magnífico castelo colocado como adorno da Baía da Guanabara

« O castelo da Ilha foi projetado pelo engenheiro Adopho José Del Vecchio, para o Ministério da Fazenda que pretendia ter ali um posto aduaneiro. Del Vecchio, que era diretor de obras do ministério, elaborou um projeto em estilo néo-gótico com inspiração nos castelos do século XIV, em Auvergne, na França.
A construção foi executada com extrema qualidade e os profissionais que trabalharam, cada um em seu ofício, merecem destaque : o trabalho em cantaria é de Antonio Teixeira Ruiz, Moreira de Carvalho se encarregou dos mosaicos do piso do torreão, um trabalho primoroso feito com diversos tipos de madeira. Os vitrais foram importados da Inglaterra, o relógio da torre é de Krussman e Cia., os aparelhos elétricos da Seon Rode. A pintura decorativa na parede é de Frederico Steckel e as agulhas fundidas foram feitas por Manuel Joaquim Moreira e Cia.
O prédio da Ilha Fiscal foi inaugurada no início de 1889 pelo Imperador.

O famoso baile da Ilha Fiscal, foi um evento em homenagem à tripulação do couraçado chileno Almirante Cochrane, para cerca 5 mil convidados. Com essa recepção, o Império reforçava os laços de amizade com o Chile, bem como tentava reerguer o prestígio da Monarquia, bastante abalado pela propaganda republicana.
A maior festa até então realizada no Brasil ocorreu pouco após a inauguração da Ilha.
Falou-se muito da música (valsa e polca) e do cardápio (uma imensa quantidade de garrafas de vinho e comidas exóticas) dessa festa. O comportamento dos participantes foi largamente explorado (a imprensa da época - sec. XIX – noticiou que peças íntimas foram encontradas na Ilha depois da festa) . O luxo e as extravagâncias com que se apresentaram os convidados geraram todo tipo de comentários.

A República foi proclamada seis dias depois do baile, e o Imperador embarcou no mesmo Cais Pharoux de onde partiam os ferry-boats para levar os convidados para o baile »

A barca é de sofrível qualidade , os passageiros uma mistura de gentes não muito melhores, mas o percurso é rápido, menos de 30 minutos .Saio na Praça Araribóia, em Niterói, procuro o ônibus para Icaraí.

« A palavra Icarahy, em tupi-guarani, subdivide-se em I (água ou rio) e Carahy (sagrado ou bento). Icarahy significa água ou rio sagrado . No período pós-guerra, com o processo de industrialização pelo qual passava o País, o bairro viu crescer a demanda de habitações para a classe média. Houve na época uma migração intra-municipal sobretudo de moradores da Zona Norte da cidade; e migração intra-estadual, principalmente de São Gonçalo e municípios do Norte e Noroeste fluminenses. A construção de edificações multifamiliares foi a solução adotada pelo capital imobiliário para atender a nova classe social imbuída do desejo de morar à beira-mar. O boom imobiliário atravessa décadas e teve como facilitador os financiamentos do Banco Nacional da Habitação (BNH), a partir do final da década de 60. Na década de setenta, com a construção da Ponte Rio-Niterói, o bairro consolida-se como centro urbano polarizador e de grande importância para a cidade, com forte concentração de comércio, de serviços e de atividades de lazer. O modelo de ocupação caracterizado pela contínua substituição de casas isoladas e de prédios de poucos pavimentos por outros prédios maiores e mais altos, intensifica-se sobretudo a partir da orla, onde o valor da terra atinge altas cifras, diminuindo a altura dos prédios e o valor dos imóveis à medida em que as quadras se interiorizam. Prédios luxuosos, de alto padrão construtivo, são erguidos na orla. E prédios de padrão médio e baixo são construídos no interior do bairro, expressando a segregação espacial da paisagem urbana »

Só pela descoberta da visão que dali eu obtinha do outro lado da Baía da Guanabara , a penosa viagem tinha valido a pena ! O conjunto era maravilhoso , surpreendente , de uma beleza única ! Ali da Praia de Icaraí , a Cidade Maravilhosa se abria à minha imaginação , o Corcovado e o Pão de Açúcar se mostravam imponentes, eu tinha ali uma substituição não menos bela para a Baía de Luanda ! A um canto da praia , a Pedra de Itapuca me ajudava a sonhar!

« Pedra de Itapuca abriga uma lenda na qual a índia Jurema manteve com o guerreiro Cauby uma aventura amorosa. Conta-se que Jurema estava prometida ao mais forte e bravo dos guerreiros de sua tribo, quando se deparou, um dia, com Cauby, de nação estranha. Desde então, nas noites de lua, Jurema cantava e Cauby a ouvia. Um dia, o romance foi descoberto pela tribo de Jurema, sendo os dois amantes atacados. Cauby, temeroso, fugiu. Curada dos ferimentos, Jurema nunca mais cantou. Muda e triste, permanecia na praia, todas as noites, chorando as saudades de Cauby até que, passadas seis luas, chegara a hora de seu casamento forçado com outro guerreiro de sua tribo. Na véspera, Jurema, mais uma vez, se dirigiu à praia e começou e cantar. Foi quando, saindo das águas, Cauby abraçou-a e os dois se deixaram ficar, protegidos pela lua, até que membros da sua tribo os cercaram, armados e enfurecidos. Na luta desigual, os amantes pagaram com a vida. Nesse momento, Tupã, a pedido de Jacy - a lua - abençoando o amor de Cauby e Jurema, transportou-os para o interior da pedra, onde permaneceram eternamente unidos »

Procurei o apartamento do meu amigo, prédio para o interior, em rua simples, arborizada . A esposa , natural de Timor, cor de pele de mulata clara, era mais nova do que ele, bonita, dois filhos, um garoto de 4 anos, uma filha ainda de berço. Almoçamos, querem ir à tarde visitar um Coronel do Exército , amigo de família, que mora na Avenida Vieira Souto , no Rio. Vamos, têm de levar os filhos, ajudo, o ônibus, a barca , de novo no Rio , pegamos um ônibus para Ipanema .
Se apenas sozinho , o ônibus do Rio já era uma aventura , com duas crianças era um inferno ! Cheio como sempre , gente pouco disposta a ajudar , indiferente aos outros, o exercício de equilíbrio é penoso, cansativo , quase esqueço a maravilhosa paisagem a que assistira de Icaraí.
A Avenida Vieira Souto me mostra outro Rio de Janeiro ! A opulência do panorama sobre a Baía, a praia belíssima, têm naquela avenida um enquadramento luxuoso feito pelos prédios opulentos que ocupam 12 quarteirões , 2,2 Km , poucos comerciais, numa passarela de luxo e beleza apenas disponível aos ricos, por ali isolados da realidade cruenta das favelas e daqueles ônibus que transportam o carioca . Com o Arpoador numa das pontas, o morro Dois Irmãos na outra, a praia é valorizada pelas palmeiras e coqueiros , pelo conjunto de ilhas que estão na sua frente, pelo calçadão naquela pedra portuguesa que já vem de Copacabana, pela gente bonita que passeia, corre , observa e é vista , naquele domingo de Inverno .

« O Arpoador é famoso pela pedra que invade o mar separando a Praia de Copacabana, de onde se tem uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro .
De um lado, as praias de Ipanema e do Leblon com o morro Dois Irmãos ao fundo; do outro, as praias do Diabo e Copacabana. Além do visual e da praia, o Arpoador tem também um parque com muito verde onde os artistas brasileiros e internacionais fazem apresentações populares. O parque foi batizado de Garota de Ipanema, em homenagem à famosa música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, cariocas por excelência »
O prédio onde vamos não difere dos demais, uma fachada comum de grandes varandas, um átrio luxuoso, sofás, espelhos, um imponente porteiro sentado a uma mesa rococó, que nos observa desconfiado , um elevador de hotel antigo francês. O apartamento do Coronel é uma mistura de estilos antigos, pesado, compacto, mas as janelas – essas janelas ! - oferecem uma vista panorâmica arrebatadora . Como será ali sentado , no verão, o Sol brilhando sobre o asfalto, observar a praia cheia, os biquínis coloridos pintando a paisagem, o mar de pequenos barcos batidos por aquelas ondas que escorregam na areia , a vista se perdendo até às ilhas dentro do horizonte , que lembram fantasias ?
O regresso ao hotel é ainda mais penoso, já noite , o ônibus transbordando, difícil atingir a porta de saída , ao final do Aterro, o casal segue para a Quinze de Novembro.
As Agências de emprego não eram realmente eficientes para mão de obra qualificada , poucas ofertas – numa delas, a da senhora de meia idade , simpática, tem uma carta de apresentação para uma Metalúrgica em Nova Iguaçu, município na região metropolitana do Estado do Rio . Na outra, apenas informação de uma Usina da Bahia, Salvador, precisam de engenheiro para a área comercial , esperam confirmação , contacto.
Resolvo ir a Nova Iguaçu, ônibus, sai da Praça Mauá . O nome me recorda Moçambique, aqui é uma mistura de sensações , de um lado inúmeras boates, inferninhos, do outro o maravilhoso Mosteiro de São Bento e a Igreja de Nossa Senhora de Monserrat , estilo barroco , construídos no Século XVII pelos monges da Ordem dos Beneditinos .
O ônibus vai pela Avenida Brasil para alcançar a Via Dutra , ligação do Rio para São Paulo , atravessando à saída a Baixada Fluminense , uma extensa bacia hidrográfica formada por vários rios .

« Os rios da baixada drenam para duas grandes bacias, a Baía de Guanabara e a Baía de Sepetiba. Estes rios são fortemente influenciados pelo relevo. Em geral nascem das serras e maciços e descem nas encostas abruptamente formando cachoeiras. Quando chegam à planície onde a declividade é pequena, encontram dificuldades de escoamento. Assim naturalmente formam várias curvas (meandros) até chegarem ao mar. Com o assoreamento dos rios causado pelo desmatamento das encostas e margens, formou-se, ao longo destes, áreas inundadas, gerando brejos e alagados . A população é diversamente heterogênea e composta por povos de diversas origens raciais e culturais. Todos os continentes estão aqui presentes, formando um mosaico riquíssimo de tendências culturais, manifestadas nas artes, na língua, nos comportamentos sociais, na política e na economia. A baixada é urbana na configuração e ocupação do espaço, porém, neste mesmo espaço convive com práticas agro-pastoris »

À medida que o ônibus sacolejava naquela estrada , o meu ânimo diminuía ! A paisagem era agressiva, feia, até suja, uma mistura de dormitórios com pequenas indústrias , comércio, motéis, postos de gasolina , bares !

« O grande fluxo de migrantes, principalmente de nordestinos, após a década de 50 em direção ao Rio de Janeiro, na busca de melhores condições de vida e oportunidade de trabalho promovida pela industrialização, acarretou na ocupação da periferia, já que o Rio de Janeiro não apresentou capacidade suficiente nem tão pouco planejamento para absorver esse contingente populacional, associado ao alto custo da moradia imposto pelo mercado imobiliário excluindo a população de baixa renda, restando a ela procurar as áreas periféricas localizadas mais próximas ao Rio de Janeiro, transformando as mesmas em cidades dormitórios.
É nesse cenário que a Baixada Fluminense se insere como área de expansão do Rio de Janeiro, apresentando a proliferação de loteamentos com baixo custo da moradia e carência de infra-estrutura na sua grande maioria »

A grande oferta de mão de obra teria levado óbviamente à instalação de indústrias , principalmente as usuárias de altos volume não qualificados – eu estaria indo visitar uma delas, pior, eu procurava emprego !

Pouco mais de uma hora de viagem, o ônibus me deixa numa praça central de Nova Iguaçu, um amontoado de casas de construção rudimentar dando lugar a uma confusão de comércio e de gentes , de cheiros e de cores , desagradável pela visão e pela aproximação . Me dirijo a um táxi, velho e mal cuidado , peço para ir ao endereço da minha carta de apresentação . Algumas ruas depois, entramos em área não asfaltada , mais algumas ruas, o táxi pára, eu olho para o galpão , não tenho dúvidas, peço para voltar ao ponto naquela praça de ruim comércio, vou voltar para o Rio .

O regresso ao Rio dava lugar a uma sensação de estranho relaxamento ! Depois do percurso por aquela Dutra, feia, desagradável , a entrada no Rio era linda ! Depois que se avistava a Igreja da Penha sobre uma pedra , alto de um morro , longa escadaria que os fiéis sacrificadamente subiam em suas preces, o ônibus parecia correr para aquele magnífico Aterro do Flamengo, compensação certa de todos os sacrifícios da viagem.

Àquela Agência da senhora de meia idade , não voltei mais !

Bom , eu ainda tinha aquele cartão para um agência de desenvolvimento industrial em Belo Horizonte , embora desanimado pela experiência de Nova Iguaçu achei que valeria a pena, era a capital de Minas Gerais desde o final do Século passado, sucedendo a Ouro Preto , o contacto me parecia promissor.

De ônibus a Belo Horizonte, 450 Km, se passa toda uma noite . Mal dormida , parando algumas vezes, sem pontos de interesse . Na chegada , o corpo está dolorido, o rosto cansado , a barba por fazer , tudo dá um aspecto pouco atraente para quem procura emprego. Saio da Rodoviária, procuro pequeno hotel na avenida em frente . A mau grado , me deixam usar um quarto, talvez estranhem a preocupação .

De táxi, até ao endereço que tenho de referência , centro da cidade . É muito cedo , fico num bar, bebo aquele café pouco gostoso, certamente feito em saco precisando trocar. A cidade começa a movimentar-se , as ruas são inclinadas, pouco interessantes, muitas galerias, mau aspecto, as pessoas não são atraentes, tudo me é desagradável , talvez eu esteja cansado.

Vou na tal Agência, já abriu . O atendimento é excelente, o contacto é um engenheiro novo, me diz que a Usiminas, siderúrgica estatal , precisa de engenheiros, fica em Ipatinga, Vale do Aço , a 220 Km de Belo Horizonte.
Me dá uma carta de apresentação, tem ônibus .

Para conhecer Belo Horizonte, peço a um taxista que dê uma volta pela cidade , o que ele ache que valha a pena vêr .

Volto, fico por um bar , almoço. Relembro entretanto os pontos daquela viagem turística, a Lagoa da Pampulha, que o motorista circulou entusiasmado, o Estádio do Mineirão que ele dizia ser dos maiores do Mundo , coberto, para 130.000 pessoas, a Praça da liberdade com o seu conjunto arquitetônico .

« A lagoa artificial foi construída na década de 1940, quando o prefeito era Juscelino Kubitscheck. Para compor o seu entorno Oscar Niemeyer projetou um conjunto arquitetônico que se tornou referência e influenciou toda a arquitetura moderna brasileira. Fazem parte do conjunto a Igreja de São Francisco de Assis, o Museu de Arte, a Casa do Baile e o Iate Tênis Clube. Os jardins de Burle Marx, a pintura de Portinari e as esculturas de Ceschiatti, Zamoiski e José Pedrosa completam e valorizam o projeto concebido para a lagoa. A orla da Pampulha concentra várias opções de lazer, como o ginásio do Mineirinho, o Jardim Zoológico, o Centro de Preparação Equestre da Lagoa e pistas para ciclismo e caminhada. É lá também que está o Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido
como "Mineirão".
Um dos melhores passeios para quem visita Belo Horizonte é o conjunto paisagístico e arquitetônico da Praça da Liberdade. Construída na época da fundação da capital, mistura vários estilos, que são o retrato vivo da evolução da cidade : neoclássico (final do séc. XIX), art-déco (década de 1940), moderno (décadas de 1950 e 1960) . É também o centro do poder executivo mineiro, aliás foi projetada para este fim. Concentra grande parte das Secretarias de Estado, além do Palácio da Liberdade, onde despacha o Governador »

Almoço , e sigo para a Rodoviária, primeiro ônibus para o Rio de Janeiro, terminava a minha viagem ao Brasil, volto a Lisboa, à Revolução dos Cravos.

Aquela carta de apresentação para a Usiminas ficava esquecida, sem resposta, aquele engenheiro da Agência que me desculpasse . Belo Horizonte não me tinha agradado, talvez o pesado da cidade, a cor , as gentes de presença que eu estranhara , o meu cansaço , a visão de que o Brasil tinha uma complexidade difícil de repartição da economia , naquela Baixada Fluminense, nas favelas que via no Rio, preenchendo a cidade e gritando que essa situação não podia permanecer, talvez o meu medo da situação que explodia em Angola , uma dor muito recente, ainda aberta, que me fazia temeroso, mais crítico. A comida , eu também não gostava , a oferta do salário , que eu media pela da Cosipa, não me atraía.

Certamente que o Rio, São Paulo , todo o Brasil , teriam oásis de riqueza ( e de magníficos restaurantes ! ) que seriam o contraponto da muita miséria , eu não esquecia a Vieira Souto, Ipanema, a Avenida Atlântica e Copacabana. Outras , muitas mais , teria que eu não tinha visto , não alcançaria, onde os privilegiados se escondiam do verdadeiro País . Eu não tinha observado tantas e tão gritantes diferenças em Portugal – onde os marxistas agora modificavam tudo – na África por onde passara, na Angola agora subvertida e que conhecera bem e que me servia de comparação .

Mas a paisagem da cidade do Rio de Janeiro era maravilhosa , a sua visão encantava e escondia as dificuldades das gentes . Marcava, deixava saudades , também a afabilidade das pessoas , a sua singeleza , até ingenuidade. Mas os maus tratos ao português, escrito e falado , eram terríveis !

Como Angola, o Brasil podia ser um magnífico País ! Mas eu estava cansado de sonhar !

Voltava a Portugal, eu pensava que uns dias longe daquela confusão de notícias pelos jornais, rádios, TV, e até através das conversas com os amigos, embora as tivesse tido por aquele Estadão, podiam ter-me feito melhorar a confiança nos destinos da Revolução , ao menos aumentado a capacidade de resistir às constantes pressões dos trabalhadores na Siderúrgica , pelos comunicados quase diários da COTRA e pela dificuldade crescente das relações dentro do ambiente de trabalho , na Aciaria .

Àqueles colegas que tinham depositado a confiança na minha viagem, foi difícil explicar porque não gostara do Brasil, a razão do medo de também lá acontecerem transformações políticas, que no caso seriam muito mais graves do que em Portugal , também porque não gostara dos salários, do dia à dia das ruas, da alimentação comum nos restaurantes comuns. Principalmente , o CF e o irmão daquele meu companheiro no Rio não se convenceram !

Quanto à minha tranquilidade, essa rapidamente se esvaía !

O posicionamento em documento daqueles nove militares , que eu lera no Estadão à minha chegada ao Rio, estava recebendo o apoio da maioria dos Oficiais das Forças Armadas e até (espantoso!) de Otelo Saraiva de Carvalho , aquele que tinha estado em Cuba, esperança de Fidel de Castro para subverter Portugal ( e a Europa ! ) ! Esse documento condenava o gonçalvismo e propunha o estabelecimento de uma política socialista.
O MFA tomava a decisão inesperada de demitir os oficiais gonçalvistas do Conselho da Revolução, incluindo o Ministro Vasco Gonçalves , dando posse a um elenco governamental de tendência socialista , um novo Primeiro Ministro, Pinheiro Azevedo.

Tanto a população em geral como o Exército estavam fortemente divididos entre dois ideais : o de Esquerda e o da moderação social , e pior, essa divisão se verificava entre o Sul , abaixo do Tejo , e o Norte, acima daquele Rio . Como resultado, « o povo unido jamais será vencido» estava desunido, intolerante e agressivo, à beira de uma guerra civil !
As estações de rádio, nas mãos da Esquerda, difundiam continuamente mensagens clamando por uma revolução popular. Portugal era varrido por uma onda de violências , assalto à Embaixada de Espanha que é saqueada e incendiada, um cerco ao Parlamento que durou dois dias, manifestações de soldados .

Na Siderúrgica , ainda havia como piorar ! Não para todos , aquele meu primeiro Chefe na Aciaria, o DT, nos dizia em reunião que era « hora de pegar o trem » ! Ele tinha começado a participar de comícios de trabalhadores , claro , mais aguerridamente à esquerda do que eles , inclusive fazia discursos nas fazendas invadidas do Alentejo, acompanhando movimentos que clamavam pela total coletivização do País ! Mas não só ele, na Aciaria bastantes funcionários me diziam que nunca tinham estado melhor , aumentavam o patrimônio, eram filiados ao PCP e daí tiravam proveito sem nenhuma relutância.

Eu lutava contra o aumento do custo de vida ! O Ford Cortina era um bom carro, mas o seu consumo de gasolina era altíssimo. Decidi trocar por carro mais econômico, um Datsun 1000 , branco, 650 kg, velocidade máxima de 135 Km / hora ! A minha cabeça quase batia no teto do carrinho, ele tinha sido projetado para japoneses, mas o consumo era baixo, e isso era o que eu precisava .

O CF deixa a Siderúrgica , vai para o Brasil ! Terá aceite um convite da ThyssenKrupp , alemã , para trabalhar numa siderúrgica próxima ao Rio de Janeiro, a Cosigua, onde aquele grupo alemão tem sociedade através da instalação de uma unidade de produção de ferro – esponja . Perco um apoio, que estava muito desgastado aqui no Seixal pela impossível compatibilização dos interesses dos trabalhadores com os da empresa , que se traduzia em atritos diários, crescente inimizade .

Para distração de tantas preocupações , eu me ocupo com a montagem de um grande quadro feito com a colagem de postais ilustrados de Paris, comprados ao longo dos meus passeios despreocupados daquele agosto 1971, e que agora são um bálsamo de lembranças a dizer-me que a Vida está lá fora, esperando , longe das investidas da esquerda revolucionária que eu suporto diariamente na Aciaria, procurando fazer com que a queda dos índices operacionais não seja por demais desastrosa e que os equipamentos não sofram maus tratos irreparáveis.
Mais ou menos esperado , o DT assume a Direção Fabril, substituindo o CF. Mas agora não é mais aquele fascista que me afastava das atividades na Aciaria para não ter opositores , é um compenetrado amigo dos marxistas da COTRA !

Não esperada, segundo acidente mortal em menos de um ano, a queda de um mecânico daquela mesma empresa de terceirização , do alto da instalação acima da boca do conversor, dez metros do solo, fazendo soldagem de uma parte dos componentes do mesmo Despoeiramento, também mais uma vez na hora do almoço, demonstrando falta de supervisão , de treinamento e de cuidados. Nas nossas equipas normais da Aciaria, nós conseguíamos evitar desastres graves, mas não o aumento do estresse entre todos.

A independência de Moçambique já tinha acontecido, a 25 de junho, agora em novembro tínhamos a de Angola, depois a de Timor . Infelizmente todos os processos tinham sido desastrados , mais marcados pelos interesses da URSS e de Cuba, também da China , do que pelos das populações , africanas e européias . Diariamente chegavam a Lisboa milhares de portugueses e de luso descendentes, desesperados, sem nada mais do que a roupa do corpo, às vezes com malas cheias de dinheiro africano que agora ninguém aceitava, simples papel, que alguns abriam pelas calçadas do Rossio chorando a sua impotência . Os caixotes no cais marítimo agora se estendiam por centenas de metros ao ar livre, a maioria quebrados, roubados , eram o testemunho e a demonstração do que tinha acontecido aos donos, aqueles que haviam acreditado até á ultima esperança no Governo português , um Governo que não existia para o presente e que projetava para o futuro dos portugueses a submissão aos interesses estranhos de países estranhos.

« Na tarde do dia 10 de Novembro de 1975, a bandeira portuguesa foi pela última vez arreada no Palácio do Governo e na Fortaleza, dobrada e redobrada. O Alto - Comissário, Almirante Leonel Cardoso, ao qual coube a ingrata tarefa, proclamara horas antes a independência de Angola.Quatrocentos e noventa e dois anos depois das naus portuguesas ali terem lançado ferros, o último representante da soberania portuguesa abandonava a jóia do ex-Império, e partia, "sem cerimonial, mas de cara levantada", rumo à base naval da Ilha de Luanda.
Ao largo, na Baía já abandonada por barcos carregados até à borda de multidões e contentores, a fragata "Roberto Ivens" escoltava o "Uíge" e o "Niassa", com as máquinas prontas para, pela última vez, zarparem para Lisboa.
Uma semana antes, a cidade branca acabara de esvaziar-se. A ponte aérea, organizada com o apoio de países estrangeiros, retirara de Angola, no meio de indescritíveis cenas de pânico e confusão, quase meio milhão de portugueses.
As estátuas dos imortais portugueses jaziam apeadas, no lugar havia só os pedestais, já pintados com o vermelho - negro do MPLA.
Para trás ficara a companhia de pára-quedistas, o Almirante e uma meia-dúzia de funcionários que agora, no meio de grande e inútil aparato militar, se dirigiam para o porto.
Polícias angolanos, de farda azul, ganharam de imediato as posições desocupadas. Às janelas do Palácio, alguns criados negros assistiram à saída de blindados e "Berliets".
Na baixa luandense, nem isso. Cortadas por fuzileiros, as ruas estavam desertas.
No imponente Salão Nobre do Palácio, o Alto -Comissário fizera de manhã, perante um batalhão de jornalistas, um breve deve e haver daqueles meses de confusão.
"E assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas, com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar. Deixa um país que está na vanguarda dos estados africanos, deixa um país de que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se".
E arrematou responsabilidades: "A única recriminação que poderá aceitar é a de ter dado provas de extrema ingenuidade política quando concordou com certas cláusulas do acordo do Alvor".
Para o almirante ingenuidade, para Neto, que à custa de sangue e suor conseguiria proclamar-- se no dia seguinte Presidente em Luanda, outra coisa. "Quanto a Portugal, o desrespeito dos acordos do Alvor é manifesto, entre outros, no fato de sempre ter silenciado a invasão de que o nosso país é vítima por parte de exércitos regulares e de forças reacionárias (...) que teimou em considerar como movimentos de libertação, tentando empurrar o MPLA para soluções que significariam uma alta traição ao povo angolano".
Leonel Cardoso não pode responder, não estava presente no palanque de Neto, cumprira a promessa feita em confidência um mês antes a Cáceres Monteiro, enviado de "O Jornal": "Se um movimento não quiser vir, ainda aceito que se faça a cerimónia com os outros dois. Só com um, eu não tomo parte nas cerimónias. A um, eu não entrego o poder. Não vou às cerimónias de posse desse movimento".
No Campo da Revolução, no Sambizanga, o povo, na véspera, condenara ao enforcamento os espantalhos dos presidentes da FNLA, Holden Roberto, e da UNITA, Jonas Savimbi. Mas nessa noite, as palavras do líder do MPLA, agora Presidente de Angola, perdiam-se no barulho dos disparos de soldados festejando, e, mais ao longe, de um fragor de explosões.
Ao largo de Cabo Ledo, um submarino soviético estava para o que desse e viesse, pronto para dar fuga a Neto.
A FNLA estava a 25 quilómetros, no Caxito e Quifangondo, e Holden Roberto, que celebrava a independência em Carmona, encerrara o discurso às tropas com um "até logo, em Luanda". Vinte e quatro horas depois, à meia-noite do dia 11, não em Luanda, mas em Ambriz, proclamava a República Popular e Democrática de Angola.
No Sul, o MPLA acabara de perder Sá da Bandeira, Moçâmedes, Porto Alexandre, Benguela e o Lobito, e a UNITA celebrava naquela que viria a ser a sua capital, Nova Lisboa .
O ministro da Cooperação, Vítor Crespo, cancelara na madrugada de dia 10 a partida para Luanda. Um longo e polêmico Conselho de Ministros, terminado a altas horas dessa noite, para que tinham sido convocados, a título excepcional, os secretários-gerais dos três partidos com assento no Governo - PS, PPD e PCP -, acabaria por reafirmar apenas o espírito do acordo do Alvor, e a não ingerência de Portugal nos assuntos internos do povo angolano, defendida pelo PS e o PPD, contra a posição do PCP, segundo o qual o MPLA era o único representante legítimo do povo angolano.
Convocado o Conselho da Revolução pelo Presidente da República, General Costa Gomes, as divergências mantiveram-se.
Otelo faltou, zangado com os moderados, e Rosa Coutinho, ex-Alto Comissário em Angola, num telegrama de felicitações a Neto, pedia desculpas por só mandar o coração a Luanda, que o resto era preciso aqui »

O Brasil seria o primeiro país a reconhecer Angola, no próprio 11 de Novembro .
O mês de Novembro estava sendo fértil em acontecimentos decisivos ! Tínhamos tido a independência de Angola, a 11 ; o cerco da Assembléia Constituinte pelos trabalhadores da construção civil, a 12 ; o cerco do próprio Governo Provisório, por deficientes das Forças Armadas e, a 24, uma manifestação de agricultores que cortou , em Rio Maior, os acessos a Lisboa.

A 25 de Novembro os pára-quedistas insubordinam-se em Tancos e na RTP aparece um Oficial da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas a ler mais um comunicado de apoio ao « poder popular ». Mas a tentativa de golpe protagonizada por unidades militares afetas ao PCP é rapidamente travada pelas tropas coordenadas por Ramalho Eanes e outros militares moderados – essa derrota dos militares revoltosos encerrava um ciclo da vida política portuguesa . O 25 de Novembro abria, decididamente, um caminho favorável à estabilidade e à consolidação de um regime político de democracia parlamentar , terminava o Verão Quente !

« Pára-quedistas de Tancos pedem a demissão do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea. O Conselho da Revolução responde com a dissolução da Escola de Pára- Quedistas (entretanto, os 123 oficiais que lá estavam já a tinham abandonado). Então dá-se o esperado golpe militar das esquerdas a 25/11/1975, quando os pára-quedistas saem de Tancos, e rapidamente ocupam as bases aéreas de Monte Real e do Montijo e o Quartel- General da Força Aérea, em Monsanto, recebendo o apoio da Polícia Militar de Belém e do Regimento de Artilharia de Lisboa .
Elementos militares ligados ao Grupo dos Nove, comandados por Ramalho Eanes reagem e subjugam os revoltosos, entre os quais tinham, entretanto, surgido dissidentes »
« Em Helsínquia, na Finlândia, em 1 de Agosto de 1975, terminava a conferência para a segurança e cooperação na Europa. É em Helsínquia que o projeto de poder de Álvaro Cunhal se esfuma, com o acordo tácito entre a URSS e os Estados Unidos, sobre Portugal e as suas possessões ultramarinas. A independência de Moçambique havia sido proclamada havia pouco mais de um mês, mas a de Angola ainda não tinha ocorrido . Brejniev e Kissinger acordam que, Angola será para a URSS, ou o bloco soviético, mas que Portugal, continuará como país da NATO. Brejnev e Kissinger, fizeram com Cunhal, o mesmo que Krutchev e Kennedy tinham feito com Fidel Castro. Fizeram um acordo nas suas costas. Cunhal foi abandonado ao seu destino. Entre 21 e 30 de Julho desse mesmo ano, e enquanto soviéticos e americanos decidiam o futuro de Portugal, de Angola e das restantes ex províncias ultramarinas, Otelo Saraiva de Carvalho está em Cuba. Fidel Castro dá-lhe apoio, mas ao mesmo tempo pede a Portugal compreensão para a necessidade de defender Angola do imperialismo e do racismo Sul-Africano e também da FNLA de Holden Roberto, que tinha o apoio da CIA e de alguns portugueses. Até então nada está decidido e Castro, Otelo ou Cunhal, são apenas simples peões no jogo. Otelo ainda viverá no sonho revolucionário, mas Cunhal, cedo perde as ilusões logo que a URSS informou o Partido Comunista de que não poderia esperar ajuda soviética, para o que quer que fosse. Quando chega o mês de Novembro, Portugal parece estar à beira de uma guerra civil. O Partido Comunista tinha verificado nas urnas, nas eleições de Abril de 1975 que contava com pouco mais de 12% do eleitorado, e que apenas no Baixo Alentejo e na região metropolitana de Lisboa contava com alguma implantação. Mas Cunhal sabe que isso não chega. Além disso, há a garantia de apoio por parte dos países do ocidente, ao campo que se lhe opõe. A Grã Bretanha, avançou desde logo com o apoio às forças anti.comunistas, se houvesse guerra civil, preparando o auxilio em munições e combustível. A Força Aérea transporta todos os seus aviões de combate operacionais para o norte do país, para evitar que caiam nas mãos dos apoiantes de um eventual golpe revolucionário. O Partido Comunista no entanto não tem ilusões. A decisão da União Soviética já foi tomada e assinada em Agosto. Cunhal e o PC estão sozinhos. Sabem que se começarem um levantamento serão esmagados, e que mesmo que consigam tomar Lisboa e o sul do país, cedo ou tarde a evidência dos números acabará por se impor. Finalmente, quando chegam os dias de 24, 25 e 26 de Novembro, Álvaro Cunhal manda dizer a algumas das forças que estariam do seu lado, os fuzileiros e forças da marinha de guerra, no Alfeite, para “Aguardar, porque não é a hora”. E assim se fez. Aguardou-se, e o 25 de Novembro de 1975 acabou conforme tinha sido determinado em Helsínquia por soviéticos e norte-americanos »

« Para mim, Pinheiro de Azevedo , o 25 de Novembro começou na madrugada desse dia quando, informado da sublevação dos paraquedistas, telefonei para Costa Gomes e Melo Antunes. Combinei ir imediatamente para o Palácio de Belém, onde se realizou uma reunião plenário do Conselho da Revolução ; o último a chegar foi Otelo.
Cerca das 9 da manhã fez-se uma análise da situação, que demonstrou o seguinte: a Norte de Coimbra os paraquedistas não tinham qualquer hipótese de êxito; mas a Sul tinham boas possibilidades, se fossem auxiliados pela população. A situação estava muito fluida em Lisboa e no Montijo, mas segura no Norte do país. Pires Veloso, comandante da Região Militar, não tinha problemas militares no Norte e podia contar com o apoio da população civil. Mas haveria realmente necessidade desse apoio civil? Francamente, não. Pretendeu-se apenas contrabalançar o efeito psicológico dos grandes movimentos de massas que se preparavam no Sul, para que o golpe vencesse. Sempre a mesma ideia: não se devem empreender operações militares sem base e cobertura social.
É curioso que essa foi uma decisão de Costa Gomes. Disse: "É preciso provar que os senhores" (o Grupo dos Nove) "estão com apoio social". Na realidade, até às 4 da tarde, Costa Gomes não estava nem com uns nem com outros. Ele era o chefe, equidistante, independente, árbitro... Até às 4 da tarde não tomou qualquer opção, dizendo que queria evitar confrontações entre militares. E, com esta atitude, pretendia dar tempo a que as forças envolvidas aparecessem à superfície. Não era seu costume optar antes de saber de que lado estava a força... Quanto a mim, a posição de Costa Gomes obedeceu sempre a princípios táticos bem definidos e que aplicava conscientemente e sempre com eficácia.
A partir das 4 horas da tarde, Costa Gomes resolveu pôr-se ao lado do "Grupo dos Nove" contra os amotinados, porque o Partido Comunista retirou o apoio à sublevação. Essa informação do PC foi-lhe dada telefonicamente na minha presença. Não sei se do outro lado do fio estava Álvaro Cunhal. Mas duvido que Costa Gomes aceitasse a informação telefónica por um intermediário. Então o general Costa Gomes ditou a sentença dizendo: "Os paraquedistas não têm apoio político e estão "arrumados" militarmente".
A par da sublevação militar, e em estreita colaboração com ela, as organizações da extrema-esquerda - inicialmente com o apoio do PC - esperavam conquistar ou impor o poder popular em Lisboa e nos arredores da cidade.
Decidida a ação militar de força contra o golpe, um destacamento do Regimento de Comandos atacou as tropas amotinadas que haviam tomado posições em Monsanto e forçaram-nas a render-se. Eram 19.15 horas. Às 22 horas, a Base de Monte Real foi desocupada. Cerca de 1 hora antes, a RDP e a RTP passaram subitamente para os estúdios do Porto, o que manifestamente significou que terminara a ocupação pelos golpistas das duas emissoras - de rádio e de televisão. O antigo Rádio Clube foi também neutralizado. Às 0 horas e 55 minutos - portanto já a 26 de Novembro - as Bases da Ota e de Tancos entram na normalidade. De manhã, tropas do Regimento de Comandos da Amadora, sob a chefia de Jaime Neves, atacaram o Regimento da Polícia Militar, na Ajuda. Como foi do domínio público aí houve luta, que vitimou dois comandos e um PM, mortos em ação. Luta breve, a que o arrojo e decisão de Jaime Neves pôs rápido fim, arrombando ele próprio com um tanque o portão do regimento. Durante a noite, finalmente, a Base do Montijo regressou também à normalidade .
O COPCON atuou prestando todo o auxílio que pôde aos sublevados, enquanto o general Otelo, insistentemente chamado à Presidência da República, onde estava reunido o Conselho da Revolução, aí acabou por comparecer a meio da tarde. Com Otelo em Belém e a notícia do ataque a Monsanto, o coronel Varela Gomes tentou assumir o comando do COPCON, a pretexto de desencadear um ataque a Belém para libertar Otelo. Depois tentou organizar um contra-ataque a Monsanto, chegando a telefonar para o major Campos Andrade, comandante do Regimento da Polícia Militar, e para o major Dinis de Almeida, no Ralis, o qual também tentou aliciar uma companhia de fuzileiros do Vale de Zebro. Perto da meia-noite, tanto Varela Gomes como outros oficiais que ali se encontravam com ele (como o major Costa Martins), saíram do forte do Alto Duque. Otelo somente de madrugada do dia 26 regressou da Presidência da República ao COPCON. Afirmou que em Belém lhe tinham oferecido vários cargos, que recusara porém. E pouco depois retirou-se. Não terá tardado muito o telefonema que para lá foi feito, de Belém, comunicando que o COPCON estava extinto. Os oficiais deviam apresentar-se imediatamente nos Estados-Maiores das respectivas Armas, mas não o fizeram. Durante todo o dia 26 e noite seguinte, estiveram ocupados na destruição de documentos. Só na manhã de 27, quando os oficiais do COPCON procuravam convencer o então general Otelo a ir assumir o comando dos paraquedistas de Tancos, uma força de Comandos investiu contra o COPCON e acabou com essa reunião, detendo os oficiais presentes.
Dominado o golpe insurrecional, pretendi que o Presidente da República decretasse o estado de sítio. Achava essa providência fundamental, por entender que era indispensável a exploração da vitória militar, de forma a conseguir-se a vitória política e social - que ainda estava longe. E que ficava cada vez mais longínqua à medida que os paraquedistas se iam rendendo nas várias bases aéreas. A razão estava comigo: uma vez declarado o estado de sítio, os marginais estrangeiros fugiram de Lisboa e a situação melhorou francamente. Mas não foi, nem de longe, suficiente.
O PC estava a ser ultrapassado à sua esquerda pelos extremistas. Tinha portanto todo o interesse em que a extrema-esquerda fosse destruída. E tinha evidentemente tanto ou mais interesse em que fosse dominada, ou ao menos contida, a movimentação anti-esquerdista, anti-comunista, no Norte do País. Quantas das suas sedes locais já haviam sido destruídas no Norte? Decerto o PC sabia que se preparava um levantamento militar e popular anti-marxista em todo o país previsto para 30 de Novembro. Neste ponto o interesse do PC coincidia com o Grupo dos Nove. Na realidade executaram uma manobra conjunta com vista a um contragolpe controlado. Isto é, um contragolpe que parasse onde convinha a todos... o PC incentivou a extrema-esquerda, militar e civil, a tentar o golpe, a lançar-se na imposição do Poder Popular, para que caíssem na armadilha, como era conveniente. Então, estando a insurreição já em curso, retira-lhe o apoio e alinha com os contragolpistas, passa-se para o campo dos vencedores... Torna-se vitorioso também, "matando dois coelhos de uma mesma cajadada". Foi uma manobra brilhante, que talvez tenha corrigido a tempo o erro cometido anteriormente...
O 25 de Novembro traduziu-se afinal numa luta entre marxistas em que ganhou a facção moderada. Os "conquistadores" das conquistas de Abril, histéricos, irresponsáveis e exaltados, já não interessavam porque estavam a demonstrar uma forte tendência para serem massacrados pela população. Era urgente substituí-los por marxistas frios e calmos, capazes de "administrar" as conquistas de Abril, ou seja administrar a estatização, coletivização e marxização da sociedade portuguesa. Por isso eu penso que o 1.° de Maio de 1974 marca o início da organização das forças para o assalto; o 11 de Março deu o sinal e criou as condições para a execução do assalto; realizadas as conquistas foi necessário o 25 de Novembro para neutralizar os "soldados" ébrios da vitória, tão ébrios que punham gratuitamente em risco as próprias conquistas. Os patrões eliminaram os jagunços para que estes, na sua irresponsabilidade, não contassem os segredos proibidos...
Não nos esqueçamos que a "conquista de Abril" mais importante foi a descolonização que entregou ao imperialismo soviético Angola e Moçambique, áreas fundamentais para o domínio da África Austral. Era urgente "administrar" essa conquista através de uma política externa pró-soviética e impedir que em Lisboa houvesse um governo democrático, independente e marcadamente pró-ocidental.
Esta foi a função do verdadeiro 25 de Novembro, sem a máscara hipócrita do regresso à pureza do 25 de Abril e a uma sociedade livre, de fundamento cristão, democrática e ocidental.
O mistério do 25 de Novembro é, afinal, simples. Para muita gente a ilusão continuou por largo tempo. A maioria julgou que o 25 de Novembro fora a vitória do MFA não marxista, mas na realidade foi uma confrontação entre marxistas em que militares como Jaime Neves foram simplesmente utilizados. Os radicais de um lado e os moderados de outro. Estes venceram. E venceram para impor com a colaboração do PC, uma Constituição marxista a Portugal »

A situação do País parecia melhorar , Pinheiro de Azevedo continuava como Primeiro – Ministro , a Assembléia Constituinte ia trabalhar para elaborar a Constituição que seria submetida à aprovação do Conselho da República em fevereiro , aquele Grupo dos Nove aparecia como controlador da situação militar e política . Eu deixava de comprar vários jornais, de praticar o exercício de adivinhação , a Tininha mais calma.
Mas o Natal não seria de grandes esperanças, a inflação do ano fechava em cerca de 21% , muito sério problema para o equilíbrio doméstico ( com 27,7 em 1974 e agora 21 % , o meu salário encolhia ! ) , as despesas públicas aumentavam assustadoramente em virtude das nacionalizações descontroladas, as reservas de divisas e de ouro evaporavam –se ( Salazar havia deixado quase 870 toneladas de ouro ! ) , a dívida externa chegava em torno de 18% do PIB , os ordenados e salários que em 1970 representavam 49% do PIB eram agora de 59% , tínhamos 1.000.000 de hectares de terras ocupados pelos trabalhadores . Na Siderúrgica os índices acompanhavam os das outras empresas nacionalizadas

« Para a empresa, a situação traduziu-se, entre 1973 e 1975, na redução das vendas de produtos longos em 37,4 % e em 62,6 % nos produtos planos . O faturamento caiu dos 3,3 milhões de contos em 1973 para os 2,9 . Na sequência das exigências dos trabalhadores em verem reduzidos os seus períodos de trabalho, o número de horas extraordinárias e o recurso a trabalhadores eventuais no exterior, aumentou o número de trabalhadores efetivos. A perturbação provocada pelo momento revolucionário teve outras componentes. O aumento dos encargos com o trabalho andou a par com o aumento do absenteísmo.
A situação financeira da SN degradou-se rapidamente : o ano de 1975 fechou com um déficit de 806 milhões de contos , depois de no ano anterior ter registrado um prejuízo de 119 » .

Os números podiam até , ou não, traduzir grandes dificuldades , outros países em momentos conturbados de transição política ou de pós guerra tinham apresentado índices catastróficos, mas havia uma diferença entre a situação de agora em Portugal e a da maioria daqueles : a produtividade da mão de obra que sempre fora baixa, o interesse ao trabalho demonstrado pelo trabalhador português que nunca fora muito, agora eram assustadoramente fracos, e não tinham para isso a justificativa das baixas retribuições , do autoritarismo dos patrões !

E sobrepondo todos esses problemas , tínhamos pelo menos 500.000 portugueses vindos das colônias , a quem o Governo tinha de providenciar alojamento e alimentação , principalmente o retorno da dignidade

« Eram seis da manhã, quando o grupo de funcionários desesperados conseguiu, finalmente, localizar a Delegação da Cruz Vermelha de Algés. Um edifício desbotado pelo sol e com plantas floridas pendentes de um telhado apodrecido pelo tempo. A fila de funcionários qual serpente gigante do mato africano ia terminar do outro lado da viela de pedras pretas e polidas, cujos passeios estavam tomados de ervas daninhas e viçosas e abundante lixo, coisa muito vulgar na Lisboa pós-revolucionária do 25 de Abril . Reinava um silêncio impressionante, sepulcral mesmo, naquela manhã morna em que centenas de Malaquias aguardavam uma esmola daquela Instituição de Caridade (um adiantamento do seu vencimento ) para mitigarem a fome a eles e às famílias. Viam-se funcionários humilhados e envergonhados, pois, em Angola, Cabo Verde, S. Tomé, Guiné, Moçambique ou Timor sempre viveram com dignidade , de cabeça levantada, coisa que a desastrosa descolonização exemplar lhes roubara. Na fila havia um ex-administrador de concelho de Timor, que, por ter três filhos menores para sustentar, não encontrou outra saída que integrar-se na longa fila da Cruz Vermelha, nesse ano de má memória de 1975. No local, os únicos seres que olhavam para nós, sem rancor, eram os pombos arrulhando do alto dos podres telhados das velhas e decadentes casas do alto de Algés. Havia na fila funcionários de várias categorias, alguns escondendo as faces com jornais já lidos, para não serem reconhecidos pelos colegas, naquela triste serpente que mais parecia uma entrada para campo de concentração nazista .
Eram seres com as suas vidas desfeitas pela tal descolonização exemplar. Um deles tinha sido metido, na ilha do Sal, num avião, por militares revolucionários portugueses e abandonado, horas depois, no aeroporto da Portela de Sacavém, com apenas vinte escudos nos bolsos e sem bagagem, pois não as tinha trazido, tal a pressa havida em despachá-lo para Portugal »

Felizmente , eu tinha podido escapar dessa situação, me sentia privilegiado, aquela mão que nos acompanha !, ou não ! , disso me havia poupado, a tempo de refazer a minha vida sem grandes perdas ( a menos do dinheiro trocado por metade do valor, mas ainda a tempo porque poucos meses depois nem trocado era ! ) , sem que os meus Filhos se apercebessem do infortúnio de tantos milhares. Eles continuavam estudando no Colégio próximo de casa , o João António já no 3º do Liceu , a Paula tinha entrado para o 1º , a Olga na 4ª Classe e o Pedro na 2 ª.

Na Siderúrgica as condições de trabalho eram penosas, a roupa suja, o lenço marron de limpar o rosto , também a poeira aspirada ! Fora o cansaço de final de dia, chegando extenuado ao banco do ônibus, esquecendo os problemas de mais um dia de relacionamento com os trabalhadores , para dormir durante a viagem .

Com a garganta dorida, impressão de arranhão que não passava , resolvi consultar um médico, clínica geral, à chegada à Setúbal. Pouco olhou a minha garganta, desabridamente me diz « isso é grave, muito grave, não é para mim , o senhor tem de consultar um especialista já » ! Eram oito da noite, como fazer ? A noite foi de desespero, me imaginava com pouco tempo de vida, a Tininha , os Filhos tão pequenos ! Não dormi, a Tininha também não . Cigarro nem ver ! Manhã cedo, procuramos especialista que me atenda , tem um em Lisboa , vamos correndo .
Casa velha, ambiente da sala surrado, não tem mais ninguém, esperamos . O médico aparece, em cadeira de rodas ! Achei que tudo marcava a minha infelicidade, eu também temia ter problemas nas pernas, pelo cansaço em demasia !
A sala de atendimento era velha, quase fúnebre , escura. O médico examina, pega um estojo tão velho como a sala , retira um vibrador , parece uma máquina de barbear , aplica na parte externa da garganta , passa várias vezes . O que o senhor tem é poeira acumulada na garganta , ele me diz ! Bendito médico, toneladas de preocupações e de medos saem de cima de mim, pareço passarinho voando para o carro, fumando o primeiro cigarro da minha Vida !

Com o problema dos meus dentes não teria tanta sorte ! Daquele desastre em Luanda eu tinha quebrado dois dentes incisivos, superiores direitos, ficaram as raízes, feio. Resolvi ir consultar o dentista, serviço de saúde publica, mesma policlínica em que quando criança meu Pai me tinha levado algumas vezes. O dentista faz radiografia, observa, me diz que não pode arrancar os restos dos dois dentes , é perigoso , as raízes não estão soldadas . Bem no fundo é um alívio para mim , tenho medo de dentista, melhor, vai ficar assim.
Para saber notícias da EKA, vou um dia ainda Inverno em Lisboa visitar o Sr. Quintas, no seu escritório. Logo no regresso de Angola, eu já estava trabalhando no Seixal, a Tininha tinha estado lá para falar com Monsieur S. – ia reclamar de vencimentos meus que tinham ficado atrasados, a EKA me devia algum dinheiro. A recepção pelo Monsieur S. foi péssima, nada de pagamento , a Tininha ficou arrasada com a frieza ! Agora, o Sr. Quintas me recebia muito bem, que tinha reconhecido a minha dedicação à empresa , ele julgava ao início que eu defendia os interesses dos holandeses , em prejuízo dos interesses dele, mas que reconhecera estar enganado . A EKA continuava a trabalhar, mas todo o pessoal técnico tinha saído, só estavam africanos , alguns vendedores ; os problemas tinham passado, agora com a independência o regresso à normalidade seria rápido, o novo Governo estava querendo o retorno de todos os europeus. Me convida para eu voltar, fico surpreso , não digo que não , dependerá das condições. Quer que eu vá a Bruxelas , falar com Monsieur S.
O sonho ainda existia , eu não tinha conseguido me desligar dele por inteiro. As situações quando observadas de longe parecem bem menos graves ! Fui a Bruxelas, Monsieur S. me recebe normalmente , me faz uma proposta magnífica ! Ele vai passar em Lisboa, dentro de dias, espera uma resposta .
Venho para o aeroporto, aguardo no bar a hora do vôo. Fico pensando , a proposta é realmente muito boa , eu teria todas as despesas pagas em Angola, um salário em Lisboa, outro em Bruxelas ! Faço contas, ficaria independente em 7 anos de contrato ! Para quem acabava de fazer 37, seria bom, muito bom.
Falo no Seixal com colegas meus, tem um que quer ir comigo ! Os sonhos podem ser perigosos , a minha situação econômica começava a ser muito ruim , converso com a Tininha, estamos indecisos , as dificuldades anestesiam o bom senso !
Monsieur S. me recebe em hotel de Lisboa, na Avenida da Liberdade, tarde de inverno fria. Digo que quero levar uma equipa minha , de portugueses, posso treiná-los . Monsieur S. é taxativo – o Sr. vai com uma equipa de holandeses !
Não discuti, o sonho se evaporou ali, mão que nos acompanha !, ou não ! , eu tinha tido bom senso. Desci a Avenida da Liberdade, uma chuva fina me acompanhava, sem pena, sem mais saudades daquela Baía, tem os meus trabalhadores marxistas do Seixal para a substituírem , quem sabe, novas chances se me deparem.

Tem um Congresso de Siderurgia em Birmingham, ao norte de Londres, 2ª maior cidade inglesa. Sou indicado para ir , com outro colega da área de Metalurgia. O evento é de poucos dias, no inverno aquela cidade não nos deixa sair do hotel, regressamos a Londres , uma noite de parada . Era véspera do jogo final para a Home Championship, Inglaterra – Escócia , futebol , torneio entre os quatro países do Reino Unido disputado desde 1884. Saio à noite, relembrar Piccadilly Circus, feérico , um fantático mundo noturno de bares, teatros, boates , gente que transborda deles para a rua. Mas essa noite está muito perigosa , tem torcedores escoceses por todo o lado , bebendo na rua , embriagados, que cantam e se intrometem com as inglesas que passam , começa a chegar polícia, educada mas ameaçadora, melhor voltar para o hotel até porque o metrô avisava que ia fechar mais cedo em virtude de possíveis problemas nas ruas.
O RT me telefona ! Está em Lisboa, de Angola passou para o Brasil, cheio de estórias para contar. Ele me procura no Seixal , hora de almoço. Ficou em Luanda até à independência , nem estava mal, foi morar naquele prédio da Mutamba para onde eu teria ido se não tivesse saído, com os contatos dele as dificuldades de alimentação não tinham sido ruins, pelo menos sempre tivera whisky ! Mas o problema tinha estado nesses contatos, ele estava morando com a irmã de um líder do MPLA, africana, elegante ele dizia, até o tinham convidado para fazer parte do novo Governo ! Aí , ele tinha achado melhor sair de Angola, estava por demais conhecido ! Assistiu ao descalabro da saída dos europeus nas últimas semanas , viu casos de horror e desespero , tentou ajudar como poude . A EKA tinha parado , depois voltara a produzir, estava sendo gerida no Dondo por um vendedor ( que eu conhecia ) , do contato com o LF que me substituíra não tinha boas recordações, ele tinha ficado envaidecido com o novo cargo, arrogante, as relações entre o pessoal no Dondo tinham – se deteriorado rapidamente após a minha saída. De Luanda tinha escapado para o Brasil, conhecera artistas, Maria Betânia e o irmão Caetano, uma filha de General , resolvera voltar a Portugal incomodado pela possível reação desse General ! Da sua relação comigo, ele afirmava não mais esquecer, queria que voltássemos a trabalhar juntos ; ele iria trabalhar com uma empresa estrangeira processadora de areias especiais , na região de Rio Maior, a 80 Km de Lisboa . Ficaríamos em contato.

A situação política do País tinha – se estabilizado , pelo menos parcialmente . Alpoim Calvão, um Oficial da Marinha que se tornara lendário pela ousadia das suas ações no teatro da guerra colonial, tinha fundado, a seguir ao 11 de Março, o MDLP( Movimento Democrático para a Libertação de Portugal), que tinha como Presidente o General Spínola.

Na origem deste movimento aglutinador das forças da direita e da extrema-direita estaria o PS, porque o MDLP resultou de um pedido de ajuda do PS aos spinolistas, a seguir ao 28 de Setembro, para que se criasse, na área militar, uma força que se opusesse ao PCP.

Depois do 25 de Novembro, o ódio de Alpoim Calvão ao PCP não desaparecera , embora oficialmente o MDLP tivesse sido extinto - continuavam os atentados , as ações terroristas ! Assassinato de um padre, bomba na Embaixada de Cuba, explosão de um carro junto à sede do PCP , muitos outros, que me faziam ler o jornal e sempre esperar por acontecimentos piores.
A Constituição tinha sido aprovada no início de abril , eu e certamente a grande maioria dos portugueses , apenas tínhamos raras informações do que nela se continha , desconhecíamos as possíveis implicações . No preâmbulo , a meta de « abrir caminho para uma sociedade socialista » ! Era uma Constituição programática, prolixa , elaborada principalmente entre 11 de março e 25 de novembro , período de apogeu da Revolução onde se vivia um clima de anarco – populismo e uma filosofia marxista associada a um vanguardismo militar.
E em 25 de abril 1976 , eu voto novamente ! Primeiras eleições legislativas, o PS com 35% dos votos, o PCP com 14,6% , este mais uma vez dentro da faixa histórica que obtinha na Europa . Mário Soares , Presidente do PS, seria o Primeiro Ministro do I Governo Constitucional , em setembro.
Mas a Siderúrgica não refletia as melhorias de estabilidade que se verificavam fora dela ! Os problemas nas Instalações continuavam frequentes, às vezes exigindo a nossa presença noturna, mau grado para os trabalhadores isso pudesse representar ainda o « controle do patrão » ! Numa dessas ocorrências , sou instado a ir na Aciaria , já depois do jantar , sérios problemas no Conversor LD, necessidade de interagir com o Alto Forno, de toda a Siderúrgica essa coordenação era a mais crítica , os trabalhadores não tinham como fazê-la.
Fico até mais das 10 horas do dia seguinte, entro no carro extenuado, quero chegar a casa , tomar banho , me deitar. O caminho entre Seixal e Setúbal é por serra, descendo para o mar . O Sol àquela hora bate de frente, torna difícil a condução . Meio do caminho vejo que do capô sai vapor de água , a temperatura do carro sobe , tenho de parar. Levanto o capô, observo . O radiador está furado , sinais de uma barra de aço introduzida pelas aberturas da frente , trespassando-o ! Ao lado do prédio da Aciaria nós tínhamos um estacionamento, o parque externo ficava muito longe, era desprotegido. Eu tinha deixado o carro no prédio da Aciaria , certamente algum trabalhador viu , se vingou heroicamente , contra o capitalismo , a opressão dos patrões !
Eu estava parado no meio da serra, extenuado, não queria aquela luta. Decidi continuar descendo, o carro desligado, até onde fosse possível, primeira oficina .

A Tininha tinha algum dinheiro guardado, para uma emergência , saúde dos Filhos ,imprevistos das escolas. Não ficou um centavo depois da despesa da oficina, dois cilindros estourados.

Compensação talvez, me indicam para um curso em França , cidade de Saint Étienne , uma semana , sobre Redução Direta, fabricação de ferro esponja, nova tecnologia que procurava substituir o Alto Forno no tratamento de minérios de ferro, alternativa ao uso do carvão de coque como redutor dos óxidos de ferro.
Saint Étienne , pequena cidade , no centro leste do País, saindo de Paris , Gare de Lyon, 3 horas de trem . O curso tem menos de vinte participantes, entre eles estão dois brasileiros , um da Mendes Júnior, o outro da Belgo Mineira , que vão - me ajudar a suportar o tédio das tardes após as aulas , no pequeno hotel e nos curtos passeios pela cidade .
O curso é excelente , os professores franceses detalham todas as alternativas existentes , vantagens de cada uma , usinas que já as empregavam , entre elas a Cosigua no Rio de Janeiro, para onde tinha ido o CF, outra na Usiba , na Bahia , para onde eu poderia ter ido aceitando aquele emprego na área comercial.

No final de junho, voto novamente ! Agora para Presidente da República . Ramalho Eanes com o prestígio que havia adquirido no 25 de novembro, ganha com quase 61% dos votos, ganha em todos os distritos, exceto em Setúbal ! Assume em julho , com esse ato o País sai das grandes perturbações sociais, mas não de uma economia que continua em declínio , a inflação projetando 18% anual, o achatamento dos salários das classes superiores se agravando .

Para cobrir as necessidades em pessoal de uma Fábrica na Maia , Porto , que iniciara atividades em julho – mini siderúrgica , com Forno Elétrico , para uma capacidade até 350.000 ton/ano – tinha sido necessário deslocar quadros do Seixal e aqui promover arranjos . Início de setembro sou convocado para uma reunião com o DT e engenheiros das áreas de produção da Fábrica , em pauta mais um desses arranjos. E , para surpresa minha , sou indicado para assumir a gerência da Aciaria !
Na situação de imenso desgaste que vinham sendo as relações de trabalho em toda a Fábrica, aquela não era uma promoção que eu desejasse , era um enorme aumento de dor de cabeça porque ficariam na Aciaria apenas eu e outro colega ( aquele que queria ir comigo para Angola ! ) , aquele outro que acompanhava as Instalações do Despoeiramento tinha saído para a área de Metalurgia, outro ido para o Brasil. O aumento de salário era pequeno , o aumento de preocupações tremendo !

Em casa, à mesa depois do jantar, conversava sobre a indesejada promoção com a Tininha, aquela reunião tinha acontecido há dois dias. O telefone toca, é do Brasil ! Aquela mão que nos acompanha ! , ou não ! O CF está trabalhando em Volta Redonda , próximo do Rio de Janeiro, numa empresa de projeto, precisa urgente de mim ! Em uma semana tenho de estar no Brasil, salário de 26.000 cruzeiros , a empresa me paga a passagem, adianta dinheiro para a passagem da Família e para a acomodação ! Digo para o CF que de projeto não entendo nada , ele me retorna « aqui eles também não » !
Era uma quinta feira , o CF ligaria no sábado para uma resposta minha.

Assim , de forma totalmente inesperada , eu tenho de novo uma grande decisão na minha Vida . Tinha aquele problema na Aciaria , iria ser Chefe de algo que me não dava prazer, aumentaria com isso a minha indisposição com trabalhadores que dia à dia menos desejavam trabalhar e que usavam para isso do recurso às discussões políticas sem qualquer pejo, apenas visando o benefício próprio. Tinha o aspecto econômico, o salário achatado, poucas esperanças de melhoria. Os Filhos cresciam , o João António com 13 anos, rapidamente chegaria na Universidade , depois os outros, o futuro não parecia muito promissor.

Aquele salário que o CF me oferecia parecia magnífico ! O salário mínimo no Brasil tinha passado em 1 de maio para 768 cruzeiros, mesmo que a inflação tivesse sido de 30% no período de um ano em que eu estivera no Brasil, aqueles 12.000 como oferta para trabalhar na Cosipa seriam agora menos de 16.000 , a oferta do CF era muito superior. A questão de ir trabalhar em projeto podia ser um problema, mas o CF me conhecia, sabia das minhas possibilidades e ele também estava trabalhando em projeto.

Eu tinha estado no Brasil, tinha – me maravilhado com a paisagem do Rio de Janeiro , não tinha gostado daqueles restaurantes médios onde comera, tinha achado que as questões sociais eram muito graves . Mas os futuros caminhos por lá não poderiam ser piores dos que Portugal atravessava , e eu já levava experiência de os confrontar e esse confronto sempre seria mais fácil quanto mais alto fosse o salário !

No sábado o CF telefona . Eu não podia ter outra resposta ! Aceito, vou , estou aí na quinta feira próxima !

A Tininha estava plenamente de acordo, as condições ofertadas eram muito boas, ela ficaria para vender tudo , mobílias , carro . Eu chegaria no Brasil, faria a legalização e enviaria carta de chamada , não mais de um mês. Os meus Pais, os meus Sogros , poderiam um dia ir morar conosco, estavam próximos da aposentadoria .
E estou então sentado no avião que agora me vai levar para nova etapa da minha Viagem ! .

Pela terceira vez tenho as mesmas sensações, vou refazer a minha Vida pela quarta vez , novo começo do nada !

Eu tinha saído de Moçambique , depois de Angola, agora de Portugal.

Na primeira , eu me sentira apressado , desejoso de abraçar a Tininha e o meu Filho, ia então começar a trabalhar , terminar os estudos ; os campos do Gurué estavam nas minha lembranças, marcavam os meus sonhos , talvez norteassem o meu futuro.

Da segunda vez, saíra de Angola, oprimido, magoado , vivendo saudades que iriam permanecer para sempre , daquela Baía de Luanda , da minha EKA , do meu Manuel, dos meus bons trabalhadores.

E agora ? Dolorosamente eu observava que saía sem que nenhuma amarra estivesse sendo cortada, nada me ligava ao País em que nascera , aquela rua do meu casarão não me atraía mais, ficavam para trás apenas mágoas de nunca ter encontrado em Portugal uma atividade por que me apaixonasse , com a Revolução Lisboa tinha perdido o ar de nobre simplicidade , a sua beleza estava agora escondida pelo sujo das paredes e pelo comportamento ácido das gentes .

Eu estava indo me juntar aos 280.000 portugueses e luso descendentes que já estavam no Brasil, para lá atirados pela Revolução que tinha entregue as colônias a guerras civis irresponsáveis em nome de democracia e liberdade.

Não podia ter saudades .

Recostar na cadeira , ouvir a musica brasileira que me anunciava o Rio de Janeiro , e agradecer aquela mão do Destino que nos acompanha ! ou não ! esperar que também do lado de lá do Atlântico ela estivesse para me ajudar.

2 comentários:

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