janeiro 30, 2009

05 NOVAS DESCOBERTAS - PARTE I

Em Portugal

Desembarco em Lisboa , chego a tempo da Páscoa. Primeiro abraço em minha Esposa e meu Filho , festejo com os meus Familiares .
Vou ficar em casa de meus Pais , a Tininha já estava lá há alguns meses , tinha conseguido emprego num Laboratório e me esperava para decidir do aluguel de um apartamento de que havia gostado.

Meus Pais têm agora uma qualidade de vida melhor , televisão, compraram um pequeno carro . Penso, eu pesava no orçamento!
Lisboa me parece diferente , não demonstra ser a capital de um País em guerra. Os portugueses sempre estiveram habituados à ausência de seus próximos, das Descobertas à emigração para todos os cantos do Mundo.
O metrô foi aumentado , continuam as obras de novo ramal que o vai levar para lá próximo da minha Universidade . São visíveis obras para a construção da primeira Ponte que atravessará o Tejo , quando saí para Moçambique já tinha do outro lado do rio a enorme estátua do Cristo Rei , 110 metros de altura, braços protegendo Lisboa.

Da janela da casa de meus Pais , vejo os carros elétricos continuando a correr cá em baixo, muito mais carros na rua, o ruído continuado do trânsito sobressalta depois do sossego dos dias de África.

Tenho que procurar emprego , preciso me matricular na Universidade , talvez pudesse permanecer no Exército, algum Quartel em Lisboa, sou agora Tenente de Engenharia , é possível fazer contrato temporário.

Poucas noites depois da chegada , decidido o aluguel do apartamento lá no Bairro de Benfica , carro elétrico até ao centro de Lisboa, espero decisão do Ministério do Exército quanto ao meu pedido , daí a pouco vou deitar.
Início de uma conversa qualquer com meu Pai , sinto a sua animosidade , logo me diz que estranhava eu não pagar as despesas de minha Mulher nos meses lá em casa , que até tomavam conta do meu Filho na ausência dela !
Lágrimas saltando , lhe entrego quase todas as economias que tínhamos podido juntar, a Tininha com o salário dela e a transferência mensal que era feita de Moçambique, afora as despesas indispensáveis, e alguma coisa que por mim pudera amealhar ! Esse dinheiro se destinava à aquisição dos móveis para o apartamento e reserva para aqueles duros meses iniciais !
O dinheiro não compra a Felicidade !

Saio de casa de meus Pais o mais rápido que posso , vamos para aquele apartamento , somos jovens e decididos , nos protegemos mutuamente.

A resposta do Ministério do Exército é negativa, nenhuma vaga para um Oficial da minha Arma. Nem fora de Lisboa, eu já havia pensando no adiamento dos estudos mais uma vez !
Aquele Oficial que me atendia no Ministério do Exército era o mesmo que me tinha salvo na trapalhada do meu embarque para Moçambique ! Não quer trabalhar comigo , ele me diz ?

Mão do destino que nos acompanha ! ou não! fico ali no Ministério mesmo , naquele grande Largo de chegada dos barcos a Lisboa , trabalhando só na parte da tarde , em pareceres para o Ministro ! Roupas civis, nem farda tenho.

Corro a matricular – me na Universidade . Faltam – me 10 cadeiras , a minha turma se formou há quase 2 anos.

A vida então continua , agora gasto todo o tempo possivel no retorno aos livros , me levanto mais cedo , uso as noites. Mas tenho tempo para os banhos da tarde de meu Filho , os passeios no parque , início de pequenas brincadeiras. A Tininha trabalha, precisamos contratar uma empregada doméstica , lá das terras da minha Mãe.

Meus Sogros vêm muitas vezes a Lisboa , moram em Pombal , a 150 Km , em casa dentro de uma Fábrica de Madeiras de que meu Sogro é Gerente . Com eles me sinto apoiado , ouço as suas estórias de vida , simples , difíceis .

Os exames se sucedem , aproveito todas as datas possíveis, faço a melhor programação , ainda consigo alguns dias de licença nas vésperas dos exames. Das matérias que me faltam , todas têm livros vendidos na papelaria da Universidade , isso me ajuda .

Nos transferimos para mais longe de Lisboa, Amadora , agora vamos de trem que sai do centro da cidade , é rápido e nos ajuda a reduzir as despesas com o aluguel. O apartamento é bonito , vamos conseguindo
mobiliá - lo com o indispensável , os dentes de elefante e a pele de leopardo que trouxemos de Moçambique estão lá.

Está chegando o final do ano .
Surpresa , a Tininha está grávida ! Vai nascer bem no Verão , acho que desta vez é uma menina , será Helena Paula, não quero nem pensar em nomes para menino !

Por um acaso , encontro em Lisboa um Soldado da minha Companhia ,ali de passagem a qualquer pretexto. Algumas estórias do regresso dele, me pergunta de supetão – o meu Alferes ( ainda !) lembra daqueles problemas de combustível , dos consumos muito altos dos jeeps ? Chegou a descobrir ? Sorriso irônico , ele me conta – o Sargento responsável jogava gasolina do tambor para o chão , com o calor muito forte ela evaporava rápido. Da conta de combustível no fornecedor , ele tinha uma porcentagem !
Essa conta eu pagava mensalmente, tudo conferido, de nada desconfiando ! A corrupção sempre encontra formas de se satisfazer !

Os meus exames não podem deixar de ser realizados com êxito , estou mais adaptado agora , as dificuldades do recomeço estão lá para trás. As classificações são altas, a experiência nos faz melhores estudantes .

O trem que passa lá na Amadora sempre segue cheio , no vai vem de Lisboa para a Serra de Sintra e desta para Lisboa. Muitos são trens rápidos , não param nas estações , passam faíscando os rodados nos trilhos , apito estridente. Tarde após o almoço, vou para o Ministério , tenho que atravessar os trilhos , o meu cais é do outro lado. Estou absorto nos meus pensamentos , talvez procurando a solução de um problema qualquer , caminho despreocupado . E desatento ! Mesmo em cima da passagem para o outro lado , já a perna levantada no fazer do passo , a sombra enorme de um trem surge ali na minha frente ! Recolho a perna para o cais, não morro, mão que sempre nos acompanha ! ou não ! .

O João António está agora com 2 anos . As brincadeiras são alargadas lá no parquinho , a empregada é paciente, eu e a Tininha chegamos no final das tardes , um descanso regenerador para os meus estudos e para o esforço da Tininha na sua segunda gravidez , trabalhando no Laboratório.

Véspera de 22 de julho 1964 , terça feira , estou finalmente estudando para o último exame da Universidade , amanhã à tarde ! É uma cadeira importante na decisão da nota final do Curso , me esforço ao longo de todo o dia.
Final da tarde , a Tininha começa a sentir os sintomas do parto ! Com a experiência do nascimento do primeiro filho , prepara a roupa que aguarda o novo bébé e fica deitada esperando a melhor hora para irmos para o Hospital Militar onde o parto acontecerá . Por mim , ansioso mas também mais experiente , fico ali ao lado da cama , estudando com mais afinco , vez em quando interrompido por alguns gemidos deixados escapar pela Tininha.
Manhã de 22 , quarta feira, vamos finalmente para o Hospital Militar, Tininha fica internada, eu continuo estudando agora num café ali perto , certo que dispõe agora de atendimento médico muito mais cuidadoso do que naquela noite em Quelimane.
Nascimento ainda não ocorrido , vou para o exame , 16 horas da tarde , termino o Curso com alta classificação , não tenho tempo para os festejos habituais dos formandos na Universidade , dou dinheiro ao contínuo para comprar e jogar os rojões, corro para o Hospital .

O nascimento só acontece às 22 horas , é a Helena Paula ! O Hospital está fechado , não aceita visitas. Começo a me aperceber só agora da maravilhosa coincidência , me sinto compensado por tantos esforços !

Posso repousar nos bancos de um táxi, acho que devo avisar os meus Pais , continuo fazendo esforços para manter uma relação normal, esqueço a animosidade tantas vezes manifestada por meu Pai.
Chego naquele casarão da minha infância. Ali tinha estabelecido que tiraria o Curso de Engenharia, não como uma vaidade mas sim uma forma de sobrevivência , a melhor que as minhas qualidades naturais permitiriam ; estavam também ali os meus primeiros pensamentos na formação de uma Família , nas primeiras aproximações ao conhecimento da Vida.
Naquela sala de jantar de minha Tia , minha Mãe sentada numa cadeira , canto da sala, meu Pai em pé a seu lado, eu na entrada da porta , canto oposto , falo do meu entusiasmo , das emoções daquele dia , que terminei o curso , que são de novo Avós !
Não recebo um abraço de parabéns , uma frase mal acabada de congratulação ! Não tenho ânimo para falar do nome escolhido para a minha Filha ! Fujo envergonhado pela anuência da minha Mãe à frieza demonstrada pelo meu Pai , na verdade deste não esperava diferente !

Tenho agora que procurar emprego ! Sou Engenheiro ! Não vou pendurar o canudo na parede!

Alguns meses antes de terminar o Curso, eu havia respondido a um anúncio de jornal para uma empresa de tintas suiça, altamente conceituada em Portugal . Me convocam para testes , dificílimos . Gostam sobremaneira , me admitem desde já, me subsidiam até os estudos ; um dos entrevistadores se lembra , é uma fábrica de tintas, rotina fazer um exame de identificação de cores . Sou daltônico , eles descobrem , lamentam , foi um prazer!

Persigo os jornais, não tenho conhecimentos pessoais que me permitam chegar mais rápido. Recebo resposta de uma empresa perto de Viseu , não longe da terra natal de minha Mãe. É a Companhia Portuguesa de Fornos Elétricos – CPFE - , me traçam um perfil do emprego , querem – me contratar , me ofereçem um salário igual ao que ganho como Tenente . Mas vou ter casa paga, carreira profissional , é uma empresa muito antiga , numa região ótima, próxima da casa de meus Sogros.
Tininha aceita , vamos perder o salário dela , mas temos todo o Futuro pela frente . Viajamos para conhecer a empresa .
Dou a minha aceitação e tenho ali o primeiro aumento salarial da minha Vida - 10 % , antes de começar a trabalhar ! Acho que o meu salário estava abaixo dos padrões !

Certamente que na decisão de sair de Lisboa, pesou o afastamento que obteria da casa de meus Pais ! Desconhecia por inteiro as tecnologias daquela empresa , em todo o Curso as referências não passavam de uma página ! Desafios não me atemorizavam !

Tocam no rádio músicas dos Rolling Stones de Mick Jagger e Keith Richards , são seus primeiros êxitos.

Saio definitivamente do Exército – foram 5 anos ! – e seguimos de trem para Nelas , sede de município , Distrito de Viseu , menos de 5000 habitantes ; a Fábrica da CPFE era em Canas de Senhorim , a 6Km dali.
Nelas ficava no final do planalto de Viseu , Beira Alta, entre os Rios Dão e Mondego e as Serras da Estrela e do Caramulo . Situação geográfica privilegiada , no cruzamento das estradas que da fronteira ligava ao litoral e que de Viseu ligava à Serra da Estrela. Era também parada de trem.
Apresentava magníficas paisagens de pinhais, vales sulcados por ribeiras e regatos, com extensos vinhedos – era o centro da região demarcada do Vinho Dão , dos mais famosos de Portugal . Também ótimo queijo da serra , saborosos enchidos e uma excelente carne de porco. No artesanato , bordados e rendas , tapetes em estilo Arraiolos.
Canas de Senhorim era o mais importante polo industrial da região centro, com a CPFE e a Empresa Nacional de Urânio, maior mineradora de urânio em Portugal. Ali próximo o Hotel da Urgeiriça .
Não muito distante, as Termas de Caldas da Felgueira de águas curativas.

Vamos morar numa boa casa à saída de Nelas, estrada para a Fábrica em Canas . Em baixo , garagem – esperando carro , que não tínhamos – ao final de uma escada interna , para a direita e esquerda , bons 3 quartos , 2 salas e cozinha .
Vou substituir colega que se desligava para aceitar emprego em Angola . Pretensioso , orgulhoso de seus resultados na Fábrica , me dá algumas explicações sobre as tecnologias utilizadas, complexas , literatura pouquíssima, algumas traduções de livros russos . Me alerta sobre as grandes exigências que o Diretor Geral , vindo de Lisboa frequentemente, fazia sobre o desempenho dos engenheiros, trato ríspido , até grosseiro , terror quando chegava de madrugada chamando os engenheiros ainda em casa !
Estou mais assustado do que naquela noite de chegada a Maua, lá em Moçambique . Os meus leões agora são outros , encontro pela primeira vez as dificuldades de início profissional, em ambiente inamistoso entre os colegas , mesmo desleal pela forte competição, nenhuma disposição da empresa visando um treinamento orientado e prévio , absoluta falta de histórico de resultados e de compilação de tecnologias utilizadas !
A Fábrica tem a principal atividade na produção de Gusa e Ferro - Ligas , materiais intermediários na fabricação do aço. São processos contínuos desenvolvidos a temperaturas acima de 1200 º C , altamente poluidores , em condições de trabalho que beiravam o limite humano. Trabalhadores quase analfabetos , sobrecarregados pelo esforço físico repetido em condições de calor e poluição extremas, muitos deles sofrendo de doenças pulmonares pela respiração de nuvens de poeira com partículas de sílica !
Salário muito baixo , a maioria o complementa com o trabalho nas lavouras em jornadas que vão para além do cair do Sol , ainda tendo que fazer frente à rotação dos turnos de 8 horas na Fábrica e às longas distâncias percorridas de suas casas até ela .
Aqueles trabalhadores dos campos do Gurué até me parecem agora felizes ! Entendo a razão da tão alta emigração daquelas regiões para outros paises e da visível carga de sofrimento que transparece em todos os rostos daquele Povo!
Me dizem que as condições de trabalho nas minas de urânio , ali perto , são ainda piores , muita gente portadora de câncer !
Me dedico com afinco ao trabalho de entender aquelas tecnologias , pouco tempo tenho para ajudar na manutenção da casa e nas brincadeiras com meus Filhos. O cansaço começa a ser grande , muitos dias substitúo o almoço por descanso no sofá da sala , extenuado . Passo noites na Fábrica, procuro entender o que não encontro nos livros , aqueles processos são de resposta muito lenta às mudanças mas essas respostas podem ser dramáticas nos resultados de produção e na vida dos operários , sujeitos a explosões , queimaduras e intoxicações . Procuro efetuar o treinamento de todos, explico as minhas idéias, reúno os capatazes nas mudanças de turno , vigio muitas noites se as minhas instruções estão sendo cumpridas. Muitas vezes me telefonam para casa , qualquer hora da noite , dificuldades que à distância parecem insolúveis , fico acordado pensando nos problemas, se tivesse carro iria para a Fábrica.

A pouco e pouco entendo aquelas tecnologias ! Os resultados começam a superar os do colega pretensioso que tinha ido para Angola , os trabalhadores estão mais confiantes .
Aquele Diretor Geral nunca me chamou em casa , me trata com delicadeza, a pouco e pouco estamos conversando , o acompanho na visita à Fábrica.
O sócio majoritário tempos em tempos também visita a Fábrica. Entra na minha sala , me cumprimenta.

Sinto fortes dores nas pernas , a subida daquelas escadas para as plataformas na Fábrica só são possíveis pela força dos braços nos corrimões sujos de carvão . Vou no médico , vou no Hospital em Coimbra , especialista me diz que não tenho nada , só efeitos de grande estresse . Receita tranquilizantes , que não tomo , mais calmo por saber que é só o trabalho excessivo .

A Tininha vinha apresentando algumas queixas pouco depois do nascimento da Helena Paula , acha que é fígado, barriga um pouco inchada , o médico local acha que sim , receita alguma coisa.

A vida em Nelas era bucólica ! Pouco aonde ir , sempre o mesmo Café, visitas e contatos com dois colegas engenheiros que também moravam em Nelas , o João António agora com 3 anos tem espaço para suas brincadeiras no Largo em frente à casa. Compramos um móvel rádio , grande tendência na época , incremento minha coleção de discos e ali ouço as notícias dos Estados Unidos se envolvendo dramáticamente na Guerra do Vietname .

Alguns finais de semana vamos a Pombal, a viagem de trem é relaxante no passar pelos campos de pinhais , grandes vinhedos , casinhas pequenas escondidas no meio das flores , que observadas da pequena janela do trem mais parecem cenas irreais da tela de um quadro.
A casa de meus Sogros é grande , antiga , construída em dois andares por cima de um grande vão em que se dispunham as serras de corte das madeiras , os grandes estoques ocupando os espaços ali em baixo , montes de serradura . Festa para o João António , que ali podia descobrir espaços para a sua imaginação .
No Inverno rigoroso do centro de Portugal, água congelando nos canos , o vento frio cortando lá fora , a casa é mais aconchegante para ler os meus livros , para as refeições com as longas conversas do meu Sogro no relembrar das estórias ali de Pombal .
No descobrir da Primavera a casa parecia ter novas cores, cá fora em grande área plantada explodia a vida nas árvores de fruto que ganhavam folhas , nos tomateiros que se agarravam no caniçado , nos fios de água que alagavam os espaços das verduras que iriam nascer.
Confortado pelo apoio simples dos meus Sogros ,voltava para Nelas com a Tininha e os Filhos , mais decidido a entender os problemas daquela fábrica e a melhorar ali as minhas condições de trabalho e as dos operários.

Meu aniversário passado , 1966 , a Tininha procura em Nelas um carpinteiro para algum trabalho que queria fazer para a casa .
A mulher do carpinteiro , presente à demanda do serviço, a cumprimenta , parabéns , a senhora está de esperanças ! Meio sem entender aquela forma de expressão ali tradicional , a Tininha nega , não , é só problema de figado, tive bébé faz pouco , fui no médico.
Minha senhora , sou parteira faz anos, nunca me engano , sei bem ver uma mulher grávida ! retrocou a mulher do carpinteiro.

A Tininha estava grávida , nascimento para maio !
Habituada à sua irregularidade e ao nascimento da Paula em julho , não havia suspeitado , aqueles incômodos eram mesmo só problemas de fígado , até o médico dissera !

Esperando o nascimento do bébé , a Tininha fica na casa dos Pais , mais próxima de Coimbra onde acontecerá o parto , no Hospital da Universidade .
Final de semana de maio , viajo para Pombal , uns amigos de meus Sogros nos convidam para passeio até Leiria , o João António exulta em Parque de Diversões que lá encontramos ,Tininha passeia a grande barriga , Helena Paula procura se conhecer no bercinho portátil.
Volto para Nelas .
Semana seguinte , corro para Coimbra – 16 de maio 1966 , 2 ª Feira , nascia a Olga Maria .

Precisava mais do que nunca obter reconhecimento do meu trabalho , até mais tempo para dedicar à Família.
Ganho novo aumento de salário , sei que estou no caminho certo . Mas tenho muito para estudar, acho que desconheço quase tudo sobre aquelas tecnologias, procuro documentação onde possivel , observo horas e dias seguidos o desenvolvimento dos processos de produção na Fábrica, falo muito com todos, um Encarregado Geral , moço novo que veio das salas de desenho , me auxilia com entusiasmo. Outros , a maioria, me dizem – Sr.Engenheiro, isso nunca aqui se fez , não vai dar certo ! Quase sempre deu !

O sonho da aquisição de um carro podia concretizar-se ! As carteiras de condução foram tiradas em Viseu , cidade a 25 Km de Nelas , primeiro a Tininha , eu depois. O carro – um Fiat 850 , pequeno, duas portas , bege - já estava comprado , aguardando na garagem da casa , com o auxílio financeiro de meus Sogros.
Eu podia dispensar o carro da Fábrica e os arredores ganhavam um visitante entusiasmado!

Ansiosamente aguardado, chegamos ao início da Copa do Mundo na Inglaterra , em julho 1966 , que eu escuto na pequena sala onde tínhamos posto o móvel rádio, de frente para ele um sofá , esperança numa equipa que tinha por base o Benfica , equipa de Lisboa eterna rival do meu Sporting , este com sede rua acima da de meus Pais , bem ali perto do casarão. Portugal tinha o Eusébio , a Pantera Negra, diziam que logo abaixo do Pélé !
Em jogos escutados com o coração nas mãos, Portugal ganha da Hungria, da Bulgária e do Brasil . Vai jogar com a Coréia do Norte , que tinha surpreendido a Itália. Para sempre ia ficar na minha memória cada minuto desse jogo ! Meio da tarde de domingo , a Paula tinha feito aniversário na véspera , Tininha andava lá para dentro nas tarefas da casa, eu me angustio na frente do rádio - 1 , 2 , 3 , aos 22 minutos a Coréia ganha por 3 – 0 ! Cada minuto seguinte é uma explosão ! Eusébio faz 4 golos, Portugal ganha por 5 – 3 !
Não ganhamos a Copa , foi dos ingleses, mas eu tenho nesse jogo até hoje o mais emocionante da minha Vida em qualquer esporte !

Mal acabada a Copa , Lisboa e o País estão em festa – inaugura-se a Ponte Salazar sobre o Tejo, ligando por estrada e ferrovia Lisboa a Almada , 2200 metros de comprimento entre margens , 1000 metros de vão principal, 70 metros de altura acima do nível das águas. A construção havia sido feita pela United States Steel , norte americana . A obra iria possibilitar a explosão demográfica da margem oposta a Lisboa .

Agora com carro, a minha situação mais tranquila na Fábrica , a Tininha vai passar as primeiras férias na Figueira da Foz , com os Filhos e minha Sogra, casa alugada. Eu , só nos finais de semana , meu Sogro também.
A Figueira é uma praia na desembocadura do Rio Mondego com o Atlântico , Distrito de Coimbra. Constituía um dos centros turísticos mais importantes de Portugal , principalmente pelo seu Cassino , local de férias de todo o centro de Portugal e das regiões espanholas a ele fronteiras. A 3 Km dali , para Norte, o Promontório do Cabo Mondego , terminando a Serra do Mar.

As águas do Atlântico são frias, melhor as brincadeiras na areia , o João António adora o mar, a Paula parece que não tanto . Nos finais de tarde procura-se alguma mesa na esplanada do Cassino, difícil , pior nos finais de semana . Volto à leitura de romances, há tanto abandonados . A Tininha e minha Sogra se perdem no tricot das suas malhas , essenciais para o frio de todos os finais de ano , naquelas regiões sempre mais doloroso .

A Tininha volta de férias .
Poucos dias depois das férias , o João António havia ficado em Pombal , já alguns prenúncios de problemas na viagem, a Tininha começa a sentir fortíssimas dores no abdômen , não consegue ficar em pé . Médico acha que é indisposição , receita qualquer coisa . Tininha deitada , eu tento atender as necessidades das Filhas , idades quase iguais , a Tininha me explica do jeito que pode . Realmente , prefiro as dificuldades da Fábrica ! Ligo para minha Sogra , se prontifica a vir, primeiro trem da manhã .
As dores aumentam , toda a noite ; manhã , chamo o médico , finalmente descobre – é apendicite , precisa seguir para o Hospital de Viseu .
Aquela empregada doméstica que contratamos em Lisboa e que tinha vindo para Nelas, dedicada e amiga, tinha voltado para a terra natal dela , obedecendo a ordens do pai que não prescindia dela no amanho da terra. Chamamos uma moça que de vez em quando ajudava na casa , fica com as meninas , e eu corro com a Tininha e Sogra para Viseu .
Recebem na porta do Hospital , tiram sangue ali mesmo , encaminham para a Sala de Operações .
Quase três horas depois , o Cirurgião Chefe sai da Sala – ainda bem que fui eu que operei e não um assistente , o caso era muito grave !

Uma semana depois , a Tininha tem alta do Hospital, regressamos para Nelas , baixa velocidade porque ainda dolorido . A estrada se desdobrava em curvas apertadas , perigosa . Me aproximo de um lugarejo , à direita um grande muro que se estende bem para a frente, à esquerda um grupo de moças na berma da estrada , uma delas começando a atravessar , costas para o carro que se aproxima. Buzino , freio, encosto o carro ao máximo no muro, os pneus se desgastam em marcas que ficam no chão, aquela moça segue falando com as amigas , não vê nem ouve o carro, estou quase parado quando ela se vira e , sem mais espaço para continuar a meia corrida desavisada , bate com o rosto no carro ! Nariz sangrando fortemente , não sei se quebrado , deixo ali na estrada a Tininha e a Mãe, retorno para o Hospital de Viseu para lhe dar assistência.
Estava aprendendo a conduzir ! Não foi a primeira esfoladela no carro , já tinha acontecido outra ao entrar na garagem !

Chega o Natal 1966 ! Festa na Empresa e eu fico duplamente feliz – recebo gratificação de um salário e notícia de novo aumento. A gratificação não era prática habitual em Portugal,a legislação não obrigava ainda ao 13 º salário, nem a Empresa a concedia a todos. O aumento colocava o meu salário em 8500 escudos, nada mau para quem tinha começado com 5500 já depois daquele aumento de 10% !

Em Portugal os preços se mantinham rigorosamente iguais desde a minha infância, pelo menos para os alimentos ; o Salazarismo , através da prática do Corporativismo , impedia movimentos inflacionários . O Corporativismo tinha sido criado na Itália por Mussolini - Carta Del Lavoro – e procurava eliminar a luta de classes pela formação de entidades representativas dos interesses econômicos tanto de patrões como de trabalhadores , sob o controle do Estado . A formação e gestão de estoques reguladores de produtos era uma das suas sustentações.

O Natal em casa de meus Sogros permitia ali reunir os elementos da Família para a evidente satisfação de meu Sogro , de origem humilde , nascido na região de Constância, lá próximo de Tancos onde eu fizera o Curso de Oficiais, órfão de pai muito cedo , tendo que começar a trabalhar aos 9 anos de idade como ajudante de armazém de secos e molhados , no auxílio do sustento da mãe e de três irmãs ; durante muitos anos tinha sido controlador de passagens embarcado nos trens de Portugal , muitas viagens para a Espanha, muitas estórias para contar .

Estando na localização privilegiada de Nelas no centro do País e agora tendo carro, os meus finais de semana me levam para a Serra da Estrela , caminho até Seia , depois Covilhã na vertente sudeste da Serra e à Cidade da Guarda , a mais alta de Portugal . Me deslumbro então com as magníficas paisagens que tanto contrastam com o resto do País que eu conhecia .
A Serra da Estrela , que eu avistava ali de Nelas lá para longe, tem no seu ponto mais alto 1993 metros , a maior elevação de Portugal , a Torre como é chamada , no Concelho de Seia. . No caminho de Nelas para lá , a subida é de uma beleza indescritível , toda a natureza ao redor parece explodir. O cenário é constituído por colinas cobertas por flores multicolores e rebanhos de ovelhas pastando no verde da vegetação ; entre as diversas colinas a água corre em abundância . A Serra da Estrela apresenta-se como um alto planalto inclinado para nordeste , de inúmeros afloramentos rochosos profundamente recortados pelos vales de rios e ribeiros , dando lugar a profundas vertentes , esporões e grutas . A vegetação é de uma variedade exuberante, beneficiada pelo alto volume de chuvas .
Essa dura paisagem foi a moldadora da bela raça de cães «Serra da Estrela » , animais de grande beleza , de avantajada corpulência , quase sempre alimentados parcamente , que foram os companheiros do homem da região na guarda de rebanhos frente aos ataques das alcatéias de lobos. O Cão « Serra da Estrela » foi como que um elemento vivo adoçante da agreste e altiva paisagem rochosa da Serra – era nele que o pastor confiava, era com ele que o pastor falava. A Serra da Estrela é origem também do surpreendente « Queijo da Serra da Estrela » , produzido a partir de leite de ovelha puro – crosta lisa , consistente, amarelada e uniforme ;a pasta é amarela, fechada,amanteigada e untuosa , o aroma e sabor são delicados,suaves e ligeiramente acidulados. É sem dúvida um dos grandes queijos do Mundo !
Na Fábrica vou obtendo o resultado da minha perseverança, substituo colegas nas suas férias – novas tecnologias , mais procura de informações , trabalho de aprendizado trazido para casa – e vejo o pessoal mais desenvolvido e os Chefes de muitos anos de casa, conhecimentos ali obtidos na rudeza das situações, passarem a confiar nas minhas decisões , a me procurarem para opinião e apoio. Mas , surpreso , começo a aperceber-me que a Empresa passa por dificuldades financeiras , reveladas nas dificuldades de manutenção , nos problemas com os estoques.
Portugal sempre foi um País de profunda influência religiosa , mais marcante naqueles tempos do místico Salazar. Era então prática religiosa os Encontros de Casais, qual seminário em recolhimento de 2 ou 3 dias para , pela orientação do padre , serem discutidos e renovados os laços familiares , isso nos foi explicado a mim e à Tininha por um Diretor da Fábrica e sua esposa , ambos de idade avançada , em visita cordial a nossa casa exclusiva para o efeito.
A contragosto pela manifesta contrariedade provocada no Diretor, que achava estar ali em sagrada missão , a resposta foi um firme não ! Valia a lembrança do ocorrido com um Encarregado Geral da Fábrica , outro Setor que não o meu, moço jovem, atlético, que eu conhecia como alegre e brincalhão , contador de anedotas e de casos, que tendo feito esse tal de Encontro se havia transformado em melancólica pessoa, tomado por pensamentos constantes de fervor religioso , nunca mais contador de anedotas e de estórias ! Se falava de gente participante desses Encontros encontrada altas horas da noite circulando repetidas vezes em torno do adro da igreja , talvez espiando pecados !
Guerra dos Seis Dias , israelo – árabe, terminando com a ocupação por Israel da cidade de Jerusalém e dos territórios de Gaza e Cisjordânia , chegam novas férias passadas na Figueira da Foz e posso me dedicar à paixão da leitura , na descoberta de Camus, Steinbeck e Hemingway , mas também dos romances policiais , menos inquisitivos , de Simenon e Edgar Allan Poe . Mas teria então nessa Figueira da Foz um trauma inesperado e intensamente doloroso , inesquecível ! Com dor prolongada num dente molar , procuro um dentista , ali nos calçadões da praia . Opinião do especialista, tem de arrancar , não há aparelhagem de Raios X , anestesia dada , começa a puxar ! O dente dói tremendamente, grito repetidas vezes, chega a mulher do dentista, também é prática , ajuda , o médico diz que não pode dar mais anestesia , é perigoso , tem dose máxima , já deu, tem de arrancar o dente , não pode deixar, é perigoso, a boca é minha , grito, grito, finalmente o dente sai, a raiz era curva , o médico transpira , cá fora os clientes estão brancos quando saio ! Nunca mais lá fui !
Mas as dores não seriam só minhas nesse verão ! O Joãozinho tem 4 anos , adora o seu triciclo , corre pelo corredor passando pelo patamar no cimo das escadas que liga os dois lados da casa . A Tininha não se apercebe , o Joãozinho despenca pela escada , só pára cá embaixo , escada de pedra , bastantes degraus. Sobe, puxando o triciclo, nada aconteceu ! Mesma brincadeira , Joãozinho adora, Tininha passa roupa , a escada já tem cancela que os Pais mandaram colocar , o Joãozinho corre desenfreado ,bate com a testa no canto da tábua de passar . Sangue por todos os lados, Tininha telefona , corro da Fábrica assustado , 850 fumegando, chego em casa não foi nada , só corte na testa nem tão profundo !
Outubro chega com a notícia da morte do revolucionário marxista Che Guevara , em qualquer lugar da Bolívia . Inicio do Inverno, a Empresa me manda para Lisboa fazer um curso de 3 semanas sobre « Treinamento de Professores de Formação Profissional Acelerada » . Deve ser um prémio , acho , detesto o curso, não me vai servir para nada ! Mas aí a novidade , a Tininha está de novo grávida , lá para maio vai nascer o 4 º Filho.
Menos estressado com as dificuldades do emprego , participo em brincadeiras de voleiball com os Encarregados da Fábrica . Alguém tem ali a idéia de formar uma equipa para concorrer ao campeonato nacional que anualmente era organizado pela FNAT , Federação Nacional para Alegria dos Trabalhadores ! Somos razoáveis , ganhamos os jogos do Distrito de Viseu , já vamos competir a nível nacional . O jogo , eliminatório , é lá em Viseu , o adversário uma equipa da região do Porto, que logo na entrada em quadra nos não deixou dúvidas – perdemos , e feio , nunca mais jogaríamos , nem como passatempo.
Minhas experiências na Fábrica se ampliam , agora até à Cooperativa , onde os operários faziam as compras do mês, primeiro registradas na caderneta e depois descontadas no salário. Observações feitas , estórias contadas , os preços são exorbitantes , os operários fingem não saber , têm muitas situações de sujeição , não há para quem reclamar ! E contam de como não muito tempo atrás eles eram dispensados do trabalho sem qualquer aviso, ficavam em casa sem salário , lavoura de subsistência , até que de novo fossem chamados pela Fábrica qual manada de gado ouvindo o som da sineta dependurada nos terrenos de fundo da Fábrica que davam para a Vila em que moravam ! E como eu podia esperar grande rendimento deles, se já chegavam cansados ao trabalho cansados de casa ! Não fiquei auxiliando por muito tempo na Cooperativa .

15 de maio 1968, 5 ª feira , nasce no Hospital de Coimbra o Pedro Jorge ! A Família agora está completa ,eu havia dito à minha Sogra - futura ! - numa viagem de carro elétrico no início dos tempos de namoro , que queria ter 4 Filhos , respondendo à pergunta dela , um pouco desdenhosa , superior nos seus conhecimentos da Vida.
A Vida me deu a felicidade de ter dois Filhos nascidos em Coimbra , local onde a Tininha tinha estudado os 6 º e 7 º Anos do Liceu e depois os dois primeiros de Engenharia , morando em casa de bondosa senhora brasileira . Coimbra , atravessada pelo Rio Mondego , é a 3ª cidade mais populosa de Portugal , depois de Lisboa e Porto , uma das mais antigas da Europa. Conhecida como cidade dos estudantes ou Lusa – Atenas pela Universidade que data do século XIII , tem como Padroeira a Rainha Santa Isabel , do milagre da transformação dos pães em rosas , e foi local dos amores proibidos do Rei D.Pedro e Dona Inês . Excelente centro cultural europeu , em Coimbra se encontra uma forma de expressão musical admirável – o Fado de Coimbra , criação dos boêmios estudantes
« O fado de Coimbra é normalmente caracterizado por uma relativa sobriedade, que permite caracterizar e distinguir determinada melodia de outra. A guitarra é o instrumento típico para tocar o fado, é ela, que, com os seus acordes, personaliza cada tipo de fado, acordes esses que são secundados pela viola que acompanha a melodia executada pelo guitarrista. A guitarra de Coimbra, pela sua estrutura e configuração, é um instrumento do qual se obtêm acordes completos, que só por si caracterizam de uma maneira muito especial a música Coimbrã »

Cantado pelas Matas do Choupal , do alto do Penedo da Saudade , pelos bares e pelas ruas estreitas onde ficam as repúblicas dos estudantes , esse Fado , como o de Lisboa, caracteriza a alma portuguesa. Desses fados ,impossível esquecer a letra do « Fado Hilário »

A minha capa velhinha
É da cor da noite escura,
Nela quero amortalhar-me,
Quando for p'ra sepultura.

A minha capa ondulante
Feita de negro tecido,
Não é capa de estudante
É mortalha de vencido.

Ai!... Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra,
A forma de um coração,
Ai!... A forma de uma guitarra.

Fado cantado certamente ao menos uma vez por todos os portugueses e que eu , como todos , tentei ensaiar nos meus tempos de criança , o ouvindo naquele radinho de meus Pais , até entender , primeiro incrédulo e depois pesaroso , que « não tinha ouvido » , como mais tarde me foi explicado pelo professor de música do 1º Ano do Liceu , logo na primeira aula.
A Empresa começava a não representar para mim o emprego desejado , bastante cansado fisicamente pelo tipo de atividade , desgostoso por participar de sistemas de trabalho desagradáveis aos trabalhadores e também porque o meu salário tinha estagnado desde o final de 1966.
Recorro aos jornais, mando respostas aos anúncios, me esmero no currículo .
Vem uma resposta do Porto , fábrica metalúrgica, decido ir visitar.
A minha Sogra ,tanto para auxiliar nas despesas da casa como para seu próprio entretenimento, mantinha a atividade de modista , no que era auxiliada por duas ou três moças trabalhando lá em casa . O prazer por essa atividade minha Sogra tinha herdado da sua mãe , costureira de calças , senhora esta que era casada com um dono de pequena fábrica de malas , instalado em loja no centro nobre de Lisboa . Em apartamento na mesma casa desses avós , em ruinha do Bairro de Alfama , próximo de miradouro debruçado sobre o Tejo, a Tininha tinha nascido e passado os primeiros anos da sua infância , antes de os Pais a levarem para Pombal. Assim , com as moças como bábás, muitas vezes os meus Filhos ficavam em Pombal , para enlevo dos Avós e alguma liberdade da Tininha.
Então , Filhos em Pombal , seguimos para o Porto ,lá no Norte do País , na foz do Rio Douro. Passando por Coimbra e seguindo por estrada apenas razoável de mão dupla encontrávamos extensas dunas de areia que se prolongavam por vários quilômetros para o interior, enseadas de pequenas lagoas , até à bacia hidrográfica da Ria de Aveiro, desembocadura do Rio Vouga , cerca de 60 Km depois. Aí se estende a Cidade de Aveiro , entrecortada pela Ria que lhe deu o nome de Veneza Portuguesa e em que flutuam os barcos moliceiros , que trazem o sal produzido nas inúmeras salinas que se espalham pelo litoral . A culinária de Aveiro é riquíssima - caldeirada de enguias, raia em molho de pitau , enguias de escabeche, espetadas de mexilhão , carneiro à lampatana assado em caçarola de barro preto , leitão assado e principalmente os ovos moles das barriquinhas decoradas de madeira – que fazem por si só excelente pretexto para a visita. Aquela caldeirada de enguias !
Mais 60 Km daquela estrada desconfortável e estávamos atravessando a Ponte da Arrábida sobre o Rio Douro , saindo de Vila Nova de Gaia na sua margem sul para entrar na cidade do Porto , a Invicta, a terra dos tripeiros, a cidade laboriosa , Portus Cale na época dos romanos .
O Rio Douro nasce na Espanha , a 2000 metros de altitude , e atravessa todo o Norte de Portugal , vindo para a sua foz na costa atlântica , nas cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, dando características ímpares de beleza a todas as regiões que atravessa. Com 850 Km , é de início um rio largo e pouco caudaloso , para na entrada em Portugal nos seus últimos 200 km passar a apresentar forte declive , que o leva até ao Oceano entre fraguedos de canais profundos, curvas apertadas, rochas salientes , rápidos e inúmeros saltos . O Rio Douro sempre foi uma fonte de riqueza para todo o Norte, fazendo mover azenhas , permitindo a pesca de espécies magníficas – enguia, truta - , irrigando campos , gerando energia elétrica nas barragens construídas ; dentro das matas de zimbros, carvalhos, sobreiros , pinheiros e outras variedades de vegetação das suas encostas , se encontram espécies cinergéticas que são uma das maiores riquezas da região – o corso, o javali, o coelho , a lebre o lobo , a raposa .
Obra-prima da natureza e do esforço humano, o Vale do Douro é sobretudo rio, vinha, paisagem grandiosa e história milenar. Vagas sucessivas de povos, de culturas e crenças diversas, povoaram esta região de clima quente e seco, encravada aos pés das Serras do Marão e Montemuro.

No rendilhado da paisagem envolvente deixaram gravuras rupestres, castros, menires e antas e edificaram calçadas, pontes romanas, castelos medievais, mosteiros e igrejas de todos os estilos e arquiteturas. Na poeira do tempo imortalizaram-se, nestas paragens, lendas e tradições da fundação da nacionalidade, pergaminhos de velhos forais, narrativas épicas de lutas de cristãos e mouros, histórias de fortunas e infortúnios da epopeia vinhateira.
O Vale do Douro, compreendido entre Barqueiros e a fronteira espanhola, é uma aventura de três séculos de trabalho e paixão pela terra.
Multidões de homens desventraram o solo, remexeram o xisto, elevaram fileiras de socalcos e vinhedo para que dele nascesse o Vinho do Porto. Na mais antiga região demarcada do mundo os durienses empenharam a alma e o corpo em sucessivos Verões e Invernos, cuidando a terra, tratando a vinha para em ,cada Outono, fazer a vindima. Dias e noites a fio, cortam os cachos, transportam os cestos e pisam os bagos nos lagares entre cantigas, concertinas afinadas e risos.

A arte e os segredos de fazer o vinho passaram de pais para filhos e a fama do Vinho do Porto atravessou fronteiras. Fez as delícias dos ingleses, que desde o século XVII, o importavam desde a cidade do Porto para onde seguia em pipas, rio abaixo, nos barcos rabelos .
A Ponte da Arrábida que havia sido inaugurada a meio de 1963 e foi projeto e construção do Eng.Edgar Cardoso , professor da Universidade à minha época de estudante , apresentava o maior arco do Mundo em concreto armado e era a principal ligação rodoviária entre as regiões norte e sul .Ao lado dela, para montante , mais duas pontes : a Ponte D. Luis I , de dois tabuleiros, servindo o centro das duas cidades e , fazendo a ligação ferroviária entre as duas margens do Douro, a Ponte Maria Pia , toda metálica , que havia sido construída por Gustave Eiffel na segunda metade do século XIX.
A cidade do Porto era a segunda maior cidade de Portugal , existindo um certo sentimento de rivalidade em relação a Lisboa .Inicialmente , ponto de saída para o Velho e Novo Mundos de nozes , frutas secas e azeite do Vale do Rio Douro , teve a sua atividade incrementada pelo desenvolvimento da agro – indústria do Vinho do Porto, produzido na região vitivinícola do Alto Douro, a mais antiga região demarcada do Mundo.
Um comércio próspero e eficaz e o dinamismo de um centro industrial importante, não haviam tirado do Porto o encanto e caráter dos seus bairros antigos ou mesmo do bulício das novas avenidas , ladeadas de centros comerciais ou blocos residenciais. À beira – rio, o Bairro da Ribeira aparecia fascinante com as suas ruelas , casas típicas e população pitoresca .
Os naturais do Porto são chamados de Tripeiros , em homenagem ao ato da oferta de toda a carne disponível na cidade aos expedicionários que no início do século XV saíram para a conquista de Ceuta, no Norte de África , ficando só com as tripas - daí o prato histórico « Tripas à moda do Porto » que remonta ao tempo dos descobrimentos

Ingredientes:
600 g de dobrada
1/2 mão de vitela
100 g de presunto
1/2 perna de frango
100 g de orelha de porco
100 g de bacon
80 g de chouriço de carne
80 g de salpicão
80 g de chouriço de sangue
4 dl de feijão branco
1 cenoura
0,5 dl de azeite
1 dente de alho
1 cebola
1 ramo de cheiros
2 cravinhos
1 dl de vinho branco
2 colheres (sopa) de polpa de tomate
300 g de arroz
Sal, pimenta, cominhos, salsa picada e piripiri

Preparação:
De véspera, coloque o feijão de molho. Limpe e lave muito bem a dobrada e a mão. Escalde-as e coza, temperando com pedacinhos de cenoura, cebola com os cravinhos espetados e alguns grãos de pimenta. Como a mão coze mais depressa do que a dobrada, retire-a assim que estiver cozida, deixando a dobrada cozer durante mais algum tempo.
No próprio dia, coza o feijão com a cenoura cortada em pedaços. Coza também o frango, a orelha, o presunto e os enchidos (exceto o chouriço de carne), retirando à medida que forem ficando cozidos. Corte em pedacinhos a dobrada e a mão. Faça um refogado com o azeite, a cebola, o alho picado e o raminho de cheiros. Assim que começar a alourar, junte o vinho branco, a polpa de tomate, o chouriço de carne e o bacon. Adicione também um pouco do caldo onde cozeu a dobrada, previamente coado. Deixe ferver lentamente durante cerca de 45 minutos. Junte a dobrada e a mão, retire o chouriço de carne e o bacon e deixe apurar durante 15 minutos, acrescentando o caldo necessário. Junte o feijão, tempere com piripiri e com cominhos, mexendo cuidadosamente.
Sirva numa travessa, espalhando por cima a orelha cortada em tirinhas, o presunto, o frango desfiado, rodelas de salpição e fatias de bacon. Polvilhe ainda com a salsa picada. À parte, sirva o arroz branco seco, feito no forno, enfeitado com as rodelas dos chouriços de carne e de sangue.

O provável emprego , o que me havia trazido ao Porto , era numa rua de bairro afastado , galpão de má aparência . Não desci , dei meia volta no carro e voltei para Nelas . Desse retorno , me ficou a triste recordação de uma pedrada acertando o pára - brisas do carro, próximo a Aveiro , o que me fez completar o resto da viagem como andando de moto !
Continuei recortando jornais, na procura de novo emprego que me permitisse melhorar financeiramente e , o mais desejado , sair de uma atividade em que não via como nela continuar com o avançar da idade .
Setembro 1968 , aos 79 anos de idade e 40 anos de Poder , Salazar é afastado do Governo depois de uma queda que lhe causou fortes danos cerebrais . É substituído por Marcelo Caetano , Jurista , Professor de Direito , culto e historiador, esperança da introdução de medidas que permitissem a abertura política e a integração do País na Europa e no Mundo. As manifestações políticas aumentam em Portugal, com manifestações estudantis em Lisboa e Porto , contra a guerra do Vietname e a guerra colonial, levando ao fechamento pela Polícia Política das instalações da Universidade em que eu estudara .
A minha Sogra tinha uma única irmã , morando em Lisboa, modista de calças, profissão herdada da mãe , casada com um senhor de trato difícil, contínuo no Ministério da Marinha , bem ao lado onde eu trabalhara. Esse casal nos tinha proporcionado bons passeios no seu pequeno carro , quando estudantes e namorados. De herança , tinha esse casal uma pequena casa em Cedrim do Vouga , no limite da Beira Alta com o Distrito do Douro .
Aproveitando um dos muitos domingos de Sol do final de verão em Portugal , e no desafio da condução pelas estradas do País , resolvo ir até lá, conhecer essa região que me diziam tão bonita, e no caminho passar também por Santa Comba Dão , a terra natal de minha Mãe .
Cedrim era uma pequena povoação, não mais de mil habitantes , encravada nas encostas do Rio Vouga , pequeno rio que nasce ali no centro de Portugal , correndo espraiado para Aveiro , mas que ali em Cedrim se apresenta caudaloso por atravessar zonas de relevo da Serra do Caramulo . A agricultura se caracteriza pela disposição em sucalcos abertos nas íngremes encostas , aqui e ali com zonas abertas onde os elementos dominantes são a pedra nua granítica e os matos rasteiros. Os aspetos geológicos da região são refletidos pelos materiais usados tanto nas habitações como em muros e sebes de proteção , predominantemente nessa pedra granítica . Habitat pobre e hostil - agricultura sofrida , criação de aves, exploração de bovinos, artesanato com base na cultura do linho por processos artesanais e seus teares manuais – e elevada repartição da terra, comunicam às comunidades locais características de rigidez e grande valor conservacionista. A casa que eu procurava não era diferente das demais, na pedra e na rudeza .
Santa Comba Dão , a nordeste da cidade de Coimbra, distante dela 50 Km , margem direita do Rio Dão , próximo da sua confluência com o Mondego , com uma orografia bem marcante da paisagem , não é diferente de Cedrim , nem seus habitantes .

Finalmente obtenho uma resposta interessante às minhas cartas - da Siderúrgica Nacional , bem próxima de Lisboa, outra margem do Tejo. Vou até lá, é empresa de élite em Portugal , irei trabalhar na Aciaria , fabricação de aço, minha experiência profissional na fabricação de ferro - ligas me valoriza, engenheiro auxiliar do Chefe de Departamento, só eu e ele, salário de 9100 escudos , ótimo , estou decidido .
Na despedida da CPFE , surpresa com a minha saída , precisam de mim, me oferecem 12000 escudos – eu penso, como perdi dinheiro nestes anos ! Aquele Diretor que me queria levar no Encontro de Casais me convida para último jantar em sua casa ; já na despedida , tom amigável , me diz – o senhor tem de aprender que às vezes temos de brigar pelos nossos direitos ! Acho que se referia ao salário !
Então , mudança dos móveis e bagagens feita para a Vila do Barreiro , estou trabalhando na Siderúrgica Nacional , SN, é inicio de Outono 1968 .

A Vila do Barreiro era um dormitório de Lisboa , onde moravam as famílias de classe média menos favorecidas que trabalhavam em Lisboa , inicialmente desenvolvida pela instalação aí da fábrica de produtos químicos de maior porte em Portugal – a CUF , Companhia União Fabril , propriedade do maior Banco Português , o Banco Espírito Santo. De frente para Lisboa , um pouco para montante do Tejo , tinha como acesso mais fácil os barcos que saíam do grande Largo em que eu trabalhara no Ministério do Exército , quase uma hora de viagem. O apartamento , de 3º andar e último , estava num prédio que se ligando a outros formava um grande conglomerado alongado . A Vila tinha bons recursos mas como « dormitório » o movimento desaparecia ao anoitecer.

A Siderúrgica Nacional estava instalada em pequena Vila - Paio e Pires – na região do Seixal, já Distrito de Setúbal , plana, estuário do Tejo , local onde Vasco da Gama construiu a sua frota marítima para se deslocar até à Índia , terra de pescadores , um grande número de Quintas Senhoriais . A Siderúrgica tinha iniciado a produção em 1961 , médio porte, 500.000 toneladas anuais de aços longos e planos , composição que lhe dava uma característica única no Mundo .Projetada e construída por empresa alemã, os seus quadros técnicos, engenheiros , funcionários de chefia e operadores especializados, tinham tido treinamento na Alemanha e na Áustria , quase dois anos , uma vez que aquela industria era pioneira em Portugal. Todo o recrutamento procurava empregados de elite , a empresa se orientava por padrões alemães , os funcionários eram claramente orgulhosos do seu nível tecnológico , numa industria que era então considerada como um dos últimos degraus de desenvolvimento de um país .
Portugal era muito pobre em minério de ferro - importado principalmente do Brasil e de Angola - , algum carvão vegetal , nenhum carvão mineral ( importado dos paises do centro da Europa ) . O fraco desenvolvimento industrial do País também não justificara até aquela data a fabricação de aço .
Nessa empresa começo então novos desafios - e como ! O Chefe do meu Departamento tinha estado em todo aquele treinamento de dois anos no exterior, com contato com todos os funcionários de chefia e operadores mais importantes ; inicialmente ele era subordinado a outro engenheiro e tinha também um colega do mesmo nível , que fizeram todo o treinamento junto com ele . Eu estava entrando na Empresa para substituir esse colega dele , demitido ; o outro - o Chefe de Departamento ao início das operações - ele já tinha conseguido fazer demitir , e ocupava então o lugar dele ! Esse engenheiro – vamos chamá - lo de DT – era na verdade de grande capacidade intelectual, mas que infelizmente ele mais utilizava para fazer desaparecer todo o coitado que atrapalhasse seus objetivos ! Para melhor compreensão do que era o DT – e do que esperava este coitado , eu ! – ele que se caracterizava naqueles anos de autoritarismo político por ser ainda mais à direita , conseguiu com a Revolução de 1974 ser aceite nas militâncias da esquerda comunista e chegar a Diretor Geral da Siderúrgica ! Voltei a encontrá-lo na minha vinda de Angola , anos depois !
Condenado então ao ostracismo na minha sala , nenhuma atividade distribuída , quadradinho preenchido no organograma, me resta procurar aprofundar o mais rápido possível o conhecimento das novas tecnologias , beneficiado pela enorme documentação existente na Biblioteca. Minha mesa se encheu de livros, que se espalharam pelo chão ao redor das paredes , noites seguidas de leitura em casa , horas de assistente aos trabalhos de todo o mundo .
A industria siderúrgica era ainda mais complexa do que aquela onde eu tinha estado. As temperaturas de trabalho são superiores – 1700 º C - , os equipamentos precisam de refratários especiais que exigem cuidados de operação e de manutenção próprios , com requisitos de resistência mecânica e elétrica extremos ; a tecnologia do aço é vastíssima pelas suas múltiplas características que lhe dão enorme diversidade de aplicações , as tecnologias de produção são de enorme complexidade , os sistemas de controle – naquela época – quase inexistentes, apenas alguns no controle do desempenho dos equipamentos .
Todo o processo era cheio de mistérios , que faziam o DT prosperar! No controle dos processos de produção , os operadores os acompanhavam com a vista e os ouvidos, atentos a mudanças de sonoridade e de tons de cor ! A análise química era feita pela observação do comportamento do aço liquido escorrendo no chão ou pelo modo de fratura de uma barra ali forjada às pressas !
A produção precisava da realização de um sem número de contas , antes e ao final dos processos que se repetiam a intervalos que se procuravam os mais curtos – mais curtos , maior capacidade de produção - ; se dispunha então , como melhor auxiliar do caderno e lápis, apenas a « régua de cálculo » !
A régua de cálculo era o melhor auxiliador disponível desde a primeira metade do século XVII no cálculo das operações de multiplicação , divisão e de funções trigonométricas, com resultados apenas aproximados . Com réguas fixas e outras deslizantes , podendo ser intercambiáveis , de escalas logarítmicas , baseava-se nos princípios de cálculo dessas funções – um cursor transparente ,também deslizante, com linha de referência, permitia efetuar o alinhamento de pontos em escalas diferentes.
Nas minhas funções de Engenheiro usei régua de cálculo até 1979 , já no Brasil , quando a troquei pela calculadora eletrônica ( disponíveis desde os primeiros anos da década de 70 , mas muito caras ) !
Completavam as dificuldades , o porte enorme dos equipamentos , a poluição que entrava pela boca , sujava as roupas e o lenço – as roupas que trazíamos de casa eram trocadas por velhas à entrada na Fábrica , para à saída as vestirmos novamente depois de um bom banho ! – e os pingos de aço que marcavam as lentes dos óculos. Ainda , os operários eram os mais politizados do País – as regiões do Barreiro, do Seixal e de Setúbal, ao Sul , eram os pontos de surgimento das tentativas de oposição ao regime , denunciadas em mal acabadas greves , centros em que floresceu o Partido Comunista – e permanentemente desagradados pelos esforços físicos contínuos e sobrecarga de horas extra a que eram sujeitos , embora recebessem os melhores salários e benefícios do País .
Assim comecei a preparar rotinas de trabalho , a pré - calcular resultados dentro de todas as variáveis possíveis , muitas vezes através de gráficos , primeiro simples , depois de múltiplas entradas , que eu ia apresentando aos controladores e operadores , procurando com isso e as explicações dos processos – na medida que eu os ia aprendendo na literatura disponível – melhorar as condições de trabalho e a produtividade . Como forma de arquivo e para me ajudar no continuado desenvolvimento , esses trabalhos, às vezes bem coloridos , eu os pendurava na parede em quadros do tipo de avisos , às vezes mesmo na parede crua !
A Siderúrgica estava ligada ao Banco Pinto e Sotto Mayor e pela sua dimensão – mais de 4000 funcionários – efetuava os pagamentos em conta bancária ; abri assim a primeira conta , em agência próxima da casa de meus Pais, mas o dinheiro era totalmente retirado no início de cada mês para , depois em casa , ser distribuído em envelopes cada um para uma despesa já identificada . Assim , desde o início , em Moçambique , eu e a Tininha tínhamos o domínio das nossas contas .
Finalmente aquele móvel rádio tem em cima dele uma TV , preta e branca !As notícias vinham agora mais fáceis , embora os programas fossem pouco interessantes . Mas já assistíamos à transmissão dos jogos de futebol , às vezes em videotape que vinha do Porto por avião e nos levava a ficar até altas horas da noite esperando ! E outras notícias chegavam , a posse de Richard Nixon na Presidência dos EUA, a invasão da Tchecolosváquia pela URSS , a intensificação da guerra colonial em Moçambique.
28 fevereiro , meio da madrugada , eu e Tininha acordamos quase simultaneamente e nos abraçamos em pânico , começamos a rezar , último recurso em desespero ! Um enorme estrondo , cavernoso, vinha debaixo de nossas camas , do fundo do prédio , lá do interior da Terra , não há luz, lá fora escuro total, gritos de pessoas, correrias que espalham barulhos que ecoam nas escadas , o armário ao lado da cama avança e recua , quer vir para cima de nós, ali ao lado está o berço do Pedro , nos quartos do João e das duas meninas as camas andam de um para outro lado , na sala caem coisas , vidros quebram ! Nada a fazer, levantar da cama e socorrer os filhos parece impossível , o chão desanda e não deixa levantar ! O terramoto foi de escala 7,5 ,violento, felizmente sem danos pessoais no País, alguns danos materiais em rachaduras de prédios . De manhã , sábado, fomos a Lisboa , com os Filhos , os telefones não funcionavam , procurar saber notícias de meus Pais e de meus Sogros . Em todo esse dia as pessoas encheram as ruas do País, ninguém entrava em casa , muita gente dormiu pelos parques e praças. O terramoto de 1775 , que arrasou Lisboa , estava presente em todos !
Aqueles estudos pendurados na minha sala começavam a fazer efeito ! Não que eu os tivesse ali posto para isso , mas , com a porta aberta, eles eram observados por colegas que passavam , alguns entravam , falavam comigo, trocávamos opiniões , olhavam para os livros que não cabiam na mesa e se espalhavam no chão. Aquele DT não tinha muitos amigos ! Ele também passava pela porta e, soube mais tarde, começou a operação de descrédito contra mim .
Final da tarde , banho tomado e roupa trocada , saía para encontrar a Tininha em parque central do Barreiro , onde ela distraía os Filhos nos brinquedos por lá espalhados , com a ajuda vigilante do João António, 6 anos , que se revelava menino ponderado, preocupado com os irmãos, embora alegre e traquinas. Mesa de bar ali na praça, café ou cerveja, ouvíamos as conversas de mesa ao lado, senhoras também habituais, sobre viagens a Espanha , seus prazeres e suas compras .
Nos finais de semana o carro nos levava na descoberta daquela maravilhosa margem do Tejo , que se prolongava pela costa do Atlântico , para Sul , até ao estuário do Rio Sado , mais para baixo nos aproximando do Algarve.
Perto do Barreiro , Almada , de frente para Lisboa e para as suas praias, era defesa e vigilância da entrada de Lisboa , com fortaleza ali construída pelos Árabes e os braços abertos do Cristo Rei na sua altura de 110 metros .Tinha sido local de falecimento de um meu herói das leituras épicas dos Descobrimentos , Fernão Mendes Pinto , aventureiro e explorador que teria sido o primeiro português a chegar ao Japão , suas aventuras por ele contadas na « Peregrinação » , só publicado nos finais do século XVI após a sua morte por medo da Inquisição , que assim mesmo terá apagado e corrigido muitas referências . O titulo dessa obra me havia fascinado !

« Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio e ouvio no reyno da China, no da Tartaria , no de Sornau , que vulgarmente se chama de Sião , no de Calaminhan , no do Pegù , no de Martauão , e em outros muytos reynos e senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente há muyto pouca ou nenhuma noticia . E tambem da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousa ,e da morte do Santo Padre Francisco Xavier , única luz e resplendor daquellas partes do Oriente,e reitor nellas universal da Companhia de Iesus »

No estuário do Sado , margem Norte , a 30 Km de Lisboa, ladeada a oeste pela esplendorosa Serra da Arrábida , espraia-se a cidade de Setúbal , com as suas ruas apertadas do centro da cidade , de ocupação desde o Neolítico , fundada pelos Fenícios nos anos 1000 AC e incrementada pelos Romanos que daqui , por via fluvial, chegavam aos centros mineiros do interior alentejano , lá para Aljustrel , terra natal do meu Pai . Importante centro industrial , Setúbal é reconhecida pela gastronomia baseada nos peixes e frutos de mar , que começamos por encontrar na visita alegre e colorida ao seu Mercado – feijoadas , saladas e caldeiradas à base de choco e polvos, de santolas, sapateiras , navalheiras , ameijoas ( à Bulhão Pato ! ) ,ostras, lamejinhas, berbigão, vieiras , caracóis do mar , pratos de peixe assado , cozido ou grelhado , sardinhas ( assadas ! ) , salmonetes ( grelhados e temperados com molho feito do fígado do peixe ! ) . A produção vinícola da região deu origem a produtos reconhecidos internacionalmente , vinhos tintos e brancos de qualidade a partir de uvas maturadas nas encostas da Serra da Arrábida ; o Moscatel de Setúbal é um vinho licoroso obtido em região demarcada , o licor Arrabidine é produzido pelos frades do Convento da Arrábida , de produção envolta em secretismo , com o uso de frutos silvestres da Serra e guardado em caves durante 15 anos antes do consumo !
Na Fábrica , a minha insatisfação começava a mudar . O DT conseguia com a sua astúcia uma promoção , deixando vaga a Chefia de Departamento , que passou a ser ocupada por colega meu , também Engenheiro Químico , mesmo ano de entrada na Universidade de Lisboa , vamos chamá - lo por CF . O CF não tinha feito serviço militar , assim se formando em 1962 e entrando para a SN logo depois, portanto um ano apenas após o início de produção ; beneficiado por excelente capacidade e as ótimas condições de treinamento daqueles primeiros tempos , se destacava no Departamento de Metalurgia, em apoio a todos os setores de produção. A minha relação escolar com ele havia sido pequena, ele natural da cidade de Braga , acima do Porto, e assim tendo nós grupos de amigos diferentes. Agora , em nova atividade , relacionamento completamente diferente do DT e ansioso por efetuar mudanças que dessem melhor estruturação tecnológica ao Departamento , o CF encontrava em mim um apoio , e eu nele . Começava a poder interferir no curso das atividades e a provocar mudanças.
Meu salário então crescia , junto com a melhoria do meu entusiasmo ! Dos 9100 escudos, chegaria não tarde aos 12500 !
Julho, 20, 1969 – deitado no chão da sala de fronte para a TV , 4 horas da madrugada , mais que sonolento , Tininha ali do lado, saltam nos nossos olhos, por aquele pedaço de vidro preto e branco , as imagens mais espetaculares jamais por ele transmitidas – na viagem da Apolo XI, o astronauta americano Neil Armstrong entrava para a História como o primeiro Homem a pisar na Lua e dela avistar a Terra

«Este é um pequeno passo para o Homem , um gigantesco salto para a Humanidade »

estava sendo ouvido no Mundo todo , estarrecido e maravilhado como nós !

Mais importante que toda a tecnologia demonstrada , estava ali para mim a mais magnífica homenagem ao Universo , na descoberta um pouco mais das Maravilhas da sua Criação pelo uso das faculdades que pelo Criador foram dadas ao Homem .
Esse julho seria também de vitória para mim ! Finalmente eu obtinha o registro de Engenheiro , na Ordem dos Engenheiros , Cédula Profissional nº8720 ! Tinha sido preciso entregar relatório de estágio em fábrica , de duração 6 meses , que eu fizera na CPFE e escrevera a duras penas em pequena máquina de escrever.
Verão , praia com os Filhos , naquela região deslumbrante , apenas prejudicada pelas dificuldades de estacionamento para o carro , que eu resolvia chegando à praia depois do meio-dia, gente já retornando para casa.
Sesimbra era uma vila piscatória situada no sopé ocidental da Serra da Arrábida , de casario se apertando pela encosta até à praia , mar azul, pescadores lidando com os seus afazeres , barquinhos soltos na baía. Ali de cima do paredão , da chegada da estrada e estacionamento do carro , o olhar se perdia até longe no horizonte de águas tranquilas, vento soprando num calor forte que repousava o espírito e o corpo. Ali os Filhos brincavam , eu lia algum livro que me distraísse daqueles espalhados pela minha sala, a Tininha fazia malha preparando as roupas para o Inverno . Saída tarde, parada em alguma mesa de restaurante , saciando sede e fome , o prazer de ver meus Filhos se mantendo à mesa comportadamente , João António vigilante e atencioso , 6 anos, a Paula nos seus 4 anos já temerosa participante de qualquer novidade , a Olga de 3 anos irrequietos e o Pedro começando a se manifestar em algum berreiro não muito insistente !
A Vida fazia sentido , eu tinha 30 anos , eu estava em paz !
As noticias completavam a noite , atento ao Festival de Woodstock , Nova Iorque , rock and roll , que recebia 400.000 participantes hippies e levava as autoridades a proclamarem a região « calamidade pública » ; ou algum disco naquele movel rádio me trazendo a voz de « Satchmo » , Louis Armstrong em seu « What a Wonderful World »

I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself what a wonderful world.

I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
And I think to myself what a wonderful world.

The colors of the rainbow so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands saying how do you do
They're really saying I love you.


I hear babies crying, I watch them grow
They'll learn much more than I'll never know
And I think to myself what a wonderful world
Yes I think to myself what a wonderful world.

Eu vejo o céu azul e nuvens brancas
O brilhante dia abençoado, a noite sagrada
E eu penso comigo, que mundo maravilhoso

Eu vejo arvores que são verdes, rosas vermelhas também
Eu assisto elas florescerem para mim e você
E eu penso comigo, que mundo maravilhoso

As cores do arco- íris, tão lindo no céu
São também os rostos das pessoas passando
Eu vejo amigos apertando as mãos, dizendo ''como vai?''
Mas eles realmente dizem, "eu te amo"

Eu ouço nenês chorarem , eu assisto eles crescerem
Eles vão aprender muito mais, do que vou saber
E eu penso comigo, que mundo maravilhoso
Sim, eu penso comigo, que mundo maravilhoso

Outubro , início de aulas , João António vai para a Escola ! Ainda 6 anos , repete o que eu tinha feito , lá nos Açores - espero que encontre aquele maravilhoso professor, eu penso !
Na Fábrica eu substituía o CF nas suas ausências. Aqueles tempos começavam a ser de manifestações mais hostis pelos trabalhadores, ali estávamos no centro da organização comunista em Portugal. A SN vinha com longa pendência com a Companhia de Caminhos de Ferro por causa de uma ponte ferroviária que impedia a entrada de barcaças de grande porte ; negociações sem solução , A SN resolve avançar uma barcaça , das maiores , rio adentro para passar por baixo daquela ponte. Aconteceu o que a SN esperava ( diziam ! ) – a ponte caiu com o embate ! Com ela , cai a ligação ferroviária que trazia trabalhadores para a Fábrica e estes , em grande número , resolvem exigir compensação da SN pelo aumento dos custos das passagens ( de ônibus eram muito mais caras ) . Sem êxito junto à Empresa , partem para a greve . Contornada a greve , a SN cedendo de alguma forma , dois ou três dias depois, CF ausente, sou chamado a reunião de Chefes de Departamento da Fábrica com o Diretor Fabril.
O Diretor Fabril era um brilhante professor de Metalurgia que dava aulas na Universidade , meu professor em duas cadeiras , uma delas depois de eu vir de Moçambique , nós nos conhecíamos daí , eu tinha tirado classificações muito boas . Esse Diretor , casado com uma prima , também professora de renome , tinha um filho com grave deficiência cerebral , isso nós sabíamos e nos deixava mais atenciosos no trato com ele.
Sentado naquela grande mesa de reuniões , numa imponente sala , sem explicativas prévias , ouço desse Diretor o mais estranho conceito de disciplina empresarial que poderia imaginar – lideres para incitar às greves sempre vão existir, não podemos acabar com eles , mesmo sabendo quem são , mas as greves só acontecem porque existem trabalhadores de baixo discernimento , ingênuos , inocentes , fortemente dependentes , que seguem esses lideres e obedecem às suas ordens ! Os senhores vão indicar em cada um dos vossos Departamentos os trabalhadores mais bobões , mais ingénuos , entre os que tenham aderido à greve , para serem demitidos de imediato ! Assim , todos os outros saberão os riscos que correm em obedecer aos lideres ! O espanto era geral no rosto de todos !
Passei depois essa ordem ao CF e comecei a ler os jornais na procura de anúncios de emprego , iria responder aos que me parecessem excelentes.
No seguimento, iria mandar carta em resposta a um bem disposto anúncio para uma empresa metalúrgica, não indicava o nome. Alguns dias depois, me telefonam do Recrutamento da própria SN perguntando se eu queria que me devolvessem a carta , o anúncio era dali mesmo ! Vou continuar tentando !
Aquele Diretor eu vou encontrar no Brasil , então trabalhando em Projeto de Engenharia para Siderúrgica de Salvador em que ele estava!
A guerra do Vietname vai atingindo o seu auge , o Mundo escandalizado com a barbárie ali acontecendo, traduzida na imagem repetida e repetida pela TV e jornais de um assassinato à queima roupa de um oficial vietcong , prisioneiro , pelo comandante da policia nacional do Vietname , imagem captada por um fotógrafo no exato instante do disparo da pistola contra a cabeça daquele homem , sangue espichando e sujando a todos nós , brutalidade selvagem de uma guerra sem honra .
Grandes manifestações acontecem por todo o Mundo e nos Estados Unidos - 250 .000 manifestantes em Washington - exigindo o fim dessa Guerra . A música « Blowin´ in the wind » de Bob Dylan era a bandeira dessa contestação

How many roads must a man walk down
Before you call him a man?
Yes, 'n' how many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, 'n' how many times must the cannon balls fly
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.

How many times must a man look up
Before he can see the sky?
Yes, 'n' how many ears must one man have
Before he can hear people cry?
Yes, 'n' how many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.

How many years can a mountain exist
Before it's washed to the sea?
Yes, 'n' how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes, 'n' how many times can a man turn his head,
Pretending he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.

Quantas estradas precisará um homem andar
Antes que possam chamá-lo de um homem?
Sim e quantos mares precisará uma pomba branca sobrevoar
Antes que ela possa dormir na areia?
Sim e quantas vezes precisarão balas de canhão voar
Até serem para sempre abandonadas?
A resposta meu amigo explode no vento
A resposta está soprando no vento

Quantas vezes precisará um homem olhar para cima
Até poder ver o céu?
Sim e quantos ouvidos precisará um homem ter
Até que ele possa ouvir o povo chorar?
Sim e quantas mortes custará até que ele saiba
Que gente demais já morreu?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Quantos anos pode existir uma montanha
Antes que ela seja lavada pelo mar?
Sim e quantos anos podem algumas pessoas existir
Até que sejam permitidas serem livres?
Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça
E fingir que ele simplesmente não ver?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Inverno , bom período para operar as amígdalas ! Desde bem pequena a Paula vinha sofrendo de problemas de garganta , infecções sucessivas , consultas ao médico , bom operar 4 ou 5 anos . Agora , aí está a Paulinha deitada no sofá de espera da sala de cirurgia , mão estendida para mim , olhos lacrimejantes do medo do inesperado , ali a Mãe do lado , eu aperto a mão dela, digo que vai ser simples , acaricio o rosto , mas minhas pernas tremem e em minha frente passa o filme da minha infância, eu , 4 para 5 anos também , sentado na cadeira do cirurgião , injeção de agulha grande , meus olhos de espanto , quase não dói ,tem aqueles ferros todos que estão aquecendo , falo que não quero muito quente , o cirurgião corta na minha garganta , não dói, vejo muito sangue caindo naquela taça na minha frente, meu Pai ali a meu lado começa a desmaiar , tem um enfermeiro que o segura , depois deitado , mimado pela minha Mãe que me oferecia sorvetes que eu guloso devorava , calado, era proibido falar ! Agora este médico não deixa entrar ninguém , bom , porque não vou desmaiar ! A Paulinha não queria sorvetes !

Aquele Fiat 850 estava aguentando bastante, com mais de 80.000 km precisava de uma lata de óleo sempre que enchia o depósito ! Momento da troca , divido a diferença em dois cheques e saio com um Opel Kadett 1100 , GM , 2 portas, branco , modelo do ano ! Boas viagens !

Outra boa novidade naquele final de Inverno , acabaram as fraldas ! Desde o nascimento do João António que a Tininha vivia rodeada de panos , lavar , secar, passar, ciclo assim já 7 anos ! Não precisa mais , pode jogar tudo fora !

Na Fábrica eu me entusiasmava com a tentativa de utilizar o primeiro computador programável de mesa que o Departamento de Metalurgia havia adquirido ! Memória auxiliar na forma de grandes tiras de cartões perfurados , eu tentava utilizá – lo no cálculo de grandes sequências de equações do balanço energético do Conversor LD – grande vaso em que se soprava oxigênio a alta velocidade , superior a 2 vezes a velocidade do som, sobre gusa liquido a 1200º C recebido do Alto-Forno , para a obtenção do aço – procurando formas de controle do processo. Eu lia todas as revistas européias que se publicavam sobre Siderurgia , esse era então o objetivo de pesquisa em todos os grandes centros metalúrgicos procurando formas de automação e controle, para sepultar aqueles processos empíricos que utilizávamos.

Muitos finais de semana viajava para Pombal, um momento de relaxamento para a Tininha que aí tinha ajuda no cuidar dos Filhos e para mim, nas conversas com o meu Sogro . Durante alguns tempos me atraí pelo conhecimento do Jogo do Bridge, recordação daquele clube lá em Vila Junqueiro , comprava livros, fazia esquematização de jogadas,descobria que se tratava de um jogo maravilhoso até para isso, jogar sozinho.
Com o entrar da Primavera, outra coisa me atraía em Pombal – os caracóis ! Nas cercas dos terrenos da Fábrica, nos canteiros de verduras , os caracóis apareciam por todo o lado , para minha festa na sua apanha ajudado por todos os Filhos , chapéuzinho na cabeça ,menos o Pedro que mal saía da alcofa. Era uma festa ! A cozinha virava campo de luta, caracóis fugindo pela mesa e já nas paredes, panelas jogadas naquelas lavagens que não acabavam, procura de condimentos para jogar na panela de cozedura e, enfim, onde tem alfinetes ? Tinham de ser grandes, não era fácil encontrar lá em casa , casa de costureiras ! Depois na mesa , que maravilha ! , pretexto para beber cerveja , lambuzar os dedos e a boca, a Paula não gostava, que pena, não sabia o que perdia ! Não era o sabor, não que matasse a fome , mas era a brincadeira , o ser criança ali com os meus Filhos, despreocupado !

Conversa com um casal amigo de meus Sogros , se fala em campismo , têm barraca e apetrechos, nos emprestam, próximo Verão vamos acampar !

Lá pela Fábrica o meu entusiasmo não diminuía , mas o desgaste fisico pelas condições extremas de trabalho , a responsabilidade de responder a telefonemas no meio da noite, dúvidas na cabeça às vezes pelo perigo de situações que faziam levantar e partir para a Fábrica, esses pressionavam a continuar aquela leitura dos jornais orientada para a página de anúncios de emprego . Deveria haver melhor !

Estamos então no Verão , de corridas de fim de semana para a praia e de realizar aquele sonho de plantar barraca de campismo ! Vamos deixar os Filhos em Pombal , o João tem 7 anos, fez sua 1ª Classe na escola , menino estudioso , vai ajudar a Avó a tomar conta dos Irmãos, podemos seguir descansados para Lagos lá em baixo na ponta Sul de Portugal .

150 Km até Lisboa, mais 50 até Setúbal, estamos correndo no litoral do Algarve , costa do Atlântico recortada de maravilhosas praias entrecortadas por falésias . A 300 Km de Pombal estamos em Sines , terra natal de Vasco da Gama , dos Descobrimentos, bom centro industrial valorizado por um porto de águas profundas .Quase chegando a Lagos, faltam 130 Km , deparamos com Sagres , na ponta mais ocidental do Algarve , pequena vila com origem anterior à conquista romana , de casas brancas, portas e janelas emolduradas a azul , rosa e ocre , ligada aos fatos mais importantes da História de Portugal – aí o Infante D.Henrique , o Navegador, criou uma escola de navegação especializada em cartografia , astronomia e desenho de barcos , impulsionando Portugal para a era dos Descobrimentos . Daí saíram as suas caravelas à procura de novos Mundos.
No promontório da ponta de Sagres, com o vento forte a bater-nos no rosto , olhos doridos do Sol forte, cheiro de mar, deparamos com uma fortaleza do século XV que nos apresenta no seu interior uma gigantesca rosa – dos - ventos , desenhada com pedras no chão com mais de 40 metros de diâmetro.
A 6 Km de Sagres , está o Cabo de São Vicente , o ponto sudoeste da Europa , farol lá extremo . A paisagem é impressionante, com grandes penhascos que enfrentam o Atlântico , onde as ondas cavaram profundas cavernas. Impossível não deixar de sentir aqui a grandeza de alma dos homens que se atreveram a ir para o desconhecido !
Vamos para Lagos, parque de campismo ,montar barraca ! Com o vento batendo , inexperientes, eu e a Tininha procuramos entender aqueles ferros e espias, panos da barraca de forma complicada, tem espaço reservado no interior para o colchão de cama, é suficiente para quem se propõe só ali dormir , refeições nos restaurantes !
O parque de campismo é bem próximo do centro da cidade , pequena , antiga aldeia de pescadores que se tornou importante sob o domínio dos árabes que construíram aqui várias fortalezas ; como todo o Algarve, foi severamente atingida pelo Terramoto de 1755 . Belas casas dos séculos XVIII e XIX , edifícios de interesse histórico e arquitetônico , quadrilátero definido por muralhas de proteção de construção do século XVI envolvendo os bairros, em que se apresentam várias portas e baluartes adaptados ao tiro de artilharia . Dessas muralhas se avistam bons panoramas sobre a cidade e a baía , nos envolvendo em encantamento especial pela alvura das casas em que se destacam as cantarias de janelas e portas e os ferros forjados das varandas , pelos espaços de sombra e frescura criados pelas ruas estreitas e pelos pátios onde crescem figueiras, videiras e flores , casas apalaçadas de fachadas nobres , lá em baixo o bulício das embarcações de pesca e as águas espraiadas da baía refletindo mastros de iates.
Região situada entre o Oceano e a Serra de Monchique , com clima mediterrânico temperado por forte influência marítima , tinha condições propícias à produção de vinhos de qualidade - o que eu iria descobrir logo ali , naquele pequeno restaurante na frente de rua inclinada , mesa na calçada, saboreando um vinho que me abria o apetite para a culinária da região ! Não que seja grande apreciador de vinhos, pouco bebo, mas aquele vinho de Lagos era especial ! Tinto aveludado , pouco encorpado , com aroma frutado , tom rubi quase topázio !
A culinária da região era sensacional ! Favas com morcela , sopa de peixe, cataplana de marisco , feijoada de búzios, feijoada de polvo, arroz
de peixe, lulas cheias, caldeirada , caldo verde , lulas e chocos com tinta , carnes de porco e ameijoas na cataplana , polvo seco assado no forno , mexilhões abertos na chapa , caracóis com oréganos , as maravilhosas sardinhas assadas .

E perceves ! Estranhos crustáceos , hermafroditas, como um dedo agarrado nas rochas profundas por um pedúnculo , corpo protegido por um revestimento calcificado , arrancados do seu habitat pelos marisqueiros que vão a nado com uma bóia na qual prendem os sacos para os perceves apanhados por mergulho no mar , depois subindo nas encostas , sacos às costas , ondas explodindo nas rochas.
Delícia do mar , corpo chupado e comido depois daquele revestimento arrancado, gosto salgado do mar batendo nas rochas !
Tinha ainda a doceria , atração da Tininha , a maior parte de origem árabe, feita com amêndoas e ovos , os morgados com caprichosas decorações, os D. Rodrigo envoltos em pratas coloridas, os bolos de doce fino que reproduzia miniaturas de frutos, animais e flores .

Já noite , olhos cheios do esplendor da lua batendo no mar , vamos para a nossa cama , parque de campismo, lusco fusco da lanterna .
A manhã vem rápido , com o sol batendo na lona da barraca e os risos das crianças lá fora. Vou para os banheiros, tem homens e mulheres , muita gente, espanto ! mulheres falando francês , turistas , novas e alegres , descontraídas , invadiam o banheiro dos homens, despreocupadas com a separação dos sexos, o banheiro delas está cheio , meu Deus , os portugueses estão muito atrasados !

Nos apressamos para conhecer as praias . A menos de meia hora de passeio do centro da cidade , tínhamos a Praia de Dona Ana , enormes escadinhas até a areia , branca, finíssima, águas transparentes de rochas aflorando ali na frente. Mais para a frente a Praia do Camilo e pouco mais adiante a Meia Praia, se estendendo por 4 quilómetros de areia , ausência de rochas , ondas rebentando mais suavemente do que nas outras . Para o outro lado , o promontório que abriga a baía , a Ponta da Piedade, mais praias ligadas entre si por túneis talhados nas rochas, se oferecendo em sombras refrescantes junto aos rochedos em que se encaixam .
Penso , se estas águas fossem as daquela praia do Chongoene lá em Moçambique, quentes, eu tinha encontrado o Paraíso !

Não havia por não ficar ali , no calor confortável do Sol que nos atraía para as praias e no cansaço gostoso que nos levava para os bares e restaurantes, aquela comida e o explêndido vinho proporcionando reconfortantes momentos !

Seguimos nossas descobertas , caminho de Faro e suas Ilhas, mais 80 Km ao longo da costa daquele belíssimo Algarve .
Passamos por Portimão e sua Praia da Rocha, extensa língua de areia protegida por falésias , grandes rochedos enraizados na areia , a cidade é plena de atividade turística e comercial. A meio caminho de Faro , deparamos com Albufeira , cidade que foi dos últimos redutos árabes em Portugal e quase totalmente destruída pelo Terramoto de 1755 , centro pesqueiro no início do século XX prosperando com o nascimento do turismo internacional na década de 60 , principalmente de ingleses .
Chegamos finalmente a Faro , capital do Algarve , o seu centro animado, repleto de lojas, esplanadas, bares e restaurantes , belos edifícios antigos datando sobretudo dos séculos XVIII e XIX , região lagunar de inúmeras ilhas de areia , abundância de peixe e mariscos , as águas das marés entrando e saindo entre elas , em que a claridade das areias contrasta com o esverdeado do solo lodoso e encharcado dos brejos , conjunto inigmático de vasta vegetação que se esconde na maré alta e se mostra quando as águas baixam.
A praia de Faro , ou Ilha de Faro , fica a menos de 10 Km , com acesso por ponte , tem vários centros comerciais , parque de campismo onde nos instalamos . O vento aqui é mais forte do que em Lagos, mas tem a surpresa da paisagem , as águas para correr de um sem número de canais , as areias em permanente deslocação .
Hora de voltar para Pombal , mas vamos ainda 50 Km em direção à ponta extrema do Algarve, extremo sudeste do País , cidade de Vila Real de Santo
António , na foz do Rio Guadiana . que ao longo de mais de 100 Km de Norte para Sul vem fazendo fronteira natural com a Espanha . É uma cidade de traçado retilíneo, quarteirões da cidade divididos com rigorosa geometria, lembrando o centro comercial velho de Lisboa, afinal a cidade foi mandada construir pelo Marquês de Pombal .
Um olhar para a Alfândega que ali faz passagem para Espanha , sonho de talvez um dia poder contar estórias como aquelas senhoras que se sentavam nas mesas do Café lá no Barreiro, que eu escutava meio com inveja meio desdenhoso, e saímos atravessando o Algarve e o Baixo Alentejo , destino a Aljustrel , a terra natal do meu Pai , e depois Alcácer do Sal, Setúbal e enfim a estrada Norte – Sul que vai de Lisboa ao Porto , destino Pombal .
Minhas férias não tinham terminado ainda , vontade de retornar àquela Fábrica em Canas de Senhorim , rever amigos , saber notícias ; tudo certo em Pombal , Filhos e Sogros , manhã cedo sigo com a Tininha para esse passeio .
Voltamos não muito tarde , tempo de mal encostar o carro no galpão da Fábrica de Madeiras, meus Sogros estão apreensivos, corremos, ouvimos que o Joãozinho logo depois de nossa saída se sentiu mal, dor de cabeça,deitado . Chamaram o médico, fêz exame , apalpou a nuca , levantamento das pernas, achou que possa ser meningite , receitou imediata aplicação de injeções de penicilina, três em três horas ! Momentos em que o cérebro nos não ajuda , o que fazer , sei que meningite é muito grave, quem sabe mortal, pode deixar sequelas ! Não o meu Filho ! o que aconteceu ?!
Falamos com amigos , tem um casal de médicos, as opiniões são difusas , o médico está certo . Os meus Sogros confiam , o médico é da Família faz muito tempo , assistia à Tininha, muito cuidadoso , meus Sogros não querem ofender ! O Joãozinho vai tomando suas injeções de três em três horas, começam a ser muito doloridas , chora , cada vêz mais se angustía , no intervalo alinha as cápsulas sobre parapeito da janela ao lado da cama .
O Joãozinho fica mais pálido , lábios gretados, muito fraco , a Tininha se desespera , vamos para Coimbra , chamamos ambulância . Os meus Sogros resistem , o médico é de confiança, não querem ofender ! Aquelas cápsulas ali alinhadas são já 21 , o Joãozinho não suporta mais aplicações , muito fraco , se apavora mal ouve a entrada do enfermeiro ! Começo a querer fazer alguma coisa , a decisão tem de ser imediata ! Penso que o Joõazinho antes da aplicação de nova injeção até parece melhor , depois piora ; leio a bula que vem na caixa , não existe mais nada para me apoiar , a bula é clara nas muitas reações adversas ao medicamento , refere a necessidade de tomar cálcio ! Não tenho dúvidas , vou falar com o médico , encontro – o numa farmácia , conversando com o dono , peço que explique melhor a situação , acho que fica confuso , o uso da penicilina mal tem dez anos . Ali , mão que nos acompanha ! ou não ! decido de supetão – doutor , vou suspender a aplicação ! Não me deu resposta , certamente me achou mal educado .
O Joãozinho poucas horas depois estava comendo , dia seguinte se levantava, do problema apenas a memória daquela fila de cápsulas ! Com meus Sogros nunca mais se falou do assunto , com o médico nunca mais cruzei.
Acabavam as férias, regresso ao Barreiro , para a Fábrica e o recorte daqueles anúncios de jornal .

Não esperei muito , recebo uma resposta, querem uma entrevista , empresa multinacional que vai instalar uma fábrica de cervejas em Angola !
Vou , um senhor me recebe em seu escritório numa avenida de Lisboa , paralela ao grande parque próximo da casa de meus Pais – coincidência , se chama Quintas ! – é uma multinacional com maioria estrangeira, Heineken holandesa , belgas e ingleses , uma empresa angolana formou a parceria para instalação de fábrica de cervejas no Dondo, 160 Km de Luanda , para o interior . Querem selecionar o Diretor Técnico , mas exigem prévio treinamento no exterior, curso na Bélgica e posterior estágio na Holanda , quase um ano. O salário é dividido , uma parte , 14000 escudos, paga em Portugal , a outra, igual , na moeda do País em que me encontrar. Gostaram de mim , meu passado militar, empresas profissionais , querem minha resposta , o selecionado tem de estar na Bélgica em 7 de outubro .
Pergunto sobre a situação militar em Angola, no Dondo – que não tem qualquer anormalidade , não há incidentes , as estradas são seguras , só acontecem alguns problemas nas regiões de fronteira .

Em casa ,converso com a Tininha , as condições são tentadoras , não vamos ter outra oportunidade de estudar no exterior, viajar , aprender uma língua, o problema da instabilidade em Angola nós teríamos quase um ano para analisar , se ocorrerem problemas quem sabe ( ! ) volto para a Siderúrgica , a escola do Joãozinho começa em outubro , vai estudar em Pombal .
Falamos com meus Sogros , apóiam , porque não ? !
Telefono ,aceito . Vou estar 7 de outubro em Bruxelas, Bélgica !

Na SN , espanto do CF , não podes, é loucura ! Sei que telefona para a Diretoria , me chamam, que precisam de mim , me propõem aumento imediato para 16000 escudos . Penso , de novo ! ganho 12500 , quanto perdi estes meses todos !

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